O pormenor está em ouvir ainda que
Breton defendesse um dia que o que era
preciso, para chegar ao último estádio da
Obra – discretamente, falo por símbolos… -
era um superior mergulho na grande ausência,
aquele estado de distracção fervilhante
capaz de levar o poeta, ou o fulano por
extenso, pelo mar ou a planície de casas,
corpos, intensidades bruscas, sentimentos e
esperas. O viandante transformar-se-ia,
assim, num telescópio – ou num microscópio,
porque o grande e o pequeno incluem-se e o
que está em baixo é como o que está em cima
– navegando como uma escuna que recebesse no
casco o embate dos habitantes dos oceanos,
os ventos de longe, o fulgor dos astros
ainda inocentes.
Mas refiro-me a ouvir tudo. Os ritmos
secretos da Terra? Sim, mas parece-me que
foi chão que deu uvas, a acreditar em anos e
anos de má literatura ou, mais grave, de más
consciências transbordadas em “gestos
cívicos” a dar por um pau, amores
próprios e alheios, corridas pedestres.
Jogging, como se diz. A verdade, aqui
para nós, é que não existe segredo que
contemple, por banda dos deuses da escrita,
o ligeiramente ingénuo sujeito que se ponha
ao trabalho: a corte celeste será então de
loucos ou de poetas absolutos e não seria
demasiado pensar que Diana ou Artemisa, no
intervalo dos seus “affaires”
normais, compusessem olhando em volta com
certa angústia uma ode, um alongado canto
onde se mesclariam porventura os lamentos
por um planeta perdido, ou por uma terra
distante, ou simplesmente uma interrogação
mais ou menos rendida de como se encontra a
chave do mistério – que segundo parece não
entra todavia em nenhuma fechadura.
Digo para mim entredentes: passemos por
esta rua, hoje o sol abriu contra os muros
das velhas casas claridades insuspeitadas.
Entreguemo-nos por alguns minutos às nossas
selvagens alegrias. Façamos de conta que a
literatura não existe e que sentarmo-nos num
banco, no antigo Jardim da Corredoura, não
traz imediatamente à lembrança uma página de
Bulgakov, quando Margarita contempla o
despertar de Moscovo e em sua volta se movem
estranhas influências que iriam culminar no
grande baile de Satã onde os sete palmos da
existência e as cinco dimensões teriam uma
palavra a dizer. Mas a literatura existe e é
escusado querermos afastar as suas
reminiscências.
Afastar é como quem diz, porque não se
dispensa a música ao longe seja qual for o
sentido que se lhe dê. Resumindo: quem iria
dizer (pensar, o que vai dar no mesmo) que o
Tio Brandão era farda? Por estranho que
pareça, ou não – e nisto os Liceus é que têm
a culpa - só por volta dos vinte e muitos
soube que o nosso homem era oficial do
Exército. O que aliás não tem mal nenhum,
acentuo. Pode ser-se militar quase como se é
pasteleiro ou director dum clube de
críquete. E os futebolistas canadianos que
participaram com pundonor no campeonato do
mundo no México, ou coisa, não eram
empregados-de-balcão, advogados, estudantes
e por aí fora?
Vou então ficcionar por uns momentos. E
atribuir profissões desencontradas a este,
aquele, aqueloutro. Por exemplo: Tolstoi
como jornalista no “Expresso”; Marco Aurélio
como escriturário em Queluz ou Campo Maior;
Camilo como farmacêutico num estabelecimento
em Lisboa; Proust como árbitro de andebol
nos momentos livres e, para ganhar a
sopinha, primeiro-oficial num município;
Abelaira como gerente duma casa de fados e,
para espairecer, pintor de domingo nos
intervalos das escritas; Eça de Queiroz,
odontologista em Montemor-o-Novo; Pessoa,
evidentemente, funcionário do FAOJ destacado
em Sintra; Marguerite Yourcenar, professora
de História em Beja; quanto a Rimbaud seria
excitante imaginá-lo por uns segundos aluno
da Faculdade de Letras alfacinha, assim como
será difícil resistir a congeminar Flaubert
como médico de senhoras em Elvas ou
Alenquer.
Se, como alguns excelentes críticos
pretendem, os axiomas são desmontáveis mais
que não seja dentro das suas cabeças, a
suprema festa seria então abandonar os
textos ao seu destino. E teríamos: “O
vermelho e o preto” por David
Mourão-Ferreira; “A morgadinha dos
Canaviais” por Witold Gambrowicz; “Por quem
os sinos dobram” de José L. Peixoto;
“Histórias do fim da rua” por Chateaubriand;
o “Só” de Saint-John Perse; finalmente, “A
vida em Middlemarch” por Ramalho Ortigão.
Imaginemos mais um pouco: não haveria
maneira de se entretecerem as escritas?
Assim, as frases iniciais de “O deserto dos
tártaros” poderiam enroscar-se a dado passo
num trecho de “A Cartuxa de Parma”; e o
“Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de
linho” não ficaria descabido,
convenientemente acomodado, numa página de
Jorge Luís Borges. E o conflito moral de
“Beau Geste”, antes e depois de ir para a
Legião Estrangeira? Pelo andar que as coisas
levam não seria de estranhar vê-lo na
escrita sugestiva e ágil daquele romancista
que ficou tão galhardo em telenovelas.
Leio, dos “Princípios” de Eyrinée Philalète,
o décimo-terceiro e não porque tenha
simpatia pelos números ímpares: “Encontrando-se
as coisas assim dispostas, colocai o ovo
onde estiver a vossa matéria nesse forno e
dai-lhe o calor que a Natureza pede, isto é,
fraco e não demasiado violento, começando
aonde essa Natureza o deixou. Não deveis
ignorar que a dita Natureza deixou a vossa
matéria no reino mineral e que, embora nós
tiremos as nossas comparações dos vegetais e
dos animais, é necessário contudo que
concebais uma relação apropriada ao reino no
qual está colocada a matéria que quereis
trabalhar(…)”. Se o romancista é alguém
para quem nada está definitivamente perdido,
como se disse (com propriedade? sem
propriedade?) o truque estaria porventura em
efectuar passages à tabac aos
sentimentos, às sensações, às alegrias e aos
infortúnios. Como nas batalhas em jogos de
computador. Mas como os jogos são todos de
vida ou de morte, quer sejam no interior do
núcleo (a palavra, leia-se) ou no grande
exterior (ainda a palavra, previno) deixemos
o Norte a norte, o sueste a Sueste e os rios
correndo franca e limpidamente para a sua
foz.
Raul Brandão era pois militar? Era militar
e ainda bem – e nem sequer lhe foi preciso,
como a Mac Orlan, ter ido para os
aquartelamentos legionários no deserto. Foi
o que no seu teatro próprio melhor lhe
quadrou (porque foi dess’arte e não doutra
maneira) de resto parece que ao mandar os
taratas efectuar “esquerda ou direita
volver” acrescentava frequentemente “se
me fazem o favor”. Reminiscências, dirão
os mais experientes em tratos místicos, dos
hortos de uma certa Arcádia, da pureza das
areias argelinas ou da serenidade das
planícies de Saskatchewan.
Não sei, não quero opinar e além do mais as
partidas é como se as tivéssemos, já, todas
ganhas.
Aqui ou em Sidi-bel-Abbès. |