Eu não conhecia a empresária Marcela
Montenegro. Mas sei muito bem quem é o autor
do disparo que a atingiu: a nossa
indiferença cotidiana. Isso mesmo. É
exatamente isso o que você leu: quem atirou
em Marcela foi nossa estupidez e nossa
omissão. Todos nós somos os seus algozes.
As coisas sempre estiveram aí, debaixo de
nosso focinho, e sempre teimamos em não
querer olhar para elas. Porém, quando a
tragédia se instala de forma tão violenta e
em um cenário tão próximo a nós, ficamos
estarrecidos, quedamos desesperados,
exercitamos uma tardia mistura de medo,
desconsolo e indignação. Tudo porque se
esgarçou o ilusório cordão de isolamento que
parecia separar nosso paraíso refrigerado do
abrasador inferno das ruas. Agora sabemos.
Ninguém está imune. A peste está solta.
Até então, era como se o barril de pólvora
no qual vivemos sentados não fosse de nossa
conta. Mas quando a bala perversa atinge a
cabeça de um de nós - ou alguém que bem
poderia ter sido um de nós -, só assim
despertamos de nosso sono letárgico de
classe média deslumbrada e clamamos por
providências contra a barbárie. É claro que
as autoridades do setor de segurança
precisam ser chamadas, com todo o rigor, à
razão. Cabe a elas reprimir o faroeste
caboclo, explicar como uma zona da cidade
reconhecidamente dominada por assaltantes
sempre permaneceu assim, entregue ao império
da pedrada, do tijolaço e da bala.
Mas também é mais do que oportuno, e se
torna dolorosamente necessário, refletir
sobre a parcela de responsabilidade que nos
cabe, pacatos cidadãos, a respeito de um
episódio tão hediondo. Aprendemos a rir, de
modo confortável e sem culpas, do programa
policialesco de televisão que faz piada da
violência que grassa em nossas periferias.
Fechamos os olhos para as ocupações
irregulares de terrenos que, por falta de um
ordenamento urbano mais consistente, pululam
na cidade e se tornam semeadouros de
conflitos. Deixamos placidamente que nossas
meninas se prostituam, de modo sórdido, por
alguns míseros trocados ou pelo sonho de
desposar um príncipe louro, nos inferninhos
da Praia de Iracema.
Permitimos, sem dar um único pio, que se
instale o vale-tudo, que valha a lei do mais
tosco, que a falta de urbanidade seja a
regra geral em nossa anestesiada
coexistência. Diante de tudo aquilo que fere
e incomoda a coletividade, tapamos o nariz,
silenciamos a voz, levantamos o vidro
fumê do carro, fazemos ouvidos moucos.
Como os macaquinhos que se acham muito
sábios, mas que apenas permanecem sentados
sobre os próprios rabos, não ouvimos, não
vemos, não falamos. Na verdade, compactuamos
com o descalabro. Somos os cúmplices da
iniqüidade.
Uma querida amiga jornalista, por e-mail, ao
comentar o crime contra Marcela Montenegro,
lamenta que, enquanto isso, ao passo em que
a brutal violência coleciona mais uma vítima
na cidade, o governador e a prefeita
continuem a brigar pela supostamente
bizantina questão de um estaleiro. Pois
daqui respondo, cara amiga, caros leitores:
é bom que prefeita e governador discutam
mesmo. E é imprescindível que entremos e
coloquemos cada vez mais o dedo e ainda mais
lenha nessa briga. Não apenas para produzir
aquele tipo de fogo que gera fagulha e
calor, mas também para produzir a chama que
traz a luz. O debate em torno do tal
estaleiro, querida amiga, caros leitores,
nada tem de bizantino.
É exatamente por nos esquivarmos de discutir
coisas assim, como a proposição de um
gigantesco estaleiro na orla urbana da
cidade, que chegamos ao ponto onde estamos.
Aqui, fique-se claro, não vai nenhuma puxada
de sardinha para a brasa de qualquer um dos
lados partidários ora em contenda. Não falo
- e nunca falarei - de política no varejo.
Desde a juventude, sou alérgico a partidos
políticos. Falo, isso sim, de uma noção
maior de política, falo a respeito de qual
projeto de cidade afinal de contas desejamos
e estamos erigindo para nós mesmos e para
nossos filhos.
Tão esdrúxula quanto a ideia de um
empreendimento industrial gigantesco fincado
no litoral urbano é a instalação de um
jardim japonês encravado na Beira-Mar. O
segundo pode até aparentar ser menos
polêmico ou menos nocivo do ponto de vista
social, econômico, ecológico, paisagístico,
urbanístico ou, sei lá, estético do que o
primeiro. Mas creio que, ambos, estaleiro e
jardim japonês, em maior ou menor escala,
são igualmente reveladores de nossos tantos
equívocos. Não há, pelo menos ao que eu
saiba, uma colônia japonesa constituída em
Fortaleza. Qual então o significado daquele
monstrengo pretensamente zen plantado em um
dos últimos espaços de convivência da
cidade? Aquilo não passa de mais uma das
tais belas ideias fora do lugar, outra
aberração urbana, outro alienígena que
pousou na cidade e por ali foi ficando,
debaixo da complacência bovina de todos nós.
O que, afinal de contas, isso tem a ver com
o tiro que acertou Marcela? - indagará por
certo o leitor que teima em buscar
compreender os efeitos sem descer ao desvão
das causas. Tem tudo a ver, insisto. Não
estamos apenas entregando a cidade aos
malfeitores, aos turistas sexuais, aos
arautos da bagunça, aos políticos talvez bem
intencionados que, por serem incompetentes,
provavelmente lotarão a ante-sala do
inferno.
Nós, também, somos perigosamente belicosos.
Cada vez que estacionamos o carro sobre a
calçada, tornamo-nos mais selvagens. Cada
vez que mudamos de faixa no trânsito sem
ligar a sinaleira, contribuímos com a
desordem geral. Cada vez que paramos em fila
dupla na frente da escola à hora de pegar o
pimpolho na saída da aula, reproduzimos a
lógica de uma terra sem delicadeza e sem
lei. Gentileza gera gentileza, pregava o
profeta carioca das ruas. Ao contrário dele,
somos habituais fomentadores da grosseria,
da falta de educação, da omissão, do
oportunismo calhorda.
Se não puxamos pessoalmente o gatilho na
direção da cabeça de uma inocente, por vezes
nos pegamos fazendo coisa tão nefasta
quanto. Estamos matando, pouco a pouco, por
sufocamento, uma cidade inteira. Acordemos
enquanto é tempo. Fortaleza pede socorro.
Barbárie gera barbárie.
PS: Sei que corro o risco de algum
parlamentar indecente brandir este texto no
plenário da Câmara ou da Assembléia como
panfleto político contra fulana ou beltrano.
De antemão, repudio-lhe o gesto, Excelência.
O senhor sabe bem o tamanho da carapuça que
lhe cabe. |