Vivemos no tempo e no espaço por isso nada é
eterno, o que agora é já deixou de ser:
Pantha Rhei! E como Camões já cantava:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
De facto tudo é transformação, tudo se
encontra sobre o signo da mudança, quer
dizer, no fluxo do tempo cada momento é um
nada. A eternidade, racionalmente analisada,
seja do que for, é uma utopia. A
causalidade, uma quimera.
Diz-nos Heráclito de Éfeso que:
"Todas as coisas são uma troca do fogo, e o
fogo, uma troca de todas as coisas... „
Contudo a nossa memória, enquanto
existentes, tem o poder de guardar cada um
dos momentos dessa troca de fogo, ou seja,
da nossa vida: os mais felizes e os menos
felizes (estes na maior parte dos casos no
inconsciente ou subconsciente).
A memória torna-nos por este modo reais,
deixa-nos sentir que somos deste mundo como
se o mundo nos pertencesse e nós
pertencêssemos a esse mundo. A memória
dá-nos uma identidade, povoa o vazio da
máscara. A memória deixa-nos organizar em
imagens o EU, ou seja, dá-lhe consistência.
Aquele EU que sem os prodígios da memória
não passa para lá de um enxame de ilusões,
um vazio, isto é, a memória salva o EU. Se
apagarmos a memória apagamos a existência
das coisas. A memória é assim a aliança, o
elo que torna a corrente possível, unidade.
Por isso cada instante da nossa vivência
continua a existir para lá do tempo e do
espaço histórico em que viram a luz do
mundo, uno, em nós. A memória liga o
presente e o passado. Torna-os numa espécie
de presente contínuo. Ela é: continuidade. E
isto é mais real que o próprio real que se
nos mostra sempre como um jogo dialéctico e antitético.
De cada momento que passa, de cada
momento em que metemos os pés na correnteza
do rio de Heráclito, só a memória, o seu
mágico substrato, o miolo, permanece na
presença da ausência que a palavra cria em
nós, salvando assim essa memória das trevas
do esquecimento.
No aspecto colectivo, histórico de um
povo, é igualmente a memória que estabelece
os laços identitários entre os indivíduos
desse povo: mitos, religião, os costumes, a
moral etc. laços que, embora pesando todas
as diversidades, mantém esse povo como um
corpo unido, coeso, levando-o nos momentos
mais críticos a se reunir em defesa da
independência da sua identidade
(nacionalidade), mas também nos momentos
vitoriosas (por exemplo quando uma selecção
de futebol ganha um europeu ou um mundial) a
festejarem em uníssono.
A memória de um povo pode ser dada
oralmente, mas é na escrita, nos livros e
documentos que ela atinge um poder sagrado,
quase indestrutível.
Nos tempos antigos e nos estados
repressivos uma das coisas que os
usurpadores do poder tinham por hábito era
destruíram todos os escritos adversos ao seu
pensamento e ao quais os adversários
poderiam recorrer em defesa dos seus
direitos, e que por isso eram perigosos.
Destruindo esses livros, ou seja, a memória
jurídica, moral e religiosa, bem como as
tradições etc. dos seus adversários, o
ditador destituía-os igualmente do direito
ao passado mítico ou factual, encontrando-se
assim em pleno direito de ser ele próprio a
edificar uma nova ordem: uma nova memória,
escrita, cimentada na sua pessoa, uma
memória do futuro.
Um dos casos, talvez o mais radical da
história da humanidade, que exemplifica o
que acabámos dizer, aconteceu na china de Qin Shi Huang Di, o iniciador da construção
da grande muralha e fundador do império
chinês unificado.
Durante a unificação do império chinês, Qin
Shi Huang Di, que abole o sistema feudal,
ordena em 213 a. C., que se queimem todos os
livros existentes nas escolas, à excepção
dos livros de filosofia estatal. O destino
de todos aqueles que escondessem livros era
brutal: depois de marcados com um ferro em
brasa eram condenados a trabalharem na
construção da Grande Muralha até ao resto
dos seus dias.
Com esta medida, como repara Jorge Luís
Borges no seu ensaio o Muro e os Livros, Qin
Shi Huang Di decidira que a história da
china deveria começar a partir dele. Quando
ele decide isto já a cronologia chinesa
tinha cerca de 3000 anos e no espaço desses
anos haviam vivido um imperador amarelo, um
Tschuang –Tsu, um Confúcio e um Lao-Tsé. Ora
então, o único meio de realizar o seu
empreendimento, tão ousado, seria
precisamente apagar a memória, ou seja, o
passado identitário desse povo. Só
destruindo a memória desse povo (os seus
documentos e livros) este imperador poderia
ter a certeza de que a História começaria,
oficialmente, a partir dele. E graças à
megalomania deste acto, representado em
feitos como o início da Grande Muralha (que
pode ser vista sob este aspecto como uma
metáfora), mas também na unificação da
escrita, ele, ainda depois de morto,
continuaria a viver na presença da ausência,
isto é, na memória do seu povo. Se a suposta
obsessão paranóica deste imperador chinês em
atingir a imortalidade, não se realizou no
aspecto corporal, já graças à obra, a sua
memória continuou a viver através dos
tempos. A verdade é que o império chinês,
por ele iniciado, durou até 1916 e a grande
muralha lá está e lá continua a brilhar nos
nossos dias.
Como também Jorge Luís Borges diz, logo no
início do ensaio - A Esfera de Pascal:
“ Talvez a História Universal seja a
história de um punhado de metáforas.”
De facto, depois de tudo o que dissemos
atrás, parece-nos ser o poder metafórico da
palavra (a palavra como acto mediador) que
cria o momento histórico e ao mesmo tempo
torna possível que a memória ultrapasse esse
mesmo momento histórico, factual, dando ao
homem uma espécie de unidade cósmica, um
direito de ser, para além de cada momento no
fluir do tempo, que é sempre passado, que
imediatamente deixa de ser, porquanto por
meio desse poder metafórico podemos
estabelecer a unidade:
- Estou no mundo, pois fui isto ou aquilo,
pois fiz isto ou aquilo, por isso sou isto
ou aquilo. |