Os vinhedos de Estremoz como os vinhedos do
Reguengo. Como os de Asnières ou de Peso da
Régua. Como os de Tavira e de Pinhel, de
Modena e de Kerion. No Alentejo ou na
Argentina, na província de Mendoza antes de
se entrar nas pampas desérticas.
No Oregon e no Idaho, em La Rioja, no Lidl e
na Praça Nova, no mercadinho do Corte Inglês
e na mercearia fina ao canto da rua de
Jacobo Rodriguez quando se entra na Plaza de
Cristóbal Colón em Badajoz: vinhos que da
uva saís, que dos vinhedos brotais - e esta
palavra vinhedo que se rola na boca como um
néctar numa prova real - vinhas sob o sol ou
debaixo da chuva que sacode as parras, com
gente e sem ninguém, brancas e azuis da neve
numa tarde de Janeiro.
E as latadas. Em frente da casa antiga do
lado sul da ermida de S.Cristóvão, agora
exactamente como há cinquenta anos.
Nos olhos e na memória do mais discreto
evocador como nos minutos simples de prazer
dum modesto beberrão solitário.
***
Fotos são sinais. Tal como as vinhas. Sinais
de qualquer coisa que se prolonga num tempo
abstracto e no concreto tecnológico de
diferentes disciplinas. Semelhante ao olhar
mecanicista de Rebeca Horn num crepúsculo
rosado, “veins of light inside, like
branches” ou o rigor objectivo e o conceito
antrópico de Jannis Kounellis.
Como se fossem poemas. Ou antes: como se
tivessem sido sempre poemas. O pio do
pássaro, a gaiola suspensa dum prego
habilmente inclinado para lhe dar firmeza. E
as mulheres que passavam para a monda lá
mais para diante, para os socalcos em
ferradura das Covas de Belém, lugar de
nascimentos de ancestros e de gente futura,
mas de outra trajectória familiar.
De outros destinos, sinas diversas como
raízes de plantas diferentes, de cepas
desconhecidas.
E o campanário, no meio das vinhas se olhado
do pinheiral antes da estrada, para além de
outros campos dos lados de Marvão e dos
contrafortes primevos da serra de São
Mamede.
***
O copo meio cheio ou meio vazio de Franz
Hals. Os borrachões de Goya. Os hussardos
bons pichéis de Jean Giono e os salteadores
que se acalentavam com um belo copázio de
tinto quente com açúcar nas estalagens das
terras de Pourrières. A ida ao campo de
ténis do Salão Frio pela vereda que
atravessava as vinhas e sob as figueiras ao
pé da nora. Robert Desnos no campo de
concentração de Terezin, delirante e pouco
antes de morrer, sonhando que passeava com
Tzara entre os cachos de moscatel das terras
da sua infância. Os provérbios e as
sentenças da sabedoria popular com um travo
de séculos (“Muita parra, pouca uva”; “Ano
de nevão, ano de vinho e pão”; “Passar por
lá como cão por vinha vindimada”).
Os domingos sem regresso, quando o pai
levava o garoto pela mão e entravam numa
taberninha anexa a uma adega para provar o
vinho novo e lhe disse que era dos cachos
iguais aos da velha quinta que se fazia
aquele líquido de cheiro pungente e fresco
na penumbra da loja de alguns convivas.
***
Avançavam cautelosamente à roda da vinha.
Por precaução retirou e depois voltou a
meter o carregador da automática. O tremor
passara-lhe. Lembrou-se de quando brincava
aos índios e cóbois na courela da Quinta
Ferreira, antes do bosquezinho de
castanheiros e um pouco para além da eira e
da saibreira como um deserto em miniatura.
A rajada apanhou o companheiro da frente à
altura dos rins e fê-lo rodopiar. Ao
estender-se no chão, estranhamente calmo e
fazendo pontaria como se estivesse na
carreira de tiro, viu os olhos do outro
muito abertos e fixos na cara suada.
Olhos esverdeados como uvas ainda não
plenamente amadurecidas.
***
“A vindima é a apanha dos cachos. Deve ter
lugar na altura em que a uva atingiu a
maturação completa. Este momento pode ser
determinado com rigor, desde que se recorra
ao gleucómetro de Guyot – tipo de areómetro
de volume variável e peso constante, munido
de três escalas…” - assim se lia na página
245 do livro “Mercadorias” (4ª edição da
Livraria Didáctica) de Leopoldino de Almeida
e Jorge Ferreira Matias para os alunos do
Curso Comercial.
Na primeira página das folhas de guarda,
escrita a tinta de caneta permanente, uma
citação do “Drona Parvah” (descoberta
onde?): “Não haverá sol, nem chuva, nem
pássaros no céu. Não haverá paz, nem calor,
nem amizade. Somente se ouvirão os lamentos
surdos e os gemidos roucos dos que morrem.
Tereis morte, loucura e peste. E tereis
desespero e fome. E tudo que havereis de ter
será pouco. E tudo será demasiado. Porque
vós não sabeis quem sois, nem os vossos
princípios conheceis.”.
***
Entrara em Espanha por Vilar Formoso.
Passara a seguir os vinhedos de Ciudad
Rodrigo e as estepes e morros frementes de
sol antes de Salamanca, até Medina del Campo
e os Montes Ibéricos. Os Pirinéus na noite
crescente, os lumes que eram vilas e cidades
e aldeias ao longe na largura de lugares que
nunca vira. E, depois dum semi-sono, as
luzes junto da água, um caminho de luz e
sombra e reflexos e era Bordéus e eram os
armazéns para os cascos enormes para todos
os lugares da Terra, para muitos sítios que
jamais verá a não ser em mapas amorosamente
guardados na estante grande.
Algumas ruas da cidade sob a Lua de Junho
com o seu traçado antigo como nos filmes de
d’Artagnan. E um café ao pé da paragem aonde
a camioneta se deteve por breves instantes e
dois clientes apenas na esplanada minúscula
que bebiam talvez Fanta ou limonada, ou Ice
Tea como numa tasca fina de Borba, mas não,
concerteza não - assim lho dizia o relancear
de retrato que lhes deitou - um qualquer
bálsamo dos corriqueiros ou especiais,
habituais dali enquanto a camioneta ia
abalando até que apanhasse o dia, correndo
já para os ares abertos na manhã da Grand
Prairie. |