Alguns dos
poemas deste livro foram publicados em
revistas e jornais tais como: TriploV,
Decires (Argentina), Jornal de Poesia
(Brasil) Velocipédica Fundação, Botella del
Náufrago (Chile), El Establo de Pégaso
(Espanha), DiVersos, Carré Rouge (França),
Saudade, De Puta Madre (Espanha), Sibila
(Brasil), Abril em Maio, La Otra (México),
António Miranda (Brasil).
(Casa da
Muralha, Arronches, Dezembro de 2009) |
Caríssimo:
Não é preciso dizer-te que
isto a princípio foi monótono: amarração,
desprendimento, notação de azimutes, um
pouco da Teoria dos Contínuos, muita
indecisão entre ficarmos mesmo na ilha ou
irmos até ao continente que se divisava,
horas altas, para além das montanhas com as
suas cúpulas de neves eternas que pareciam
sair da neblina que a certas alturas do dia
cobria o mar.
O comandante Theos
Gallipoli (tu sabes, o tal que depois foi
nomeado pelo Conselho logo a seguir ao
conflitozinho com os de Inergaum o que se
calhar até foi por cunhas mas não vamos
agora por aí) deu ordem para que a princípio
ninguém saísse, o que constituiu uma estucha
que tu nem calculas. No entanto, a breve
trecho teve de se deixar de coisas, até
porque depois de tanto tempo de navegação a
malta estava realmente atormentada. Um dia
vi materializar-se, mesmo na minha frente, a
figura de meu tio Asmodeu, como sempre com
um copo de boa pinga na dextra enquanto
recitava pausadamente a partir dum velho
manuscrito que balançava na sinistra: “A
vós, os embusteiros, que o infinito passou a
provérbio / direi apenas que havereis de ver
/ num canto do jardim e às escondidas /
uma simples cadeira / um artefacto / para as
mais formosas, aquelas / que melhor irão
dançar. Nos anos a vir / vos serão revelados
/os certos e justos condimentos sobre as
mesas: / só sangue numas / só terra noutras
mais / E por isso havereis de as mãos
passar/ sobre as colchas das alheias camas /
em quartos serenos e alegres. Havereis de
saber / que a vossa imagem está por detrás /
só de branco ou de negro vestida / Como
vosso pai venerável / num outono ou num
verão / sem intervalos nem sonhos.”.
Pareceram-me palavras proféticas, mas não o
vou jurar. Em todo o caso posso garantir que
não se tratou dum holograma nem mesmo duma
projecção mental daquelas que o velho Mummu
Tiamat, disfarçado de deus do Caos, nos
propiciou para nos chatear aquando da nossa
viagem a Bifrons, quando eu ainda era
tenente e tu um oficial geómetra. (Belos
momentos ali passámos, lembras-te meu
colhudo, cala-te já !). Jamais te mostrarei,
asseguro-te, a fealdade do mal, falam-me em
que há por aqui uns cabelos negros um pouco
encaracolados e é verdade, uns olhos assim
deste tamanho, ai ai, dizendo com o espírito
que encontramos nos melhores momentos, em
resumo traduzo-te sem querer ter graça e é
garantido: o Samael está a perder as penas
da asa direita, mas adiante. Ia eu dizendo
que as Obras do Tempo nos fizeram passar de
um plano a outro, então eu fui ter com o
comandante e resolvêmos que iria eu e vinte
e seis outros, a princípio, apalpar o
ambiente. Tudo gente de gabarito, estupenda
tripulação, o Lucy à última da hora também
se propôs ir connosco eu tinha entrado no
vaivém e lá foi ele num ápice a buscar o
escafandro e o capacete de esmeralda, afinal
não iria fazer falta a aragem engole-se que
é um regalo. Era já noite entrada quando
aterrámos. Uma lua de intensos raios
iluminava tudo. Ouviam-se risos para
noroeste. Um som de flauta, um zumbido
intraduzível que te posso apenas sugerir,
falta-me jeito para profeta de certos
mesteres triviais, mas crê que era tudo uma
nova volúpia. No écran da esquerda nada se
via. O da direita ficara iluminado a valer.
Como sabes sempre enjoei um bocado a altas
velocidades, mas o que se divisava era duma
beleza inigualável: jornadas de trinta mil
quilómetros, upa, sou capaz de me aguentar
daqui até lá sem beber água, quando deixámos
de pairar sobre as vagas as flores vieram
todas, como doidas, pousar-nos nos cabelos e
de repente achei-me sem ar, sem negrume, sem
apetite, rodava como uma bola de vidro,
entrava na velhice, coçava-me sem dar por
isso e de repente tudo acabou. Tínhamos
chegado.
Eram tendas, tendas e
cabanas de tijolo. Perto, um ribeiro repleto
de canaviais, salsa e hortelã, outras ervas
banais e benignas, ovelhas e cabras, um ou
outro cavalo, meia dúzia de burros. E seres
a que depois chamámos homens.
De modo que cá estamos vai
já para três semanas e, crê no que te digo,
ainda nem sequer apresentei relatório. Como,
bebo, até me parece que engordei um bocado.
Das sete às nove leio sobre a teoria das
coisas plásticas. Eles acreditam em
feitiçarias, banham-se de manhã nas águas
mais profundas, uma das morenas até me vai
ensinar a pescar. Pelo meu lado, ensino-lhe
a ciência dos cosméticos. É taful, mexe-se
que é um regalo e gosta de me ouvir
contar-lhe balelas. O pai é cameleiro e
nunca viu mais mundo que o que termina no
horizonte. O seu antepassado, um tal Enkidu,
ensinou-lhe a fazer vinho e a tecer a lã, eu
já lhe dei umas noções de ourivesaria e
creio que dará um bom ferreiro. Vamos a ver.
O Beemoth vi-o ontem: ia de
braço dado com uma garina esbelta mas de boa
peida, olhos rinchões, tás a ver. Veremos o
que isto dá. Logo comunico com o lar pelas
ondas alfa, dá certo conforto ver o pontinho
de luz lá no alto, mesmo sendo um sacripanta
o comandante irá gostar disto aqui, insisti
com ele para que descesse. Há por estes
sítios gente com interesse, têm muitas
virtualidades fora a inocência, não sei
ainda se daqui a uma semana iremos passar
para as terras do lado de lá do deserto.
Há bocado ofereceram-me um
assado de pavão real. Acompanhei-o com um
moscatel que não te digo nada. Sinto-me
cheio de genica, o Iblis vai retransmitir
isto em diferido.
Abraça-te sem sofrimento,
mesmo levando em conta a ausência, o teu
velho
Samyaza, o língua ágil |