Ruas desertas,
tristonhas. Mas no Bairro Alto há crises de
bulício, efervescência boémia. Gente que sai
e entra em automóveis, saltos altos a
tiquetaquearem no teclado da rua. Qualquer
frase mais alta bate
no empedrado para surgir da obscuridade como
pincelada de água. É a noite lisboeta, do fado, dos
bares frequentados por artistas, gente com
necessidade extrema de atenção. Olhem para
mim! - chispam os olhos. Não é narcisismo,
eu sei, é insegurança, desejo de
reconhecimento do valor da arte que criam.
Uma bela mulher,
apesar das dimensões
elefantinas, vestida de negro, a longa túnica
na sequência obscura do cabelo, em corte belle
époque, investiga-me da cabeça aos
pés antes de me deixar entrar. Talvez o meu
rosto martirizado a
convencesse. «Entre», não disse, o braço,
porém, apontando as
entranhas do sarcófago musical, insinuava a
existência nele dos
elixires capazes de curar todos os males.
Tinha frio,
aconcheguei-me na gola do casaco, a noite de
um Inverno ácido. Grandes máscaras escuras,
suspensas do tecto, avolumaram a ansiedade
que vinha acumulando. Cabrita Reis, oiço. Pinturas sombrias
esperavam, com algo de uma frieza
oriunda de tempos passados. Abstractas,
sombrias, épicas telas de luto, a vestirem
paredes da cabeça aos pés. Obras de Pedro
Cabrita Reis, oiço...
Alta, a música. Música, música, música! Dava-me a volta,
voltava aquela dor de uma doçura extasiada,
mas o que era aquilo? Uma guitarra, sim,
sim, Ry Cooder naquele estranho filme cheio
de deserto, tão lenta dor, tão sede sem
água... Um dos filmes que mais me tocou as
cordas da imaginação, senti-me tão voyeurista com aquela cena do peepshow...
É, é a música do Paris, Texas, sim...
Nem no Fragilidades mudam de disco, a noite
está um dilúvio lacrimal...
Acima do
dedilhar plangente, uma maré confusa de
vozes, gritinhos pelo meio, tinidos de copos
e garrafas, palmadas nas costas, risos
mordazes...
Gaita!,
atropelei o empregado, mas ele já está
habituado, que não fazia mal, não tinha
deixado cair as cervejas, e não, conseguiu
equilibrar a patena acima das cabeças que
badalavam ao ritmo da música lenta, suave e
lenta e suave como um soneto de Camilo
Pessanha... |
Peepshow... Curiosa
palavra, vi-a escrita em português, a dar
nome a uma série de caixas com muita tralha
de artista dentro, espalhadas numa das salas de
entrada do Museu das Janelas Verdes... Por
acaso tinha passado por lá mesmo na altura
da inauguração, estavam várias pessoas, mas
só reconheci um artista muito carismático,
Ernesto de Sousa, era dele a exposição geral
e participava naquele lançamento de caixas,
de nome roubado ao peepshow de Wim
Wenders, ou de Sam Shepard, o guionista, mas
ver a palavra em português nem sei que
choque me deu... Pipchou? Não, pior,
pior, era Pipxou... E até ouvi
discutir-se aquilo, que tinha sido ideia
triste da co-autora, Maria Estela Guedes,
acho que sim... É, o nome era esse... Porque
é que não tinha deixado o nome em inglês?
Muito mais internacional e cosmopolita...
«Vocês só têm estaleca para discutir a
embalagem, não chegam com as moléculas aos
conteúdos da caixa!» Era um rapaz de franja
preta a retrucar, muito polida, balançava de
um lado para o outro e ele gostava de a
balançar, como se fosse uma crina de cavalo.
Conhecia-o, era o Fernando Camélia.
Conhecia-o da esquadra da Polícia do Rato, uma
vez tinha tido que o levar ao hospital, os
skinheads apanharam-no a jeito e iam-no
matando à porrada. Porque era homossexual... Se soubessem que esta
noite já por várias vezes tive de limpar as
lágrimas, cortavam-me os tomates... Porcos
nazis, caraças! Mentalidade de sacristia,
não arejam a cabeça, ainda vivem no tempo da
escravatura, e querem à viva força ter
escravos para lhes baterem, e o resto... Não
entendo, pensei que os valores da democracia
fossem universais e invejáveis, que
todos desejassem ascender na escala da
evolução respeitando a liberdade e a
idiossincrasia dos
outros... E não entendo esta hipócrita
sociedade que vive num peepshow contínuo, a
espreitar para debaixo de saias e para
dentro de calças, a palpar o que
tenho nas cuecas... Hediondo, hediondo! É
que nenhuma teoria o justifica, nenhuma
ética, nenhuma
filosofia, nenhuma religião justifica que me
mexam nos tomates e os avaliem e me censurem
por fazer isto e não aquilo com eles...
Cambada de tarados sexuais a quererem
convencer-me de que são honestas mães e pais
de família... Tarados sexuais, que não
pensam noutra coisa...
A guitarra de
Ry Cooder no Fragilidades não deixava
de ser fenómeno assinalável... Deixava-me
possuir pelo seu rasto, seria a música uma
pista subliminar a encaminhar-me para o
mistério? E que mistério? Isso, desvia as
moléculas para outro caminho ou ainda te dá
um ataque cardíaco... Não havia no caso
mistério nenhum, vamos lá a pôr a cabeça no
estirador das coisas práticas, eu estou é
com uma depressão do catano por ter deixado
fugir a minha mulher...
Sinto-me à
margem do que lhe aconteceu, pintora e
esposa, é tudo a mesma mulher, misturei-as
de tal forma que já não as distingo... Para
não me enganar, melhor é nem tentar
dizer-lhe o nome... O nome de uma e o nome
de outra, querida, desculpa, bem sei que não
é normal, nada é normal contigo longe, e que
importa a minha dor? Mais à margem do que eu
da tua partida estás tu da minha mágoa...
Que estaria ela a ouvir
ou a gravar quando
tombou para a frente, arrastando na queda o rádio-despertador? Era uma bela mulher, sólida,
de boas pernas, ombros largos.
Tinha gostado dela. Se não fosse tão tarde,
ainda voltava ao local do crime, ouvia a
chamada: vem, os fios do enigma estão todos aqui.
Mas os fios do enigma não me chamavam, eu
é que desejava ser chamado. Tinha caído num
estado de fragilidade emocional tão grande
que, se a minha mulher me chamasse, como um
rápido relâmpago responderia. Apesar de tudo. Corei ao
recordar-me das tristes figuras que fizera,
inventando outras, para a atiçar, a obrigar
a dar-me atenção. Há outras na minha vida,
entendes? Sou desejado. Ela não entendeu, não
lhe interessava entender tolices indirectas. “Tu só queres
é pôr-me mais doida do que eu já ando!".
Não é igual à
pintora, embora eu não tenha conhecido a
pintora. A minha mulher é uma brasa, vá, um
bom pedaço de mulher, e nada lhe aponto de
desmerecedor, mas que não tem imaginação,
isso, não tem.
Portei-me mal, eu sei. Nada a demoveu do propósito de divórcio. Concordo que a situação se tornou
insuportável, só a via na cama,
quando o cansaço me impedia de lhe
manifestar o afecto que
ambos desejávamos. Estupor de profissão, a
minhal Ficou com a casa, saí eu. É diferente a
vida de quem parte, sentia-me só, na iminência
de recomeçar a partir do zero. Só,
desamparado, com uma fome de afecto
avassaladora. De todos os lados me chamavam,
mas eu estou lúcido, sei que sou eu mesmo
que projecto nos outros a minha avidez de
ser chamado.
Alta, a
música. Contudo, a impressão era de silêncio.
Ninguém, a não ser os actores submersos em
papel de jornal, me dera atenção no casarão
cor-de-rosa, cada um voltado para si mesmo
como flor absorta sobre as águas estagnadas
de um espelho. Ali, no Fragilidades,
tornava-me o centro das atenções.
Inútil encostar-me à parede, enfiado na gola
levantada do casaco, sentar-me no banco mais
afastado da multidão. Como por acaso, todos
os olhares convergem sobre mim, rodando,
discretos, a mim voltando de novo. Componho a
gravata, incomodado, alvo de um interesse
que se cola ao meu corpo como onda de
desejo pegajoso. Que raio, avaliam-me com
olhos de quem me quer comer, nunca me senti
tão cobiçado...
E a música,
meu deus!, que músicas passam nas noites
lisboetas, os Doors, Riders on the storm,
não pode ser, eu hoje não volto para casa,
vou ficar por aí como um cão enroscado no seu
sono, vou adoecer, eu
esta noite vou morrer de beleza... |