Agitam os braços, inclinam o
corpo para um e outro lado, num
esforço para subtrairem os gestos a qualquer espécie de identificação com a dança.
Porquê? Agora há que desconstruir tudo, o
casamento, a pintura, a poesia, a música, e
pelos vistos também a dança. Os rostinhos
pintados à índio, outros enérgicos, esculpidos
em pedra com martelo e cinzel. Um fio de
poderes ocultos a latejar, a que bastaria
acender o rastilho para a explosão levar o
Teatro da Revolução pelos
ares. Ah sim, começo a entender: há que desconstruir tudo para não destruir, porque
a carga de emoções pesadas para isso tende,
para o apocalipse, para o suicídio de grupo... Ou para a
matança... Não é normal as pessoas morrerem
sem sinais de violência, de medicamentos
tomados, de uma qualquer doença... Nada, os
exames negativos, todos... Como se a minha
mulher ainda estivesse vi... Porra! estou
mesmo avariado da caixa dos parafusos, a minha mulher
deixou-me, lá isso... Mas está viva, quem
morreu foi a pintora, Xandra, uma desconhecida.
Eu, pelo menos, não a conhecia nem de nome,
até ter tomado conta da ocorrência... Tem de ser... É obrigatório... E a
autópsia ainda mais obrigatória é, nas
circunstâncias...
Mete medo a negligência fingida
das roupas cruéis, sinistras, vindas por certo
do setor mais macabro da Feira da Ladra, e que outrora terão
servido a velha senhora para assistir a chás
de caridade. Golas de renda, folhos, chapéus com
tufos de penas... E camuflados, lembranças
adquiridas aos ciganos nas feiras
improvisadas do metropolitano. Aludem a
uma guerra colonial de que não tiveram a experiência nem
a memória, apenas a escuta de conversas
com o pai, lá em casa. Os pais destes
garotos fizeram a mata em Angola, andaram
pelos confins da Guiné, como eu... Atiram-se uns contra
os outros, empurram, caem aparatosamente, os
gestos de uma violência sinceramente
simulada. Cordeiros passados. Bem passados,
por sinal, os anéis de fumo em arabescos abstratos na periferia da luz, a cerveja a
potenciar o efeito. Oxalá se fiquem pelas
levezinhas... Paira na sala, o aroma...
Gosto, gosto do perfume da marijuana,
aprecio uma boa passa, e nada mais
aromático do que o bom tabaco
de cachimbo... |
MARIA ESTELA
GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural.
Alguns livros publicados:
Herberto Helder, Poeta Obscuro
(Lisboa, Moraes Editores);
Ernesto de Sousa - Itinerário dos
itinerários (Lisboa, ed. Museu
Nacional de Arte Antiga);
Tríptico a Solo (São Paulo,
Editora Escrituras); Chão de
Papel (Lisboa, Apenas Livros);
Geisers (Bembibre, ed.
Incomunidade). Obras levadas à cena:
O Lagarto do Âmbar (ACARTE);
A Boba (teatro Experimental
de Cascais).
Currículo em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
Proprietária do TriploV.
CONTATO:
estela@triplov.com |