Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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PARTE III - HOUVE CRIME OU NÃO?

3. Declarações da porteira

A porteira, tímida, contara: — A senhora estava a pôr o lixo à porta, até me disse que tinha feito um embrulho de roupas velhas para eu levar. Fiquei de lhe tocar à campainha cinco minutos depois, logo que acabasse o serviço. Desci no elevador, meti os sacos todos no depósito e deixei-o encostado ao poste luminoso, como de costume. Ora eu estive sempre diante da porta do prédio, ninguém saiu nem entrou entretanto. Subi no monta-cargas e saí no sexto andar, toquei à campainha. Ninguém respondeu. A princípio pensei comigo: espero um pouco, se calhar foi à casa-de-banho. E não arredei pé, encostada à parede. A luz do patamar apagou-se, acendi-a outra vez e tornei a tocar à campainha. Nada. A luz voltou a apagar-se. Apagou-se umas cinco vezes ou seis e eu à espera. Havia luz em casa mas não se ouvia barulho nenhum, a senhora não tinha o televisor ligado nem devia estar a ouvir música. Silêncio total. Nisto, toca o telefone e eu até encostei a cabeça à porta para ouvir melhor, porque o meu coração batia de tanta ralação. O telefone para ali a tocar, a tocar e nunca mais parava, a impressão que me fez aquele trrim-trrim... Era uma aflição. Quando finalmente parou de tocar, achei que devia tomar uma atitude. Olha se lhe tinha dado alguma coisa!...

— Foi então que a senhora resolveu entrar pela varanda da cozinha... — comentara o jovem Morais.

— Já não era a primeira vez... Volta e meia os inquilinos perdem a chave ou esquecem-se dela na fechadura, pelo lado de dentro, depois não se pode abrir a porta por fora... — A porteira suspira fundo, esconde as mãos trémulas nos bolsos da bata escura. — Como o senhor viu, as varandas dos apartamentos do mesmo andar pegam umas com as outras, não chegam a ter meio metro de intervalo, na frente. Nas traseiras, nem há intervalo nenhum, a não ser a parede que as separa. Já não é a primeira vez que eu tenho de entrar num apartamento pela varanda de outro... Faz impressão, um sexto andar é muito alto e uma pessoa tem de se pôr de pé no muro da varanda para se deixar escorregar para a outra. O que vale é o varal da roupa, sempre dá para apoiar o pé se a gente sente tonturas...

— Portanto havia gente no sexto esquerdo...

— Estava o Dr. Martins, sim...

— Sozinho?

— Ele vive sozinho, é divorciado... Às vezes traz umas moças para casa, já se sabe como estas coisas são... Mas estava sozinho a fazer o jantar quando toquei e lhe pedi que me deixasse entrar. Estava até a ouvir rádio muito alto, era aquele programa de música brasileira, sabe? Sabe, toda a gente conhece o programa do José Nuno Martins, ele põe sempre aquele disco da Simone, «Começar de novo», ela tem assim uma voz muito sossegada, muito comprida, não sei explicar... E era o disco que se estava a ouvir, o «Começar de novo», da Simone. Então ele foi à sala baixar a música, e depois, na cozinha, pôs os bicos do fogão no mínimo, por precaução, embora só tivesse de dar dois ou três passos para alcançar a marquise. E foi isso, acompanhou-me até à varanda e por sinal até me segurou as pernas para não cair. Tive de dar um encontrão na porta da cozinha da D. Xandra, estava fechada. O que vale é que estas portas de vidro não têm segurança nenhuma... Vou dar com ela morta na sala, nem sei o que me deu, levei a mão à garganta porque ia para gritar e o grito não saiu... Fiquei mesmo paralisada, sem reação. Só ao fim de um bocado voltei a ter mão em mim. Desatei aos gritos, o Dr. Martins pediu que lhe abrisse a porta, então fui abrir a porta e o Dr. Martins veio ter comigo.

 

Simone, «Começar de novo»

— E fecharam a porta depois ou não? — era o Morais, tudo apontando no bloco, muito profissional.

— Olhe que não me lembro... Abri a porta e ele entrou... Eu, fechar não a fechei, porque voltei logo para a sala a mostrar-lhe o que tinha acontecido. E depois não me recordo de mais nada, sentia a cabeça vazia, parecia que o cérebro já não estava nela, aquilo foi um choque muito grande ver a senhora sem acordo, tombada para cima da aparelhagem de Alta Fidelidade...

- Diga, Morais, lembrei-me eu de repente. - Sabe se realmente estava tudo em silêncio na casa da pintora?

Muito satisfeito consigo mesmo, o Morais relatou a conversa da porteira e como ele próprio abrira caminho nessa direção sonora:

- Sim, claro, meu tenente. Perguntei-lhe se a D. Xandra estava a ouvir música, isso era um dado importante para entender a situação.

- E então? - impacientei-me.

- Ah... - tentou rememorar a porteira, recordava o cabo Morais. - A D. Xandra tinha os auscultadores nos ouvidos e o microfone na mão, parecia que era ela que estava a gravar alguma coisa. Se ela estava a gravar, sei lá, alguma aula, alguma conferência, não sei, não devia ouvir-se música, mas eu ouvi qualquer coisa... Ai ouvi, ouvi, e até pensei comigo que a senhora gostava dos mesmos programas de rádio que eu, porque a música que eu ouvi, muito baixinho, parecia muito longe, era uma do Sérgio Godinho, que passa às vezes no programa do Aníbal Cabrita, como é? Deixa ver se me lembro do nome...

 

Sérgio Godinho, «O primeiro dia»

Revista de Artes, Religiões e Ciências, nº 03 | Janeiro de 2010

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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