Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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PARTE I - UMA FESTA PUNK
(Revista TriploV, nº 2, Novembro de 2009)

4. Desconstruir para não destruir

Agitam os braços, inclinam o corpo para um e outro lado, num esforço para subtrairem os gestos a qualquer espécie de identificação com a dança. Porquê? Agora há que desconstruir tudo, o casamento, a pintura, a poesia, a música, e pelos vistos também a dança. Os rostinhos pintados à índio, outros enérgicos, esculpidos em pedra com martelo e cinzel. Um fio de poderes ocultos a latejar, a que bastaria acender o rastilho para a explosão levar o Teatro da Revolução pelos ares. Ah sim, começo a entender: há que desconstruir tudo para não destruir, porque a carga de emoções pesadas para isso tende, para o apocalipse, para o suicídio de grupo... Ou para a matança... Não é normal as pessoas morrerem sem sinais de violência, de medicamentos tomados, de uma qualquer doença... Nada, os exames negativos, todos... Como se a minha mulher ainda estivesse vi... Porra! estou mesmo avariado da caixa dos parafusos, a minha mulher deixou-me, lá isso... Mas está viva, quem morreu foi a pintora, Xandra, uma desconhecida. Eu, pelo menos, não a conhecia nem de nome, até ter tomado conta da ocorrência... Tem de ser... É obrigatório... E a autópsia ainda mais obrigatória é, nas circunstâncias...

Mete medo a negligência fingida das roupas cruéis, sinistras, vindas por certo do setor mais macabro da Feira da Ladra, e que outrora terão servido a velha senhora para assistir a chás de caridade. Golas de renda, folhos, chapéus com tufos de penas... E camuflados, lembranças adquiridas aos ciganos nas feiras improvisadas do metropolitano. Aludem a uma guerra colonial de que não tiveram a experiência nem a memória, apenas a escuta de conversas com o pai, lá em casa. Os pais destes garotos fizeram a mata em Angola, andaram pelos confins da Guiné, como eu... Atiram-se uns contra os outros, empurram, caem aparatosamente, os gestos de uma violência sinceramente simulada. Cordeiros passados. Bem passados, por sinal, os anéis de fumo em arabescos abstratos na periferia da luz, a cerveja a potenciar o efeito. Oxalá se fiquem pelas levezinhas... Paira na sala, o aroma... Gosto, gosto do perfume da marijuana, aprecio uma boa passa, e nada mais aromático do que o bom tabaco de cachimbo...

Revista de Artes, Religiões e Ciências
Nº 02 | Novembro de 2009

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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