Mecânica,
fria, totalmente
impessoal, entra
pela
janela, vinda
do outro
lado
da área
interna
do edifício,
a voz
antisséptica do
locutor
do Jornal
Nacional.
- Washington. O secretário
da Defesa
declarou hoje
pela manhã
aos jornalistas
acreditados
na Casa
Branca...
Clementina não escuta nem olha a janela
iluminada do outro
apartamento.
Devagar, olhando o
corpo, procurando os
defeitos, começa se despindo na frente
do espelho.
Escorrendo da quitinete e do banheiro,
cheiros de comida
requentada e
detergente enchem o apartamento conjugado.
Merda de fedor.
Parece até
privada. Encolhe os ombros
e abana a
cabeça. E o
pior é
que
eu já
não tou nem
me importando.
Volta
a olhar o
corpo, refletido no
espelho. Preciso fazer regime. Tou uma baleia
mesmo. Roda
o corpo,
de calcinha
e sutiã,
e apalpa a barriga.
Tá demais
mesmo.
Olha que
pneu. Apanha um prato na geladeira e senta-se na cama.
Olha a comida
e acena
com
a cabeça.
Tem que
fazer, faz. Levanta-se, entra no banheiro, joga
a comida
no vaso
e puxa a
descarga. Ah, foda-se,
dez
quilos, no
mínimo.
Liga
a televisão,
procura
um programa
de variedades
e deita-se na cama. Soam passos no corredor. Será que
é Modelo? Os
passos
param, e uma
campainha
toca
em outro
apartamento.
Aquele
cachorro é capaz
de não
vir mesmo. Ou então é capaz
de chegar
só
de madrugada.
Levanta-se, corrige a imagem da televisão
e deita-se.
Desgraçado, cachorro, filho
da puta. Eu
aqui
sozinha e o
cachorro
se esfregando em
qualquer
puta por
aí.
Filho da puta. Levanta-se, aumenta o som e
deita-se de novo.
E o pior
é que
só
tá me
atrapalhando. Quê
que aquele
cachorrão pode me
dar?
Nada. Nada
de nada.
Nadinha.
Clementina tem trinta e
cinco
anos. Saiu há
sete
de Porangatu, lá
nos
perdidos de Goiás,
pousa aqui, pousa ali, pousa acolá, biscatando o sul maravilha. Ancorou em
Belo Horizonte
e há cinco
trabalha
como caixa na
Padaria Pão Nosso. Nunca
voltou a Porangatu. Fazer
o quê?
A mãe
morta
antes de sair,
o pai
largado no mundo,
voltar pra quê? Pra fazer o de sempre? Chega de dar de graça, Deus do céu.
Conhecidos
em
Belo Horizonte
só D. Ponciana e
Seu
Mundinho, porangatuenses
como ela. Chegou na Rodoviária,
informa que
informa, bateu o meio-dia na Rua
Espírito Santo,
porta da casa
de D. Ponciana.
Depois eu vejo o quê que vou fazer. Agora quero é arrumar onde ficar. Há mais de quinze anos
em
Belo Horizonte,
D. Ponciana, nascida
e criada
em Porangatu, gostou da visita. Melhor ter com quem falar do que chorar desgraças de novela.
- Pode ficar, menina.
- Não quero incomodar, não, D.
Ponciana. Só
quero...
- Incomoda nada, menina. Onde
comem dois comem
três.
Clementina aceitou. Durante
o primeiro
mês
procurou emprego
em
todos os anúncios
classificados dos
jornais.
Centenas,
mas
todos pedindo
experiência. E Clementina, a
vida inteira coçando balcão
de botequim,
não
tinha experiência.
- Tá difícil,
D. Ponciana. E o
pior é que tou incomodando, dando despesa...
- Sossegue, menina.
Sossegue que,
com
a ajuda
de Deus,
tudo se há de arrumar.
Ou a menina
não acredita em
Deus?
Acreditava. Sempre
acreditou. Mas
o segundo
mês chegou ainda
sem emprego
e, dobrada a
quinzena, Seu Mundinho cobrou a estadia.
Três noites
babadas no cangote
de Clementina, D. Ponciana no
enterro do
cunhado, a irmã
casada
em Catalão. Na volta,
Clementina fez a
mala. Ia
sair,
não podia mais
ficar, além
do trabalho
era
a despesa.
Seu
Mundinho foi o primeiro
a dizer
não e D. Ponciana bateu o martelo no trabalho e na despesa. A menina só sai com a vida arrumada, viu? À noite,
Seu Mundinho,
ainda
com o gosto
do pau
na boca
de Clementina, resolveu a
questão. Ponciana, lembra do
Mandino? Ele
tem aquela padaria lá na rua da Bahia, pode ajudar.
Só não
lembro o telefone.
Manda
uma carta,
Mundinho, que Deus fará o
resto. Clementina amanheceu na Padaria Pão Nosso, mas Seu Mandino não
estava. Estava a
esposa, D. Rosa, tomando conta do caixa. Clementina mostrou a carta
e a conversa
pegou, D. Rosa
nascida, criada
e casada
em
Porangatu recordando
pessoas conhecidas, matando
saudades, o
desespero
que era
viver numa cidade
como Belo
Horizonte, ela
já sem
saúde e Mandino
sem
uma pessoa de
confiança
na padaria,
Clementina venha à tarde, fale com
Mandino que
o lugar
é seu.
Quatro
horas, Clementina falou com Seu Mandino
e mostrou a carta.
Seu
Mandino só
leu as primeiras linhas.
- Que idade você tem?
- Tenho trinta anos.
- Casada?
- Sou solteira.
- Solteira?
- Solteira, sim, senhor.
- Parentes aqui em
Belo
Horizonte?
- Não,
senhor.
- E amigos?
- Só D.
Ponciana e Seu Mundinho.
- Muito bem. Assino carteira,
mas o que
eu pago
é salário
e sem
folga aos domingos.
Pode começar
segunda-feira. Serve?
Uma semana depois, com a promessa de continuar visitando D.
Ponciana, Clementina alugou uma
vaga
numa casa
de cômodos
da rua
Guaicurus. Preferível esmagar baratas na rua Guaicurus do que
chupar o pau
de Seu
Mundinho na rua
Espírito Santo.
No fim
do ano,
já com
alguns trocados
na caderneta
de poupança
da Caixa
Econômica, Clementina mudou
para aquele
apartamento
conjugado
no Edifício
JK, na rua
dos Timbiras. Seu
Mandino serviu de fiador e Clementina dormiu com
ele. Eu
vou te
dar conforto mas você tem que me dar o que eu quero,
entendeu? Clementina
até hoje tem raiva quando lembra. Desgraçado.
Filho da puta.
Mas
deu. Deu tudo
o que
Seu Mandino quis e
não
quis. Deu à frente,
deu atrás, deu por cima, deu por baixo, deu de todo
jeito. Até
ter comprado móveis,
televisão e
geladeira, deu e deu.
Mobiliado o
apartamento, não deu mais. Seu Mandino quis dispensá-la. D.
Rosa
não deixou.
- Não,
Mandino. É a nossa única empregada de confiança. E, além do mais, eu não vou voltar prá caixa.
Seu
Mandino não
respondeu. A padaria era de
D. Rosa,
comprada com
a herança
do pai.
Isso vamos ver,
caralho, que
empregada
minha, ou
dá ou
rua. A
partir do
dia
seguinte começou a
faltar
dinheiro no caixa. Mil, dois mil, às vezes, até cinco mil cruzeiros.
Clementina falou com
D. Rosa e disse que
ia sair.
- Deixa, minha filha. Deixa, que
Mandino é assim
mesmo.
Pirracento como
ele só.
Mas, olha,
vamos fazer o
seguinte,
quando faltar
dinheiro, você faz os vales, acerta tudo, que eu, depois,
devolvo pra
você, entendeu?
Não
liga,
não, Mandino é uma
criança
grande. Sempre
foi.
Clementina nem
piscou. Criança
grande,
filho da puta,
isso
sim. E continuou na
padaria. A renovação do
contrato do aluguel do apartamento
foi feita
com
depósito. Seu
Mandino não
quis servir
de fiador
e D. Rosa
emprestou o dinheiro.
- Quando
puder, você me paga. Mandino é assim
mesmo. Parece um
Herodes, mas
no fundo,
no fundo,
é uma criança
grande. Sempre
foi.
A partir daquele mês Clementina passou a ganhar
dois salários.
Um, o oficial,
pago pela
Padaria Pão Nosso, cheque
assinado por
Seu
Mandino. O outro,
caixa
dois, pago por D. Rosa.
Clementina trabalhava há
pouco
mais de dois anos na Padaria
Pão Nosso quando conheceu Modelo. Foi
num domingo
à tarde,
no cinema
Acaiaca. No fim da sessão
tomaram um
sorvete
e, no dia
seguinte,
Modelo esperou-a na saída
do trabalho.
Dias
depois, dormiu
com
ela. Modelo
dizia-se estagiário da TV
Minas e Clementina acreditou.
Não havia como não acreditar. Modelo tinha pinta,
vestia bem, e
também
a tratava bem,
fazia carinho,
companhia, quem
sabe um
dia
Clementina podia deixar
a caixa
da Padaria
Pão
Nosso? Mas
o estágio
já
vai no quinto
ano, há
quatro
Modelo
mora com
Clementina e Clementina
não acredita mais que Modelo trabalhe na TV Minas.
Ou em
qualquer outro
lugar. Mas
fazer o quê?
Clementina tem trinta e
cinco anos, quase
trinta e seis,
e aos trinta e seis anos, caixa de padaria,
Clementina vai fazer
o quê?
Será que
aquele
cachorro não
vem mais?
Vai ver
encontrou alguma
vaca por aí, só pode ser. Desgraçado. Cachorrão. Clementina
tira
o sutiã
e a calcinha
e deita-se por
cima
da colcha, o
corpo
luzindo de suor.
Imediatamente, a
luz do
apartamento
em frente
se apaga e a
televisão é desligada. Lá
tá aquele
desgraçado
espiando outra
vez,
filho da puta. Levanta-se, apaga a luz e deita-se de novo. É. Aquele cachorrão não
vem mais
hoje,
não. Pega
uma revista
na mesinha-de-cabeceira e abana-se. Poxa,
com
este
calor bem que eu
precisava ter
um
ar-refrigerado. Mas, cadê dinheiro? Levanta-se, muda o canal na
televisão e deita-se de
novo.
Modelo não
presta mesmo,
eu
é que
tou querendo me
enganar, de burra que sou. Mas, também, se ele
for embora,
vou ficar
com quem?
Quem vai me
querer, esta baleia?
Chupar o pau
de Seu
Mundinho ou
dar o cu pra
Seu Mandino? Soam
passos
no corredor.
Clementina presta atenção. Será que
é aquele
cachorrão? A porta do apartamento
em frente
abre-se e alguém
entra. Cachorro. Eu aqui sozinha e o
cachorrão se esbaldando
por aí. Mas tu vai ver, filho da puta. Ah, vai.
Qualquer
dia ainda
tranco essa porta
e tu
vai ver
o quê
que
é bom
prá tosse.
Ou tu
pensa que
eu sou o quê,
hem? Tá pensando que
eu sou vagabunda?
Eu não
sou vagabunda,
não,
seu desgraçado,
seu cachorro.
Sou é muito
mulher
pra te
botar uma boa camada de
chifres, seu
filho da puta,
sem
vergonha. É só
continuar me
sacaneando, que
tu
vai ver. E
depois
não vem me
dizer que eu não avisei, seu desgraçado,
cachorro
sem-vergonha. Levanta-se,
acende a luz
e olha a janela
do apartamento
em frente. Ah, quer
ver, veja, foda-se. Toque
punheta, seu
puto, que
eu também
já toquei muitas
vezes. Desliga a
televisão e fica na frente do espelho,
olhando a janela
escurecida do outro lado da área interna do
edifício. Não
vai tocar,
não,
seu merda? |