obras em processo
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Alguns dos
poemas deste livro foram publicados em
revistas e jornais tais como: TriploV,
Decires (Argentina), Jornal de Poesia
(Brasil) Velocipédica Fundação, Botella del
Náufrago (Chile), El Establo de Pégaso
(Espanha), DiVersos, Carré Rouge (França),
Saudade, De Puta Madre (Espanha), Sibila
(Brasil), Abril em Maio, La Otra (México),
António Miranda (Brasil).
(Casa da
Muralha, Arronches, Dezembro de 2009) |
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RUÍNAS E OUTROS POEMAS
RUÍNAS
PARQUE
FASHION
VISLUMBRE
CALABAZAS
NUVENS
LE BLEU
NATAL ZERO OITO
CAIXA |
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RUÍNAS |
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ao Margarido Neves, in memoriam
Vinte e quatro ruínas. Uma ruína para cada
hora do dia e da noite.
Ruínas que do tempo vieram, que de tempo se
fizeram. Coisas, lembranças, lugares e
pessoas que o tempo desfez. E que agora se
reerguem por um momento na memória de quem
as viveu. Nos olhos de quem as pode viver ou
contemplar ainda que exista a vida breve,
tempus fugit, que afinal dura os minutos de
um dia, de um mês, de um ano. De muitos
anos. Também das existências que se não
tiveram, pois que viver é escolher um
caminho entre vários caminhos, apenas
aflorados, apenas pressentidos como um eco
longínquo. Como num sonho encenado, possível
mas ao qual não se deu figura.
A vida ardente está aí. Entontecedora,
repleta de sonhos e quimeras, de pequenas
luzes interiores como o súbito brilho do sol
nas folhas de uma árvore desaparecida.
Ruínas nos sítios habitados “onde tudo canta
gravado pelos séculos”. Ruínas que
“multiplicam os seus fulgores conforme as
horas”. Recordações entre os muros e entre
os mundos de baixo e de cima, como na
infinita sabedoria e na infinita humildade
dos que não viveram em vão. Ruínas que não
são de cidades perdidas, de impérios
destroçados, de cadáveres desmembrados e de
rostos convulsos, mas de pequenos detalhes
que a nostalgia e o encantamento dos
momentos idos possibilitou existir num
continente improvável.
Aquelas matérias que ascendem na vida
natural de quem sabe ou de quem pode
rememorar, metáforas e imagens de quartos e
de escadarias, de ruas que jamais
regressarão e contudo são as mesmas, de
ideias esquecidas entre o pequeno mundo do
que se pensa num relance e se vai para
sempre, sem remorso nem contentamento, mas
marcadas e coloridas pelo horizonte de muito
do que se foi vendo existir. |
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PARQUE |
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São apenas três manchas brancas sobre as
plantas do jardim
e outra azul mais pequena mesmo posta ao
lado dum banco de tábua
E nós pensamos: uma para as saudades, a
segunda para os remorsos
a terceira para os que tentam reter a tosse
que os sufoca.
Mas a quinta mancha é cinzenta. E apesar de
fria como um sobressalto
pesa-nos no peito, pesa-nos na memória e
revolve-se
no ventre enquanto tentamos reflectir
angustiados.
Uma lua e um sol estão sobre a silhueta de
um animal morto
hirto, com estranhos círculos no lombo, os
olhos cintilando
como alguém escondido numa viela cheia de
lixo.
A vossa vigília durará até que os ramos se
afastem
que o transeunte de acaso de repente caia de
joelhos
ante a noite que chega, guardando um grito
na garganta
e fale mansamente olhando as árvores que
desaparecem na luz. |
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FASHION |
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Em todo o tempo as há, mas no Verão nota-se
mais.
Lá vão elas andando desfilando como estátuas
hieráticas com tudo, contudo, no lugar.
E são brancas e pretas, ruivas e morenas e
louras e de cabelinho rapado para ficarem
exóticas, ex-ópticas aos nossos olhos em
bico em bugalho em riste como binóculos de
apreciadores de corridas de cavalos ou de
paisagens longínquas.
A umas os seus construtores/construtoras
querem que apreciemos as partes de cima,
outros/outras as partes de baixo – e nós,
que sabemos apreciar ver coruscar como
faróis na noite olhamos principalmente o que
as suas construtoras construtores não lhes
fizeram/costuraram mas lhes foi dado pela
natureza o acaso a simples e boa elegância
que ou se tem ou se não tem, raios.
Elas lá vão deslizando como borboletas numa
serena manhã de verão ou ao entrar da
noitinha. Meninas, lindas meninas, qual de
vós o vosso ideal e os/as que as miram
escrutinam remiram sentem por vezes um
frémito um arrepiozinho que acrescenta um
tremeluzir na passerelle. Como se fosse o
ring em que se batem contra a fealdade do
tempo e a beleza da idade.
Como se não fossem apenas estátuas
hieráticas mas pessoas andando desfilando no
quotidiano dum mundo reconfigurado e
liberto. |
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VISLUMBRE |
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No bote, os polícias jazem amorosos
no virar da semana
com as suas adoradas em passeio
naquele jardim com o lago meio adormecido
em que depois de remarem, como os cisnes do
parque
como a lua se tivesse caído na água
ficam no vazio, olhando os bancos e a relva
dessas horas em que as ramagens cobrem
os corpos de quem descansa e os ausentes
comem sua merenda debaixo de outras folhas
em diferentes lugares.
No barco ou ao balcão do quiosque eles
sustêm
na sua mão a mão de alguém que os prolonga.
Onde estão as crianças e a música? Quando
não é manhã
os barcos vogam
em busca de um horizonte em que haja noite
dentro mesmo dos corpos, até do peito
fendido
em que eu contemplo as silhuetas seculares
quase no fim dos bosques onde depois se amam
e se interrogam por um nada
bocejando aqui e além.
Tocas com essa mão a primeira palavra. E
notas
no céu negro figuras como havia
na tua adolescência sussurrante. Agora
olhas ao pé do castelo um pequenino embrulho
e foi há muito tempo que o sentiste
uma e outra hora e ainda uma outra hora,
essas
que de repente param e tu sorris
na evidencia que te chama. E dizes, como se
nada fosse
- Ouve, jovem polícia, o teu barco quedou-se
ali
e por entre as pálpebras semicerradas
o teu amor esvoaça. Oito nove de noventa e
seis
repara bem
o taumaturgo testa a tua sede. O teu raro
momento
tão plácido e completo como um hall sem
ninguém.
Vamos embora, meu Senhor.
Seco e magro como um vislumbre
que estimula os quartos ao derredor
andas de continente em continente
e os risos aumentam e aumenta
o choro ao canto do jardim ensolarado.
Uma palavra em calão e uma reza, uma reza
saindo sem que o soubessem alegremente das
trevas. |
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CALABAZAS |
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a Mayte Bayon
Eu sou o que sou
vegetal e mineral, fruto e animal
no inverno no verão
em cima da cama e numa cozinha
sobre a mesa com copos e garrafas
Sou pintada sou disposta em arco-íris
como alguém que ri e alguém que chora
como uma artista submergida
como um retrato emergente
ando de roda
rastejo
voo sobre os rios e os ventos
os montes e as chamas nas lareiras
sinto a terra nas mãos
balbucio a dormir
assusto-me fico presa
a um objecto tão belo como a escuridão
antes da manhã
depois de anoitecer
Tenho muitos nomes
que de repente desaparecem
cabacinha pintada de azul amarelo
cabacinha pintada de preto vermelho
e sou outra vez eu
e faço o pino danço adormeço
e os sonhos saiem pela cabeça
e ficam a pairar perto das paredes.
Sou cabaça
sou pessoa
sou madeira e pedra
e lume e ardósia e papel
ramagens ensolaradas
casas que se abrem e fecham
no dia inteiro
e na tarde
de todos os silêncios e ruídos ao longe. |
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NUVENS |
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Naquele ano fui para o sul de França.
Durante vários
meses, antes de abalar, pensara sem cessar
na velha cozinha da infância e com esses
pensamentos
vinha muita coisa sufocada - a ideia de que
as manhãs
eram como um relato vago visto na televisão
e que nada
nos pertencia a não ser a recordação de
quando
pensava em ser aviador nos anos distantes de
oitenta.
A menina
entrou na escola numa segunda-feira ou seria
terça feira? Era num livro de contos que
isso
era dito e o telefone tocava
intermitentemente e então
resolvi partir. Lá fora os pássaros estavam
parados
como se posassem numa fotografia desfocada e
eu
pensava: esta parede ficará sempre
sob o tempo
noutro espaço
noutro pensamento.
E passou
o dia inteiro
e as pessoas diziam: ontem, meu amigo, onde
deixaste
a tua imagem além ou noutro
tempo qualquer, apenas para que soubéssemos
ser fiéis ao que foi
o reverso? |
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LE BLEU |
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Poemas sobre o azul? Sim, é possível
fazê-los. Não, por vezes
é impossível fazê-los, vai sempre dar-se a
outra coisa
a outra cor. A ruas que nunca mais se verão,
numa cidade
equatorial onde, do lado direito, o lado
oposto à catedral, havia casas
pintadas de vermelho ardido, de ocre
vibrante, de amarelo irisado, casas
com portas de madeira preta.
Passe um pouco de lado, por favor. Apanhe
aí um chapéu-de-chuva. O azul
é para outras estações: talvez Casabranca,
talvez Mogadouro, talvez
Chança ou Alcáçovas, onde as flores do
pequeno jardim perto do armazém
eram flores de uma outra primavera
meio espanhola ou mesmo
meio grega. O azul dessas praias nunca
divisadas. O verde
de um rosto de um cadáver insepulto. Um azul
de anil, aquele
por sobre o bosque de pinheiros da primeira
ruína
do convento no meio da Serra. O azul
convencional das torneiras que
quer dizer água fria. O das pedras de cobre
da antiga
drogaria na cidade velha. Um olho azul, mas
por fora, azul de violento
murro certeiro. Passe
por aqui, por obséquio (dizia o empregado de
mesa de calças azuis um pouco
sebentas, um pouco
enrugadas de quem não vive
entre estátuas jacentes), alguém
de casaco branco como um cirurgião. Na pedra
um cor de rosa. No chão um castanho sujo. Na
parede um risco
azulado, difuso letras já
semi-desfeitas. Um azul
seco, um tom pintado que se almeja, que se
sonhou algures, um
azul que não se encontra nunca, que ao longe
se some
no nevoeiro que sem piedade aumenta. |
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NATAL ZERO OITO |
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Quem fala de Natal perde palavras
à entrada do Inverno, na secura dos dias
no vasto frio das noites, tão lúcidas e
antigas
tão de infância e de Agosto. O fogo
misturado: árvores, luzes, fantasmas
e as doces mãos das Avós. E ainda
um postal velho velho cheio de vento e de
memórias.
Quem fala de Natal perde palavras, ganha
e perde as demais coisas que as palavras
edificam.
“Quem grita no Natal? E Deus
não os fulmina? “. Quem mergulha os seus
pulsos
na fria água do rio? Com seus chapéus à
banda
em barcos engalanados
os anjos vão passando, dizendo amores
esquecidos
dizendo estranhas frases, assombrando as
moradas
onde afinal não nasce o tal de Nazareh. O
sal e o
pão terrenal dos que ainda não foram
pelo ar, pela vida, pelos túmulos vazios.
Sim, pelo Natal as pobres casas em ruínas.
Para ser do Natal é preciso possuir
uma lembrança ardente, um brinquedo
estripado
e muita tristeza feita nos anos em leilão
dos retratos tombando com um nó na garganta.
Para ser do Natal é preciso morrer
e viver de seguida com o sangue nos braços
esperando a estrela fixa do brusco espanto
nocturno
junto à porta perdida dum milagre adiado.
Ah falar de Natal! Quem o consente?
O pão e o sal
talvez
de toda a gente. E um olho de animal
pairando no poente. Decisivo, visceral. E
Deus, pobre dele
abrindo a água lustral (no bem, no mal)
frente ao horror da morte
terrena e inocente.
Por isso, no Natal
os segredos demoram
e tudo muda e tudo se envolve num pano
branco barato
para que ninguém esqueça um corpo ferido que
por debaixo jaz
uma nova e desconhecida espécie de cadáver
achado na ilha
dos animais inominados
e outras diversas coisas que por desespero
se não apontam.
No Natal treme a casa, a casa
sempre caiada, como um sepulcro sem número e
sem nome.
E o inventário dá, se estiver certo:
um coração ardido todo azul
uma recordação minúscula que se guardou num
bolso
um riso salutar ensanguentado
uma pequena ironia desenhada a tinta de
colegial
uma apenas esboçada mão posta sobre um
antebraço
o lenço de cabeça duma tia que desapareceu
na manhã
um gato tranquilamente dormindo ao cimo das
escadas
uma rosa e uma palavra que a si mesmas se
julgaram
duas mãos de pedra tremendo atravessadas por
uma ferida
numa cruz de polo a polo
um hálito que soprado no peito nos
enlouquece
um arrepio, uma agonia
uma tarde a fechar-se repleta de amargura e
de alegria.
Talvez o Natal seja um rosto
ou uma madrugada de outono
ou um avião nocturno
ou um verão por detrás das coisas aparentes
ou um combatente jazendo de borco numa pia
baptismal
ou os bramidos de dois seres abandonados
encarando-se de súbito
numa rua da cidade
no escuro muito escuro de uma cidade do
universo
quer dizer – luminosa e aterrada. E talvez
que tudo afinal esteja a mais, que tudo
afinal
se resuma a filhós e azevias de um outrora
a canecas de café familiar
algures num horizonte, numa idade, num
momento
no imenso murmúrio de uma voz sulcando o
tempo.
E a chuva que diabo irá cobrindo tudo
no infinito Natal dos mundos desaparecidos. |
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CAIXA |
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A flor da murta, a flor do cravo, a flor das
páginas
impressas. Entre o amarelo do sangue o azul
das palmas das mãos
o vermelho vivo dos olhos mortos. O sereno
preto-cinzento dos amores
perfeitos.
Como um parque vazio no silencio de Outubro.
Como a lua colorida em Dezembro ou Maio.
Como o interior pulsante de uma anémona ou
um miosótis.
Como os pulmões rasgados por um tiro num
peito
de animal ou de criança ou de mulher
que outrora amou e sofreu.
O amor entre parêntesis, a voz do mundo e a
letra
do mundo para além dum horizonte que se
traçou. |
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Revista TriploV de Artes, Religiões e
Ciências, 5, Abril de 2010 |
NICOLAU
SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
[Monforte do
Alentejo,1949, Portugal]
Poeta,
publicista, actor-declamador e
artista plástico. Efectuou palestras
e participou em mostras de Mail Art
e exposições em diversos países.
Livros: “Os objectos inquietantes”,
“Flauta de Pan”, “Os olhares
perdidos”, “Passagem de nível”, “O
armário de Midas”, “Escrita e o seu
contrário” (a publicar). Tem
colaboração dispersa por jornais e
revistas nacionais e estrangeiros
(Brasil, França, E.U.A. Argentina,
Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com |
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