A porteira, tímida, contara:
— A senhora estava a pôr o lixo à porta, até
me disse que tinha feito um embrulho de
roupas velhas para eu levar. Fiquei de lhe
tocar à campainha cinco minutos depois, logo
que acabasse o serviço. Desci no elevador,
meti os sacos todos no depósito e deixei-o
encostado ao poste luminoso, como de
costume. Ora eu estive sempre diante da
porta do prédio, ninguém saiu nem entrou
entretanto. Subi no monta-cargas e saí no
sexto andar, toquei à campainha. Ninguém
respondeu. A princípio pensei comigo: espero
um pouco, se calhar foi à casa-de-banho.
E não arredei pé, encostada à parede. A luz
do patamar apagou-se, acendi-a outra vez e
tornei a tocar à campainha. Nada. A luz
voltou a apagar-se. Apagou-se umas cinco vezes
ou seis e eu à espera. Havia
luz em casa mas não se ouvia barulho nenhum,
a senhora não tinha o televisor ligado nem
devia estar a ouvir música. Silêncio total. Nisto, toca o
telefone e eu até encostei a cabeça à porta
para ouvir melhor, porque o meu coração
batia de tanta ralação. O telefone para ali a tocar, a
tocar e nunca mais parava, a impressão que me
fez aquele trrim-trrim... Era uma aflição.
Quando finalmente parou de tocar, achei que
devia tomar uma atitude. Olha se lhe tinha
dado alguma coisa!...
— Foi então que a senhora resolveu entrar
pela varanda da cozinha... — comentara o
jovem Morais.
— Já não era a primeira vez... Volta e meia
os inquilinos perdem a chave ou esquecem-se
dela na fechadura, pelo lado de dentro,
depois não se pode abrir a porta por fora...
— A porteira suspira fundo, esconde as mãos trémulas nos bolsos da bata escura. — Como o
senhor viu, as varandas dos apartamentos do
mesmo andar pegam umas com as outras, não
chegam a ter meio metro de intervalo, na
frente. Nas traseiras, nem há intervalo
nenhum, a não ser a parede que as separa. Já
não é a primeira vez que eu tenho de entrar num
apartamento pela varanda de outro... Faz impressão, um sexto andar
é muito alto e uma
pessoa tem de se pôr de pé no muro da varanda
para se deixar escorregar para a outra. O
que vale é o varal da roupa, sempre dá para
apoiar o pé se a gente sente tonturas...
— Portanto havia gente no sexto esquerdo...
— Estava o Dr. Martins, sim...
— Sozinho?
— Ele vive sozinho, é divorciado... Às
vezes traz umas moças para casa, já se sabe
como estas coisas são... Mas estava sozinho a
fazer o jantar quando toquei e lhe pedi que
me deixasse entrar. Estava até a ouvir rádio
muito alto, era aquele programa de música
brasileira, sabe? Sabe, toda a gente conhece
o programa do José Nuno Martins, ele põe
sempre aquele disco da Simone, «Começar de
novo», ela tem assim uma voz muito
sossegada, muito comprida, não sei
explicar... E era o disco que se estava a
ouvir, o «Começar de novo», da Simone. Então ele foi à sala baixar a
música, e depois, na cozinha, pôs os bicos
do fogão no mínimo, por precaução, embora só
tivesse de dar dois ou três passos para
alcançar a marquise. E foi isso, acompanhou-me até à
varanda e por sinal até me segurou as pernas para não cair.
Tive de dar um encontrão na porta da cozinha
da D. Xandra, estava fechada. O que vale é
que estas portas de vidro não têm segurança
nenhuma... Vou dar com ela morta na sala,
nem sei o que me deu, levei a mão à garganta
porque ia para gritar e o grito não saiu...
Fiquei mesmo paralisada, sem reação. Só ao
fim de um bocado voltei a ter mão em mim. Desatei aos
gritos, o Dr. Martins pediu que lhe abrisse
a porta, então fui abrir a porta e o Dr. Martins
veio ter comigo.
Simone,
«Começar de novo»
— E fecharam a porta depois ou não? — era o
Morais, tudo apontando no bloco, muito
profissional.
— Olhe que não me lembro... Abri a porta e
ele entrou... Eu,
fechar não a fechei, porque voltei logo para
a sala a mostrar-lhe
o que tinha acontecido. E depois não me
recordo de mais nada, sentia
a cabeça vazia, parecia que o cérebro já não
estava nela, aquilo foi um choque muito
grande ver a senhora sem acordo, tombada
para cima da aparelhagem de Alta
Fidelidade...
- Diga,
Morais, lembrei-me eu de repente. - Sabe se
realmente estava tudo em silêncio na casa da
pintora?
Muito
satisfeito consigo mesmo, o Morais relatou a
conversa da porteira e como ele próprio
abrira caminho nessa direção sonora:
- Sim,
claro, meu tenente. Perguntei-lhe se a D.
Xandra estava a ouvir música, isso era um
dado importante para entender a situação.
- E
então? - impacientei-me.
- Ah... -
tentou rememorar a porteira, recordava o
cabo Morais. - A D. Xandra
tinha os auscultadores nos ouvidos e o
microfone na mão, parecia que era ela que
estava a gravar alguma coisa. Se ela estava
a gravar, sei lá, alguma aula, alguma
conferência, não sei, não devia ouvir-se
música, mas eu ouvi qualquer coisa... Ai
ouvi, ouvi, e até pensei comigo que a
senhora gostava dos mesmos programas de
rádio que eu, porque a música que eu ouvi,
muito baixinho, parecia muito longe, era uma
do Sérgio Godinho, que passa às vezes no
programa do Aníbal Cabrita, como é? Deixa
ver se me lembro do nome...
Sérgio
Godinho, «O primeiro dia»
Revista de
Artes, Religiões e Ciências,
nº 03 | Janeiro de 2010
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947) Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com