Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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NICOLAU SAIÃO

 

A Caixa de Pandora

 

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2. Gilgamesh ou a aposta impossível

Seria fácil imaginar um tigre a comer erva, assim como um cordeiro a engolir a pitança. Todavia… Todavia estou a lembrar-me, ao calhar dos minutos, daquela célebre hipótese de Mark Twain: “Se Moisés não tivesse existido, teria existido decerto outro indivíduo com o mesmo nome”. E funções, evidentemente, acrescento de minha lavra. Aqui, entra Chesterton em cena, peso-pesado das metafísicas ligeiras mas reconfortantes: “Eu nunca minto, a não ser que seja absolutamente necessário”. Pois, é como na História não reciclada pelos descendentes ou herdeiros de Walt Disney. Velha mania de ocupar os lugares todos, de preencher o tal vazio assustador dos metafísicos? Ou apenas sensatez suficiente para que saibamos, definitivamente, que onde está um baú não pode estar uma cadeira de baloiço, assim como onde está um inteligente não podem estar sete idiotas?

Em trocos miúdos: o que se aponta é de facto para o simulacro da “hybris” revista pelos sucessivos concílios. Esses tais que nos quebraram a cara como o faria um soco de pugilista desempenado, sem que no entanto em simultâneo nos tratassem da alma que como se sabe se multiplica nas celestes moradas em graus de aperfeiçoamento singular. Questão intemporal de ascensões no etéreo, digamos, ou de quedas corporais. Ou, melhor ainda, o apelo fascinado de certos mundos paralelos que nos oferecem a ciência e a religião oficializadas, certas paisagens serenas ou infernais cuja traça se ergue para logo se desmoronar, como em Hollywood.

Aqui entre nós, que pouca gente nos escuta: quem é que não sonhou ainda em mudar de rota, uma vez por outra, mesmo sabendo que o ser-se isto implica necessariamente não se ser aquilo, sendo a Vida como é (ao que alguns dizem com sensatez maldosa)  não propriamente uma escolha mas a impossibilidade de se terem dois destinos?

Com o que, pelo que, conclui-se sem mais demoras que um tigre a comer erva só nos anúncios da margarina Custódio ou do automóvel Tortilha. Ou nas estórias da Carochinha que os malabaristas da coisa pública, finamente, nos distribuem pelas rádios e têvês.

Digamos com certa inocência, como nas doces festas de anos de antanho: saibam lá vossências que há pouco tempo atrás um sábio que é também robusto memorialista – trata-se de François Jacob – assinalou que a existência mais parece coisa de biscateiro que de engenheiro, mesmo genético. As somas eventuais não apagam nem destroçam e muito menos repelem o já construído. É no género do “Blade Runner” ou dos fabulosos bricabraques de Tinguely. Coisa de truz – e eu fico-me um bocado a rir das tiradas dos que compenetradamente afirmam nos media que estão muito atentos e um pouco trémulos ante a possibilidade de se multiplicarem em provetas os hitlers, os stallones e outros hermanjosés. Mas não foi sempre a sociedade, além da ciência e das técnicas que lhe estão nos arrabaldes, uma perigosa brincadeira? Se no próprio laboratório do Éden, onde os elohins oficiavam… - mas deixemos isso por ora.

Creio que fará sentido concordar com Thomas Mann quando este refere, nos intervalos do seu sonho montanhês, que ao nível das concreções superiores existe como que uma actuação alquímico-hermética do coração humano, uma renovação de todas as fibras do ser que nos força a ir em busca do conhecimento capaz de nos fazer compreender que os passeios pelas margens dos rios, as idas ao cinema ou ao circo de mão na mão, o acordar no azul penumbroso dum quarto às três da tarde ou às quatro da manhã são o equivalente de coisas que a mística só pode explicar de forma aproximativa. (Dantes agia-se de forma expedita e suave: calabouço com eles e uma eventual passagem pelas brasas). E talvez faça sentido, também, meditar nesta frase de Nietzsche que, como num espelho mágico, nos diz lá do fundo: “Há alguns que nunca se tornam doces e apodrecem mesmo no Verão. Só a cobardia os sustenta no ramo”. E antes de entrarmos no fato bem passado da angústia existencial, vistamos por baixo uma camisola barata de senso comum: “Quando eu tinha vinte anos, diziam-me: hás-de ver quando tiveres quarenta anos! Pois bem: tenho quarenta anos - não me mostraram nada”. (Benjamin Péret).

Venham cá dizer-me que a metafísica é uma serena imanência! Não os acreditarei, com mil bombas. Seja no masculino ou no feminino. Porque os deuses têm cara de tarráqueos nestes tempos que vão correndo. Quer dizer; antes de subirem aos céus experimentam em nós os seus destinos; não falando - porque isso dá excomunhão mais ou menos democrática - no cultivo intensivo e na intensa proliferação de santos, aspecto que não será de desconsiderar. Na verdade é tudo uma questão de símbolos.

Eis senão quando que Gilgamesh, por causa das vozes de sempre (já com Joana d’Arc irá ser alegadamente o mesmo incómodo) se decidiu a tomar da capa e do porrete e abalar para o deserto. Ia em busca da flor azul, como nos contos de fadas? Parece que não, o que estava em causa era tão só a imortalidade e não a saúde e a cura por extenso (úlceras, cegueira, tiro de pistola no flanco, enfarte de miocárdio). E então deu-se que Enkidu, ser primordial e selvático, inocente como um padre cura do breviário, lhe apareceu pela frente – os braços peludos de atleta, os olhos de vedeta das matinés adolescentes, a naturalidade de futebolista ferrabraz, a figura talhada ao jeito das fitas de Spielberg… e foi o coup de foudre conforme reza nas tábuas de barro. Coisa mística, de resto, como nos conta a seguir um velho papiro (apócrifo?). Saborosa e interdisciplinar.  Contudo…

Contudo, como já cá se ficou sabendo, os cordeiros não comem carne e os tigres muito menos tasquinham a ervinha tenra. Gilgamesh, algo ingénuo e estupefacto, viu aparecer de chofre coisas adustas no corpinho empolgado de Enkidu: tinha de se render à evidência, a metafísica às vezes fica claramente ultrapassada pelas circunstâncias do momento em tempo real, a filosofia e os textos pré-diluvianos são muito bonitos mas não servem, de todo, em determinadas ocasiões: Gilgamesh, com a personalidade enrodilhada, as roupas num farrapo, começou a perceber que Enkidu não era tão angélico e abstracto como nas ficções, mais parecia um gigolo do Parque Mayer, a braguilha desapertava-se-lhe em alturas muito impróprias e um arfar suspeito punha-se a trabalhar como um motor de avioneta. Gilgamesh concluiu então que os mitos são coisa fina mas não safam a virtude de um homem de brios, co’os diabos. Tratou, rapidamente, de se pôr a andar enquanto dizia de si para si que é inútil um zé-maria enlear-se no golpe da mágica/mitológica compreensão absoluta com um zé-antónio, porque então o zé-antónio transforma-se noutro zé-maria e tudo volta ao princípio. Circular, como nas fábulas iniciáticas.

De sorte que o nosso herói, já com a escolaridade pessoal toda empinadinha, aprofundou-se finalmente pelo rosto da deusa, que mais adiante no relato o esperava a pé firme. “Será este pois o sentido da Estória que se conta depois do repouso do Senhor, quando Adão viu, entre assustado e divertido, o pirilau crescer com denodo ao contemplar o fruto da sua costela?” perguntará, do lado, o leitor com ironia.

Na verdade, o andrógino inicial é coisa com certa piada, talvez, mas só faz sentido nos contos de proveito e exemplo mediante os quais se chega a conclusões diametralmente opostas consoante se for anjo ou demónio. Enoch sabia disso (e era esta a sabedoria dos antigos escribas, que só por irrisão se crismariam de hipnotizados. Adiante). O que realmente faz brilhar as pupilas da existência, essa existência séria que o grande Humboldt tão bem escrutinou, é o facto de haver opostos com a autonomia que dá origem às novelas surpreendentes. De resto, não. E foi nisto certamente que o Alfa-Ómega pensou, ele que é princípio e meio e parece que não tem fim e que, experiente até mais não, tem para além dos limites a legítima lábia e o conhecimento da matéria.

 Mas seria, com franqueza, de esperar coisa diferente? Como dizia outra vez Chesterton, depois de ter relanceado a lady do distrito de Belgravia com olho maroto, “Os amores platónicos, como todos os tónicos, são apenas um estimulante”. Se não acreditam, vão perguntá-lo a Gilgamesh.

À Deusa, quer-se dizer…

Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências, 3, Janeiro de 2010

   NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
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