Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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NICOLAU SAIÃO

ESCRITA

E O SEU CONTRÁRIO

 

 

INDEX

 

Alguns dos poemas deste livro foram publicados em revistas e jornais tais como: TriploV, Decires (Argentina), Jornal de Poesia (Brasil) Velocipédica Fundação, Botella del Náufrago (Chile), El Establo de Pégaso (Espanha), DiVersos, Carré Rouge (França), Saudade, De Puta Madre (Espanha), Sibila (Brasil), Abril em Maio, La Otra (México), António Miranda (Brasil).

(Casa da Muralha, Arronches, Dezembro de 2009)

E depois eu escrevi:  Jules Morot 

Às vezes é fácil olhar em volta e ver o quê? Talvez tudo, talvez nada. O grande e sonoro mundo das existências desesperadas, prazenteiras ou sujeitas à confirmação dos momentos de angústia. Aquilo que, não sem certa dose de ingenuidade, se costuma convocar sob o nome de quotidiano Então, por vezes, aparece a escrita. As escritas, porque aqui trata-se de existir em diversos tons.

Mas de que falo eu? Desse excelente amigo um pouco amável, um pouco cínico, que nos conta histórias para rir ou para chorar? Ou da senhora amargurada que nos revela histórias íntimas e muito cómicas à força de serem trágicas? Não, seria demasiado simples, demasiado irrisório virem desinquietar-nos com semelhantes ninharias. As nossas não são épocas amenas, o próprio ambiente nos prega partidas inesperadas, uma parede que cai, um braço ensanguentado no vão duma porta, um vulto inquietante lá no princípio do bosque, aí mesmo, no sítio onde um renque de dálias nos chama à beleza de um fortuito momento de plenitude.

E depois há o cansaço. O desapego de muitas deambulações. Algumas figuras mortas que de súbito nos pesam como montes de cinza, nos estorvam como matagais insustentáveis.

E então, de repente, há a poesia.

Não a que se consegue depois de um paciente exercício de interiores bem habitados, nem sequer a que nos aparece, sem que a esperemos, convocada por indizíveis rituais de amorosa persistência, mas a que de repente explode e nos aguarda e nos atira um olhar de viés e se cola aos nossos passos como se daí dependesse tudo, a nossa vida, a nossa morte, todo um conjunto de poderosas nostalgias em que nos sentimos senhores e servos, o mar e a estepe, a certeza de que tocámos muitas coisas proibidas. Por exemplo, a sageza. Ou, o que é o mesmo, a rota que nos leva do riso desgarrador ao silêncio mais melancólico.

Nestes poemas coexistem uma raiva e uma ternura muito peculiares. Elas são feitas de ritmos em que se misturam coisas grandes e coisas pequenas, a amargura, a alegria, os desencontros, a devastação de um mundo, o medo e a surpresa indemne, o conhecimento que bem pode por vezes visitar-nos. Mas nunca o desencanto. E nunca a indiferença.

Mas também o amor. Se não em existência, pelo menos em potência. Ou em expectativa.

Ou em perfil, ainda que feito só de penumbra ou, até, de irrisão. Porque somos feitos de muitas ausências, será bom que nos precatemos. À solta, muitos animais incoerentes arrastam-se dissimuladamente na nossa direcção. Há que responder-lhes, não deixando para trás numerosas e sólidas figurações com que nos possam fixar. Neste terreno de suspeitas e escaramuças, conservemos a nossa boa estrela.

Porque o silêncio vazio tenta por vezes situar-nos e nós fomos feitos para as vozes. Ainda que tenuemente, ou melhor, sem vermos que rente ao nosso corpo corre já uma outra luz, ou outro sopro de vento que nos dará, compassivamente, alguns minutos mais para nos acrescentarmos à existência. Porque se trata de existir tanto quanto possível em plenitude.
E ela, acreditai-me, significa.



La Jolle (Toulouse), Junho de 2008

Trad. JOÃO GARÇÃO

Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências, 5, Abril de 2010

   NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com

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