Desliguei a telefonia. Dois
versos do dueto permanecem-me no
ouvido, insistentes, impregnados da minha
própria amargura:
Perhaps love is like the
ocean,
full of conflict, full of
pain...
Tão apaziguador, apesar de
tudo, na sua
melancolia de onda. Como se o mal dos outros
tivesse o condão de diluir o nosso. A voz de Placido Domingo
ergue-se atrás da primeira num colorido estralejar de foguete. Que ideia, juntos assim
um cantor lírico e o John Denver, da
country music! Podia ter dado bosta, ai
podia, podia... Country music, para mim, salvo as
inevitáveis assunções e excepções, é música
para cavalinhos… Modo suave de dizer... Mas
isto é bom, de uma
doçura encantatória, cola-se à memória
como um caramelo... Há dois ou três dias que
repito os versos e até chego a
cantarolá-los. Uma atrás de outra lambidela, imparáveis, a
insistirem: Perhaps
love is like the ocean, full of conflict,
full of pain… E mais não sei eu ou
talvez conseguisse ir cantando do princípio ao fim, sempre ficava menos
obsessiva a canção.
Começava a dar-me o sono,
fechei a porta do carro e dirigi-me para o
casarão cor-de-rosa onde esperava encontrar
o pintor que, segundo informações do rapaz
do 52 esquerdo, visitava assiduamente a
vítima. Aquela morte perturbava-me o
raciocínio, era aparentemente inexplicável,
se bem que se conhecessem casos de mortes
súbitas em jovens, e até em jogadores de
futebol, em pleno jogo… Ainda na semana
passada.... Aos vinte anos, o coração estala
como vaga na rocha, Perhaps love...
Já não tenho vinte anos e a minha mulher
deixou-me... Senti um choque ao puxar
delicadamente para trás a cabeça da vítima,
para lhe ver o rosto... E não vi a cara da
minha mulher, nítida, de olhar fito na minha
direcção, mas sem reparar em mim? Senti-me
trespassado por aquele olhar sem objetivo, mais morto do
que ela, a pintora, mas o que eu sentia no
meu âmago era
a vida da minha mulher na morta...
Podemos morrer sem
razão nenhuma. Podemos, ela podia ter
morrido sem razão nenhuma, e ainda por cima
sendo pintora... Os artistas sofrem de
hipersensibilidade e de fogos de artifício
da imaginação... Sim, mas eu não me
consigo conformar com isso. Sou polícia.
Investigo. Não devia imaginar, mas
imagino... Tenho de ser concreto e preciso,
matemático como um esquadro, uma régua e um
compasso... Debatia-me com a sensação de
crime e até de perigo pessoal. É verdade,
sinto-me em perigo. Só me faltam,
para começar a investigação, os sinais. Algo
para pesquisar, o livro da morta para ler.
Não creio que ela escrevesse, as palavras
dos pintores são as pinceladas nas telas.
Nome do tal pintor, não sabia,
dispunha só de uma vaga descrição, aplicável a um
número vasto de indivíduos altos e magros,
rosto miúdo, entre trinta e trinta e cinco
anos. Vai ser difícil localizá-lo, a menos que o encontre em
flagrante, marcador em punho e pasta de
desenho aberta nos joelhos.
É
preciso uma
boa dose de concentração e desprendimento
para trabalhar em público. Eu não me sinto
bem em rusgas, inquéritos de rua. Prefiro a
intimidade do gabinete, dos documentos, dos
interrogatórios. Talvez seja tímido. Ouvi dizer que os artistas, normalmente
criaturas tímidas, não gostam de tornar público o ato de criação.
Elimina o mistério, apouca o génio do que se
equipara ao gesto genesíaco. Mostrar a obra
depois de acabada, sim, é outra coisa. Aquele
pintor, pelo contrário, só trabalhava em
locais públicos, sujeito aos olhares
curiosos, sabe-se lá se a comentários
indignos. Um noctívago, pelos vistos, apenas
interessado em cenas de diversão. Para mais
ostentação, só usava marcadores preto,
prateado e dourado... O brilho barroco do
horror à morte, o esconjuro do negrume com a
luz. Para mim a
noite pouco me diverte, o trabalho
espera por mim a cada esquina. Devemos ser os únicos para
quem a noite não oferece entretenimento, só
exigência de alerta e concentração. Sobreposta
aos dois versos que guardo no ouvido,
vem-me à cabeça a conversa com o garoto
vizinho da morta: o pintor era um dos muitos
para os quais não surgira ainda a
oportunidade da fama, entreaberta por
galeria da moda no panorama algo pedante das
vernissages lisboetas.
— Se lá for esta noite,
decerto que o encontra! — afiança o rapaz. — Está sempre onde se junta o
pessoal da pesada.
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