Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX OBRAS EM PROCESSO

obras em processo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Poesia Brasil

Banda Hispânica
Brasil

Incomunidade
Portugal

 

La Otra
México

TriploG
Portugal

Matérika
Costa Rica

 
 

 

 

Autores

Normas de publicação

Salão do Folhetim
 
 
 
 

 

NICOLAU SAIÃO

ESCRITA E O SEU CONTRÁRIO

 

 

INDEX

 

Alguns dos poemas deste livro foram publicados em revistas e jornais tais como: TriploV, Decires (Argentina), Jornal de Poesia (Brasil) Velocipédica Fundação, Botella del Náufrago (Chile), El Establo de Pégaso (Espanha), DiVersos, Carré Rouge (França), Saudade, De Puta Madre (Espanha), Sibila (Brasil), Abril em Maio, La Otra (México), António Miranda (Brasil).

(Casa da Muralha, Arronches, Dezembro de 2009)

CARTA DE SAMYAZA RAFACALE AO SEU AMIGO AZAZELO EYQUEM DE REICHNAU, DUAS SEMANAS APÓS TEREM POUSADO NO PLANETA NÚMERO TRÊS A QUE CHAMARAM EUROBOROS E ANTES DA MUDANÇA DE ESTAÇÕES A QUE DEPOIS SE IRIA CHAMAR INVERNO/PRIMAVERA

FALA DO PASTOR NO DIA SEGUINTE

O QUE OS OLHOS NOS DÃO

CARTA DE SAMYAZA RAFACALE AO SEU AMIGO AZAZELO EYQUEM DE REICHNAU, DUAS SEMANAS APÓS TEREM POUSADO NO PLANETA NÚMERO TRÊS A QUE CHAMARAM EUROBOROS E ANTES DA MUDANÇA DE ESTAÇÕES A QUE DEPOIS SE IRIA CHAMAR INVERNO/PRIMAVERA

  Caríssimo: 

  Não é preciso dizer-te que isto a princípio foi monótono: amarração, desprendimento, notação de azimutes, um pouco da Teoria dos Contínuos, muita indecisão entre ficarmos mesmo na ilha ou irmos até ao continente que se divisava, horas altas, para além das montanhas com as suas cúpulas de neves eternas que pareciam sair da neblina que a certas alturas do dia cobria o mar.

  O comandante Theos Gallipoli (tu sabes, o tal que depois foi nomeado pelo Conselho logo a seguir ao conflitozinho com os de Inergaum o que se calhar até foi por cunhas mas não vamos agora por aí) deu ordem para que a princípio ninguém saísse, o que constituiu uma estucha que tu nem calculas. No entanto, a breve trecho teve de se deixar de coisas, até porque depois de tanto tempo de navegação a malta estava realmente atormentada. Um dia vi materializar-se, mesmo na minha frente, a figura de meu tio Asmodeu, como sempre com um copo de boa pinga na dextra enquanto recitava pausadamente a partir dum velho manuscrito que balançava na sinistra: “A vós, os embusteiros, que o infinito passou a provérbio / direi apenas que havereis de ver / num canto do jardim   e às escondidas / uma simples cadeira / um artefacto / para as mais formosas, aquelas / que melhor irão dançar. Nos anos a vir / vos serão revelados /os certos e justos condimentos sobre as mesas: / só sangue numas / só terra noutras mais / E por isso havereis de as mãos passar/ sobre as colchas das alheias camas / em quartos serenos e alegres. Havereis de saber / que a vossa imagem está por detrás / só de branco ou de negro vestida / Como vosso pai venerável / num outono ou num verão / sem intervalos nem sonhos.”. Pareceram-me palavras proféticas, mas não o vou jurar. Em todo o caso posso garantir que não se tratou dum holograma nem mesmo duma projecção mental daquelas que o velho Mummu Tiamat, disfarçado de deus do Caos, nos propiciou para nos chatear aquando da nossa viagem a Bifrons, quando eu ainda era tenente e tu um oficial geómetra. (Belos momentos ali passámos, lembras-te meu colhudo, cala-te já !). Jamais te mostrarei, asseguro-te, a fealdade do mal, falam-me em que há por aqui uns cabelos negros um pouco encaracolados e é verdade, uns olhos assim deste tamanho, ai ai, dizendo com o espírito que encontramos nos melhores momentos, em resumo traduzo-te sem querer ter graça e é garantido: o Samael está a perder as penas da asa direita, mas adiante. Ia eu dizendo que as Obras do Tempo nos fizeram passar de um plano a outro, então eu fui ter com o comandante e resolvêmos que iria eu e vinte e seis outros, a princípio, apalpar o ambiente. Tudo gente de gabarito, estupenda tripulação, o Lucy à última da hora também se propôs ir connosco eu tinha entrado no vaivém e lá foi ele num ápice a buscar o escafandro e o capacete de esmeralda, afinal não iria fazer falta a aragem engole-se que é um regalo. Era já noite entrada quando aterrámos. Uma lua de intensos raios iluminava tudo. Ouviam-se risos para noroeste. Um som de flauta, um zumbido intraduzível que te posso apenas sugerir, falta-me jeito para profeta de certos mesteres triviais, mas crê que era tudo uma nova volúpia. No écran da esquerda nada se via. O da direita ficara iluminado a valer. Como sabes sempre enjoei um bocado a altas velocidades, mas o que se divisava era duma beleza inigualável: jornadas de trinta mil quilómetros, upa, sou capaz de me aguentar daqui até lá sem beber água, quando deixámos de pairar sobre as vagas as flores vieram todas, como doidas, pousar-nos nos cabelos e de repente achei-me sem ar, sem negrume, sem apetite, rodava como uma bola de vidro, entrava na velhice, coçava-me sem dar por isso e de repente tudo acabou. Tínhamos chegado.

  Eram tendas, tendas e cabanas de tijolo. Perto, um ribeiro repleto de canaviais, salsa e hortelã, outras ervas banais e benignas, ovelhas e cabras, um ou outro cavalo, meia dúzia de burros. E seres a que depois chamámos homens.

  De modo que cá estamos vai já para três semanas e, crê no que te digo, ainda nem sequer apresentei relatório. Como, bebo, até me parece que engordei um bocado. Das sete às nove leio sobre a teoria das coisas plásticas. Eles acreditam em feitiçarias, banham-se de manhã nas águas mais profundas, uma das morenas até me vai ensinar a pescar. Pelo meu lado, ensino-lhe a ciência dos cosméticos. É taful, mexe-se que é um regalo e gosta de me ouvir contar-lhe balelas. O pai é cameleiro e nunca viu mais mundo que o que termina no horizonte. O seu antepassado, um tal Enkidu, ensinou-lhe a fazer vinho e a tecer a lã, eu já lhe dei umas noções de ourivesaria e creio que dará um bom ferreiro. Vamos a ver.

  O Beemoth vi-o ontem: ia de braço dado com uma garina esbelta mas de boa peida, olhos rinchões, tás a ver. Veremos o que isto dá. Logo comunico com o lar pelas ondas alfa, dá certo conforto ver o pontinho de luz lá no alto, mesmo sendo um sacripanta o comandante irá gostar disto aqui, insisti com ele para que descesse. Há por estes sítios gente com interesse, têm muitas virtualidades fora a inocência, não sei ainda se daqui a uma semana iremos passar para as terras do lado de lá do deserto.

  Há bocado ofereceram-me um assado de pavão real. Acompanhei-o com um moscatel que não te digo nada. Sinto-me cheio de genica, o Iblis vai retransmitir isto em diferido.

  Abraça-te sem sofrimento, mesmo levando em conta a ausência, o teu velho

 Samyaza, o língua ágil

FALA DO PASTOR NO DIA SEGUINTE

Eu estava era de manhã quase junto ao casebre baixara-me
para desapertar a corda de esparto do pescoço da cabra
Não o vi chegar mas ele viera a pé
O assobio delicado entredentes quase um sopro
Retraído para que não me assustasse

Fiquei a olhá-lo era grande a minha tristeza no entanto
não sentia nem melancolia nem receio Apenas soltei um suspiro uma espécie de riso
um pouco talvez de divertido pasmo
Ao longe o sol de Março Ao longe o brilho de uma árvore
Piscou-me o olho O seu rosto estava na meia sombra
A cabra quedara-se como estátua agora roçava-se-lhe na perna

Segui-o Ele entrara na casa
Os meus passos como se ressoassem em chão de tábua.
Pousou a mão sobre a mesa um sobressalto de pó
erguera-se a um canto.
Não lhe olhei nem as mãos nem a testa requeimada
que um vinco de sangue sulcava
Sabes? perguntou com a voz enrouquecida
e todavia clara Um certo ar de perplexidade
Alguma daquela gente não era de facto gente de bem
Enchi um copo com o vinho que me sobrara da véspera
Sabes? disse-me então e limpava a boca com um dedo
Alguns deles não sabiam de facto o que diziam
Teriam sabido o que faziam?
Poderei doravante carregar este destino? pensei eu
E contudo a resposta já eu a conhecia.

E ali ficou sentado. As mãos abandonadas no regaço. E a amargura
entrou em mim.

Ao sair
olhei a cabrinha que se chegara trémula junto da porta
Olhei-a como se do seu pelo um clarão negro se soltasse
Olhei-a e senti o mundo parado para sempre.

E assim o vi eu depois que regressara de entre os mortos.

O QUE OS OLHOS NOS DÃO

Poucos dias depois
os afagos do vento eram pequenas pedras
salpicos, sedimentos ruídos no silêncio
na luz filtrada.
Então, avancei-lhe com o fumo

Os deuses todos à porfia
- autocarros e placas como sinais funestos
emanações de vozes
murmúrios lancinantes:
a senhora do canto um yogurt esmagado.
Então, avancei-lhe com o riso

O latim que se esquece e as contas por pagar,
mãos que batem, obscuras pés carregados de sono
cabeleiras ligeiramente balançando
como obscenas frágeis aves mortas.
Então, avancei-lhe com a chuva

Rostos sempre de lado, o barulho que faz
como que um circuito por onde o ar se escapa
para este mundo e o outro.
Então, avancei-lhe com o grito

A tua forma agitada. A noite mais que esboçada.
A refeição igual à invisível fadiga
e o rumor que adormece estendido no escuro
Então, avancei-lhe com a lonjura

Mas dirijo-me ao doce contaminar da multidão
- tudo agora já livre e jamais consumado
Construída nudez. Submissa sonolência
como se nada os salvasse.
Então, avancei-lhe com o conforto

E com essa passagem que a eles vai direita
e se torna no seu impreciso país
E com a neblina
e o desconsolo

Porque tudo se recolhe
e oculta na sombra viva
Fecunda solitária

e há muito tempo fria.

Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências, 5, Abril de 2010

   NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com

CONTATOS

 
site search by freefind advanced

Maria Estela Guedes
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande | Portugal
estela@triplov.com

Floriano Martins
Caixa Postal 52874 - Ag. Aldeota
Fortaleza CE 60150-970 | BRASIL
floriano.agulha@gmail.com

Portugal Brasil
Fortaleza | Britiande
Britiande 27.08.09

©
Revista TriploV
Português | Español | Français