obras em processo
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Alguns dos
poemas deste livro foram publicados em
revistas e jornais tais como: TriploV,
Decires (Argentina), Jornal de Poesia
(Brasil) Velocipédica Fundação, Botella del
Náufrago (Chile), El Establo de Pégaso
(Espanha), DiVersos, Carré Rouge (França),
Saudade, De Puta Madre (Espanha), Sibila
(Brasil), Abril em Maio, La Otra (México),
António Miranda (Brasil).
(Casa da
Muralha, Arronches, Dezembro de 2009) |
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TEXTOS MAQUINAIS |
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1 – Ossos, pele, vento e sangue em torno dos
anos que passaram. A vida. E também os
produtos da Terra que existem na nossa
memória: o perfil de hortas e pomares com as
figuras de que guardamos um sentido de
alegria e remorso, a doçura dum fruto
imaginado.
2 – Põe a mão sobre a página de um livro e
como se nada te oprimisse deixa-a repousar
enquanto lá fora ressoam vozes
desconhecidas. Talvez seja também assim que
se acariciam as palavras. Palavras como
coisas vulgares e repletas de amargura,
serenidade, um som de sino dentro do livro.
3 – Estás absolutamente só e é noite. Bebes
um copo de água e sentes o vidro de encontro
à palma da mão. A mesma com que tocaste a
página do livro. A mesma que te serviu para
tanta coisa bela e inominável. Se agora o
copo se despenhasse e partisse seria apenas
um ruído sem relevo na vasta casa sem
ninguém, mas contudo fervilhando de
presenças que jamais poderás abandonar.
4 – Não te levantes. Não te sentes. Não
comas, não espirres, não fales. O príncipe
da ilha vê-se naquele quadro onde as
estrelas são pedaços de metal simulado e não
rodeiam nada que não seja apenas um eco. Do
que disseste e não chegaste a dizer. Mas tu
falas, espirras, sentas-te e comes,
levantas-te e contigo se levanta o mundo e a
sua circunstância.
5 – O equilíbrio entre um mas, um que, um de
ou qualquer outra palavra é uma verdade que
nunca pudeste entender, que nunca quiseste
pronunciar. Por isso este escuro e este
calor não são mais que elementos de um
discurso destruído.
6 – Um universo de simulacros. Um momento de
pequenos gestos onde não se conta, mesmo que
penses o contrário, o brilho de um espelho
que não é mais que uma coisa, apenas uma
coisa insignificante. Sombria como tudo o
que já nada nos diz.
7 – Alguém conta: quando vinha de volta
enganei-me na estrada. Fui dar a um sítio
onde havia apenas lixo de objectos
inutilizados e quase podres.
E sem que se perceba porquê, uma sensação de
medo apodera-se dos convivas.
8 - Escrevo. Depois apago. Era demasiado
evidente. O som de uma máquina que num
edifício ronrona, geme, perfura a manhã.
Evocava uma rua sem ninguém, o rosto de um
garoto andando devagar e olhando as portas…E
de repente compreendo que tudo tinha um
significado diferente, que tudo existe no
todo, como algures a morte e a permanência.
9 – Um ferro de engomar junto ao caixote de
tábua meio partido. Um cesto de plástico e
outro de verga. E isto pode ser a revelação
de um mundo que nos responde a cada momento
se o soubermos interrogar entre quimeras e
violências.
10 – O mar. A água do mar. Espessa como o
óleo dum carburador, mas com uma estrutura
de areia ou de vinho forte. A água que
corrói, que lava e que serve para brincar,
para olhar com alegria ou soturnamente nas
praias das terras desertas. Nem sangue nem
magma, apenas algo que é bom sentir que
existe por fora, sob a lua e o sol.
11 – A terra. A terra que pisas e que vês: a
terra castanha das hortas, a terra clara dos
caminhos vicinais, a terra que é o contrário
do metal com que se fazem as máquinas que
andam sobre a terra e que vogam no espaço.
Metal que dela veio e a ela voltará, como a
carne dos homens e as sombras dos seus
pensamentos.
12 - Uma série de palavras vulgares, bem
como os olhares fortuitos e de relance sobre
as coisas do dia (casas e automóveis, um
rosto qualquer) e da noite (o negrume, a luz
de uma cidade ao longe, os astros nocturnos)
podem comunicar-nos a maravilha e a
estranheza dum momento – tal como se fosse a
súbita aparição dum mecanismo desconhecido.
13 – É a meia tarde. Nem um ruído se ouve
deste lado da quinta. Sob as figueiras
antigas, muito copadas, quase rentes ao
chão, o acaso e o tempo e o desmazelo dos
homens deixaram ficar pedaços de máquinas e
utensílios velhos, desconjuntados, como se
fossem esqueletos num campo crestado pelo
sol de Junho.
14 – “- Se fosses uma máquina, qual
gostarias de ser?”. O outro ficou interdito,
depois um pequeno sorriso surgiu como uma
porta que se entreabre: “Gostaria de ser uma
debulhadora, uma dessas que quando eu era
miúdo passavam perto da minha casa ao
crepúsculo. Estrondeavam e eu vinha a
correr, um pouco amedrontado mas fascinado e
só voltava a entrar quando se perdiam na
curva do caminho. Como um bando de feras ou
uma nave que passa no firmamento”. |
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Revista TriploV de Artes, Religiões e
Ciências, 5, Abril de 2010 |
NICOLAU
SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
[Monforte do
Alentejo,1949, Portugal]
Poeta,
publicista, actor-declamador e
artista plástico. Efectuou palestras
e participou em mostras de Mail Art
e exposições em diversos países.
Livros: “Os objectos inquietantes”,
“Flauta de Pan”, “Os olhares
perdidos”, “Passagem de nível”, “O
armário de Midas”, “Escrita e o seu
contrário” (a publicar). Tem
colaboração dispersa por jornais e
revistas nacionais e estrangeiros
(Brasil, França, E.U.A. Argentina,
Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com |
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