Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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PARTE I - UMA FESTA PUNK

PARTE I - UMA FESTA PUNK

1. Perhaps love

Desliguei a telefonia. Dois versos do dueto permanecem-me no ouvido, insistentes, impregnados da minha própria amargura:

Perhaps love is like the ocean,

full of conflict, full of pain...

Tão apaziguador, apesar de tudo, na sua melancolia de onda. Como se o mal dos outros tivesse o condão de diluir o nosso. A voz de Placido Domingo ergue-se atrás da primeira num colorido estralejar de foguete. Que ideia, juntos assim um cantor lírico e o John Denver, da country music! Podia ter dado bosta, ai podia, podia... Country music, para mim, salvo as inevitáveis assunções e excepções, é música para cavalinhos… Modo suave de dizer... Mas isto é bom, de uma doçura encantatória, cola-se à memória como um caramelo... Há dois ou três dias que repito os versos e até chego a cantarolá-los. Uma atrás de outra lambidela, imparáveis, a insistirem: Perhaps love is like the ocean, full of conflict, full of pain… E mais não sei eu ou talvez conseguisse ir cantando do princípio ao fim, sempre ficava menos obsessiva a canção.

Começava a dar-me o sono, fechei a porta do carro e dirigi-me para o casarão cor-de-rosa onde esperava encontrar o pintor que, segundo informações do rapaz do 52 esquerdo, visitava assiduamente a vítima. Aquela morte perturbava-me o raciocínio, era aparentemente inexplicável, se bem que se conhecessem casos de mortes súbitas em jovens, e até em jogadores de futebol, em pleno jogo… Ainda na semana passada.... Aos vinte anos, o coração estala como vaga na rocha, Perhaps love... Já não tenho vinte anos e a minha mulher deixou-me... Senti um choque ao puxar delicadamente para trás a cabeça da vítima, para lhe ver o rosto... E não vi a cara da minha mulher, nítida, de olhar fito na minha direcção, mas sem reparar em mim? Senti-me trespassado por aquele olhar sem objetivo, mais morto do que ela, a pintora, mas o que eu sentia no meu âmago era a vida da minha mulher na morta...

 Podemos morrer sem razão nenhuma. Podemos, ela podia ter morrido sem razão nenhuma, e ainda por cima sendo pintora... Os artistas sofrem de hipersensibilidade e de fogos de artifício da imaginação... Sim, mas eu não me consigo conformar com isso. Sou polícia. Investigo. Não devia imaginar, mas imagino... Tenho de ser concreto e preciso, matemático como um esquadro, uma régua e um compasso... Debatia-me com a sensação de crime e até de perigo pessoal. É verdade, sinto-me em perigo. Só me faltam, para começar a investigação, os sinais. Algo para pesquisar, o livro da morta para ler. Não creio que ela escrevesse, as palavras dos pintores são as pinceladas nas telas.

Nome do tal pintor, não sabia, dispunha só de uma vaga descrição, aplicável a um número vasto de indivíduos altos e magros, rosto miúdo, entre trinta e trinta e cinco anos. Vai ser difícil localizá-lo, a menos que o encontre em flagrante, marcador em punho e pasta de desenho aberta nos joelhos. É preciso uma boa dose de concentração e desprendimento para trabalhar em público. Eu não me sinto bem em rusgas, inquéritos de rua. Prefiro a intimidade do gabinete, dos documentos, dos interrogatórios. Talvez seja tímido. Ouvi dizer que os artistas, normalmente criaturas tímidas, não gostam de tornar público o ato de criação. Elimina o mistério, apouca o génio do que se equipara ao gesto genesíaco. Mostrar a obra depois de acabada, sim, é outra coisa. Aquele pintor, pelo contrário, só trabalhava em locais públicos, sujeito aos olhares curiosos, sabe-se lá se a comentários indignos. Um noctívago, pelos vistos, apenas interessado em cenas de diversão. Para mais ostentação, só usava marcadores preto, prateado e dourado... O brilho barroco do horror à morte, o esconjuro do negrume com a luz. Para mim a noite pouco me diverte, o trabalho espera por mim a cada esquina. Devemos ser os únicos para quem a noite não oferece entretenimento, só exigência de alerta e concentração. Sobreposta aos dois versos que guardo no ouvido, vem-me à cabeça a conversa com o garoto vizinho da morta: o pintor era um dos muitos para os quais não surgira ainda a oportunidade da fama, entreaberta por galeria da moda no panorama algo pedante das vernissages lisboetas.

— Se lá for esta noite, decerto que o encontra! — afiança o rapaz. — Está sempre onde se junta o pessoal da pesada.

Revista de Artes, Religiões e Ciências
Nº 02 | Novembro de 2009

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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