Alguns dos
poemas deste livro foram publicados em
revistas e jornais tais como: TriploV,
Decires (Argentina), Jornal de Poesia
(Brasil) Velocipédica Fundação, Botella del
Náufrago (Chile), El Establo de Pégaso
(Espanha), DiVersos, Carré Rouge (França),
Saudade, De Puta Madre (Espanha), Sibila
(Brasil), Abril em Maio, La Otra (México),
António Miranda (Brasil).
(Casa da
Muralha, Arronches, Dezembro de 2009) |
Há na
Literatura Policial um tema que é o clássico
dos clássicos: o quarto fechado onde algo de
inusitado se passou. Dentro, um morto.
Aparentemente, sem assassino. Inúmeras
variações, mas um só dado exacto: a
interrogação. De que maneira se oficiou?
Interrogação que pouco a pouco se vai
construindo/desconstruindo à medida que a
novela se desenvolve e progride. Objecto sem
construtor, criatura sem criador? Digamos:
como uma fotografia sem máquina ou como
máquina sem fotógrafo? Aparentemente, sim.
E, no entanto, a nossa razão e o sentido da
leitura (do jogo) dizem-nos que não pode ter
sido assim. Que tudo é pois simulação – como
nos retratos. E há outro corpo e outra
máquina: o leitor e o livro. Duas máquinas,
dois quartos, dois corpos, etc. Jogo de
espelhos que forjamos ao ler e assumimos ao
começar a ler (a fotografar). Em suma: no
plano estrito do relato, um como de que não
se conhece o porquê e naturalmente sem quem.
No
enigma do quarto fechado a máquina (o
quarto) tem algo lá dentro (o morto, a
fotografia) sem que tenha havido um dedo a
premir o botão. Ou antes, sem que a presença
desse dedo se tenha manifestado
indubitavelmente – dedo mindinho, polegar,
indicador? E teria mesmo havido um dedo (o
assassino)? Temos de o admitir. O que se
sabe (se intui) fica então pairando sobre o
que se não sabe, ou melhor: que se virá a
saber lá mais para diante, unindo-se então à
outra imagem em negativo.
Na
máquina fotográfica, uma vez retirado o
corpo de delito (o rolo impressionado) dá-se
um imenso vazio: o corpo morto (o
fotografado) vai entrar noutro mundo de
martírio – molhado, quimicamente macerado
para que esplenda de vida simulada. Um morto
torturado que só depois de trans-figurado
(des-figurado?) pode viver então de uma vida
equívoca (numa carteira, num dossier,
emoldurado ou plasmado numa medalha
ornamental, colado num suporte próprio,
trans-ferido quiçá para as páginas de um
jornal). O morto, no relato, vai ter as
circunstâncias da sua vida (da sua morte)
analisadas, dissecadas, descriptadas. Vai
ganhar exactidão, ou antes: vai ser o sinal
palpável de uma exactidão reconhecível,
forjadora de luz. A fotografia, por seu
turno, verá os sinais da sua realidade
transformarem-se paulatinamente, até
desaparecerem com o passar do tempo – com o
passar da luz. As inflexões, os pormenores –
os habilidosos detalhes da encenação do
crime – que a tornaram artística ir-se-ão
dissolvendo irrevogavelmente, tornar-se-ão
pertença e parte dum imenso território onde
impera o desconhecido. Mas, dado que tudo é
convenção (ficção dentro da ficção que um
texto ou uma fotografia não deixam de ser)
tudo está (fica) repleto dum sentido muito
próprio: há um como absoluto, mas sem
aclaramento (o flash) nunca se chegará ao
quem e ao porquê (como nos retratos: ao
olharmos para uma fotografia de nós mesmos é
como se nos olhássemos a um espelho do
passado, um espelho onde não nos conseguimos
reflectir; o direito é o esquerdo e
vice-versa, mas a foto está paralisada, faz
parte de um além imutável). Na fotografia
artística – vestígio de algo existente,
ainda que simulado – o porquê ocupa grande
parte da cena e antecede (justifica?) o quem
e o como. Ou seja: um morto (criatura,
retrato) que já não tem continente (a
máquina, o quarto) e que a prazo nem terá
(será?) conteúdo. Por outras palavras: a
criatura sem criador nomeável, comportável,
reconhecível.
Ao
entrar no quarto (aposento, mas também
câmara) o detective (a fonte de luz) começa
de imediato a destruir as simulações
engendradas pelo oficiante (o criminoso, o
fotógrafo), tal como a brusca aparição da
luminosidade ao penetrar na câmara escura
destrói a película fotográfica. Há pois que
saber preservar a dose apropriada de sombra
(o mistério do crime, o mistério que é a
matéria ela-mesma que conforma a escrita
enquanto elemento palpável). Depois de
solucionado, o enigma do quarto fechado
evidencia os limites da arte que o
possibilitou, ou seja, das encenações
perpetradas para iludir a verdade dos
factos: a realidade, que é o que os autores
(os assassinos) tentam transformar em algo
reconhecível (como uma foto).
A
literatura não será pois tanto a criação de
fantasmas (de negativos) mas o lançar de
fantasmas transfigurados (os negativos
transformados, reconvertidos, ou seja
retratos) no tráfego quotidiano, nos foros
da realidade. Tornando-os vivos dessa vida
esquiva, insólita e peculiar – fotografia
aproximada de algo que se sabe ilusório mas
fortemente ilustrativo. No princípio há o
espanto, o arrepio do mistério, à guisa do
que sentiam os primitivos fotografados.
Depois há a realidade, ou seja: a
imobilização da fantasia, em suma – o
retorno à Razão que subjaz à descriptação do
crime. Na fotografia artística forja-se
assim a perfeita imagem invertida do enigma
do quarto fechado ou, ainda melhor, a imagem
no espelho duma lente: acumulação de
simulações para iludir uma realidade
ultrapassada por flashes sucessivos (os
raciocínios sagazes do investigador).
Verdadeira acumulação de realidades
presuntivas feitas para propiciar uma
Realidade que é, afinal, só aparência, cópia
armadilhada de alguma coisa que só o
artista, o assassino, deu à objectiva a ver,
ou antes – que esta só viu através duma
máquina mortal. O assassino apoderou-se
desta maneira do corpo do assassinado e
expõe os seus vestígios a quem os quiser
ver.
Por
isso é que a fotografia é a arte obsessiva
deste tempo, um tempo de homicidas:
simulação encenada, não inocente – tal como
o autor do relato – reflexo duma exposição à
escuridão (a luz que mata, que não é a
iluminação mas a destruição do objecto
retratado) que qualifica o fotógrafo (o
criminoso) e a sociedade que o multiplica, a
sociedade de imagens em que vivemos.
Uma
sociedade que, ironicamente, exibe e protege
os sinais dos seus crimes (as fotografias).
Como se o quarto fechado assim ficasse
através dos anos, com o morto e os seus
sinais reproduzindo-se surpreendentemente no
exterior por um passe de mágica (uma
revelação).
Como,
digamo-lo assim, algo impresso na matéria
existente em quaisquer retratos mortos ou
vivos da possível eternidade. |