Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX NÚMERO 05|ABRIL DE 2010

NÚMERO 05

Abril 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Clarice Lispector ou a travessia da infelicidade

 

Lêdo Ivo

Foi Maceió, a minha terra natal, o primeiro chão brasileiro pisado pela menina ucraniana que haveria de chamar-se Clarice Lispector. Na capital alagoana transcorreram as operações iniciais de fixação e assentamento, em solo estrangeiro, de uma pequena e modesta família de imigrantes que, em longa e talvez patética viagem de fuga, pôde enfim respirar o ar de segurança e esperança numa cidade nordestina em breve tornada simples etapa de trajetória mais estendida. Mas a mesa da manhã que nasce está sempre juncada de pequenos mistérios. Em Maceió, nas ruas que cheiravam a açúcar e maresia, e que declinavam para o mar de navios ancorados, a menina ucraniana foi tocada para sempre pelo que haveria de ser o emblema do seu destino: a luminosidade solar. Após os dias e meses iniciais de neve e bruma, e de céus fechados e sombrios, ela conheceu o sol, o mormaço, e o vento do mar.

A alagoanidade inicial de Clarice Lispector sempre foi escondida pelos seus biógrafos e intérpretes, que se limitam, às vezes, e condescendentemente, a uma brevíssima menção. Decerto a consideram irrelevante. Mas uma passagem, na história subterrânea dos espíritos, tem às vezes a importância de uma longa permanência. Lembre-se que a Macabéa de A hora da estrela é uma alagoana que emigra para o Sul e, transplantada, encontra a desilusão e a morte.

Clarice Lispector não era Clarice Lispector. Na operação transplantadora ela perdeu tudo o que trazia: a pátria, a língua e o nome. Uma pátria nova se abriu a seus passos e à sua imaginação. Uma língua nova passou a substituir a língua perdida. E um nome novo substituiu o nome verdadeiro, perdido para sempre, e para sempre escondido.

Clarice Lispector: o nome novo ocultava, ou semiocultava, a sua condição de judia. Com a sua etimologia de claridade e espectro luminoso, parece ter nascido, como uma flor, do próprio chão alagoano, ou das dunas ondulantes junto ao mar. Era um nome de luz e de esplendor – e, por toda a vida, ela, Clarice Lispector, haveria de portá-lo como se ele fora um radioso pseudônimo.

Os críticos e historiadores literários, com o seu eruditismo predatório e a sua vida livresca, têm o habito de atravessar a infância dos criadores literários com a cautela ou desenvoltura de quem salta uma poça d’água. Só se sentem seguros, e confortados, diante das maioridades físicas ou culturais. E foi assim que muitos abriram a primeira página de Perto do coração selvagem: como se a estreia literária correspondesse a uma aparição biológica. Mas nós, os criadores literários – os poetas, romancistas e dramaturgos –, sabemos  que a nossa história verdadeira habita o buraco negro de uma infância de sóis cruzados e constelações. É nesse estuário oculto que guardamos os nossos sonhos e segredos. No caso de Clarice Lispector, a luminosidade radical não se cingiu ao nome novo e misterioso, ao seu nome quase sem pátria, pseudônimo e esconderijo de si mesma, pátria silábica de um escondimento perpétuo. Essa claridade, essa claricidade se converteu em linguagem e banha a sua obra inteira; uma obra que é uma contínua fulguração verbal e sintática, uma ofuscante cintilação regencial.

Essa dicção translúcida percorre toda a sua obra, desde os romances, como Perto do coração selvagem, O lustre e A maçã no escuro, até os contos, desde as crônicas às reportagens. Dir-se-ia que ela, brasileira naturalizada, naturalizou uma língua, convertendo-a num instrumento pessoal e desligado de qualquer tradição egrégia; um idioma solar, alagoanamente solar, destinado a narrar as tribulações de pequenas criaturas rodeadas de si mesmas e desaparelhadas para efetuar o trajeto em direção aos outros; uma prosa de escancarada diurnidade mesmo quando ela fala da noite e relata a escuridão; uma prosa de fulguração e enfeitiçamento; uma prosa ambígua, clareada sempre por uma auréola poética simultaneamente concreta – e espessa em sua concretitude – e evanescente. E, em muitos casos, uma prosa que ousa dispensar o enredo e a motivação, para imperar, num isolamento radioso, na página em branco.

   Clara Clarice – ao lembrá-la agora, é como se um pássaro esvoaçasse no céu azul de Maceió, como um sinal durável de sua breve e misteriosa alagoanidade. Um pássaro: os erres de sua dicção pareciam ter algo do grito gutural das gaivotas.

“A beleza é uma promessa de felicidade” – pássaro ferido, Clarice Lispector desmentiu, em sua vida, esse aforismo de Stendhal.

Desde o nosso primeiro encontro, em 1944, quando ela surgiu diante de mim como uma aparição deslumbrante, eu entendia que, com a sua beleza, que tinha algo de aristocrático, em contraste com a extrema humildade de suas origens, ela deveria criar a sua obra longe do coração selvagem da vida, num lugar que lhe permitisse ser e respirar sem os contágios e colisões dos ajuntamentos ou promiscuidades borbulhantes. O caminho de sua felicidade reclamava o distanciamento e a viagem. A menina estrangeira, tornada mulher, precisava de outros chãos estrangeiros para afirmar a sua natividade espiritual.

O seu casamento com um diplomata me pareceu ser um acerto do destino, inclusive porque os seus primeiros passos,  no cenário editorial, antecipavam obstáculos e resistências. Por iniciativa de seu grande amigo Lúcio Cardoso, os originais de Perto do coração selvagem foram encaminhados a Álvaro Lins, visando a uma edição pela prestigiosa Editora José Olympio. O mais poderoso crítico da época desaconselhou a sua publicação. Outro crítico influente, o judeu austríaco naturalizado brasileiro Otto Maria Carpeaux, também leu os originais de Clarice, numa espécie de recurso a uma nova instância literária, e o seu julgamento foi o mesmo do seu preclaro colega. Ambos aconselhavam a jovem romancista a recolher-se à sua concha e voltar mais tarde, querendo. Sem condições de estrear por uma editora condigna, Clarice Lispector foi obrigada a aceitar a proposta de uma editora de parca ressonância cultural – a Editora A Noite – a qual aquiesceu em publicar o livro levando em conta a sua antiga condição de redatora do jornal A Noite, da mesma organização estatal. Nada lhe foi pago. Ela se limitou a receber cem exemplares, para distribuí-los entre amigos, parentes, críticos literários e jornalistas. O título do romance lhe foi dado por Lúcio Cardoso – e a epígrafe de James Joyce, que ela então desconhecia, levou muito crítico da época a trombetear a sua filiação ao autor de Ulisses. A meu ver, os modelos são Katherine Mansfield, Rosamond Lehmann, Clemence Dane e, claro, Virginia Woolf, com as quais ela ostenta nítidas afinidades.

A influência de Katherine Mansfield sobre Clarice Lispector foi seminal: corresponde a uma afinidade profunda, tanto estilística como psicológica e moral. Haurida no momento em que ela descobria em si mesma o dom da criação e a capacidade de lidar com um mundo imginário, não marcou apenas seu instante inicial de escritora, como a acompanhou a vida inteira. Em ambas há uma espécie de identidade do olhar: um olhar deslumbrado e pronto para enxergar as coisas miúdas ou quase imperceptíveis, a subterrânea fervilhação da vida cotidiana, e captar o segredo das paisagens e o mistério engasgado nas criaturas aparentemente banais – um olhar de quem está vendo as coisas pela primeira vez e consigna essa descoberta num estilo poético partilhado entre a concretude e a evanescência. Na biblioteca de Clarice Lispector figurava Felicidade, o Bliss de Katherine Mansfield traduzido por Érico Veríssimo, com sinais de assídua leitura. E, quando em Nápoles, em 1944, ela manifestou a Lúcio Cardoso, numa carta, o seu encantamento diante de uma seleção da correspondência de Katherine Mansfield traduzida para o italiano. E não nos esqueçamos de que, na mesma época, Rosamond Lehmann e Clemence Dane eram altamente apreciadas e lidas nos meios culturais brasileiros, especialmente no círculo de Lúcio Cardoso, em que transitava Clarice Lispector.

A consagração crítica advinda da estreia permitiu que o seu segundo livro fosse aceito pela Agir, uma nova editora que surgia sob a direção literária de outro crítico famoso, Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima). A vendagem decepcionante a levou a procurar um novo editor para o seu terceiro romance, A cidade sitiada. Nessa época eu trabalhava precisamente na Editora A Noite, então dirigida por Adonias Filho, e me coube receber os originais (Clarice estava então em Roma) e cuidar da publicação. O surgimento da Editora do Autor, de Rubem Braga e Fernando Sabino, ampliou a presença de Clarice Lispector no cenário cultural. Mas logo vieram novos dias de recusa e dificuldades. Durante certo tempo, quando ninguém queria editá-la, o poeta Álvaro Pacheco a acolheu em sua editora, a Artenova.

Autora de pequeno público, de textos – romances, contos, crônicas – que se distinguiam pelo seu ar requintado, e às vezes por uma sibilinidade que só podia ser vencida ou atravessada pelo caminho da atenção desdobrada, Clarice Lispector enfrentou, a vida inteira, o desafio das emigrações editoriais, percorrendo desde as pequenas editoras às mais prestigiadas e aparelhadas, para ampliar a sua presença no mercado. No seu caso específico de escritora to the happy few, a morte foi o seu grande e definitivo editor. Desaparecida, ela foi, finalmente, descoberta e redescoberta, numa iluminação que transpôs as fronteiras aborígines. Em Paris ou Nova Iorque, costumo encontrar traduções de Clarice Lispector, e me sobem à lembrança aqueles tempos em que ninguém, praticamente, queria publicá-la, ou o fazia num gesto de largada generosidade.

Separada do marido diplomata, Clarice Lispector voltou a morar no Rio e, num exercício de sobrevivência e afirmação literária, retornou à antiga profissão de jornalista. Aos desapontamentos editoriais, acrescentaram-se as humilhações jornalísticas. Em troca de magras remunerações, espalhava os seus textos em vários jornais e revistas. Por certo tempo, foi cronista do Jornal do Brasil, que a demitiu sumária e implacavelmente, sob a alegação de que as suas crônicas não tinham leitores. Na redação da Manchete, vi, uma vez, um de seus trabalhos (ela entrevistava personalidades e celebridades locais) ser recusado pelo diretor Justino Martins, o qual, para estimulá-la a ser mais produtiva e competente, a aconselhou a atualizar a sua agenda sexual. E Clarice, vítima recente de um acidente doméstico, ponderou-lhe, com a sua voz gutural de gaivota no mormaço, e numa humildade que correspondia a uma penosa rendição à miséria da vida: “Não posso transar com ninguém, Justino. Tenho o corpo todo queimado.”

A outrora bela e deslumbrante Clarice Lispector atravessava seu inferno astral. Descera do seu pedestal de princesa de nossas letras para ser uma simples e necessitada passante num mundo cru e impiedoso e palco de ironias e humilhações. Vestida em roupas provindas de sua travessia no mundo diplomático e que lhe conferiam um ar dessueto e estrangeiro, de fora da estação, Clarice Lispector vivia o processo de sua própria destruição e infelicidade.

No seu túmulo, no cemitério judeu do Caju, na zona portuária do Rio de Janeiro, a lápide menciona apenas o nome e o ano da sua morte. (Com a sua beleza, que era uma stendhaliana promessa de felicidade, ela escondia a idade, e um biógrafo chegou a matriculá-la na Faculdade Nacional de Direito aos 14 anos). Foi a sua última viagem de emigrante. Agora, mudada em pó e glória, ela está, ao mesmo tempo, perto e longe do coração selvagem da vida.

Lêdo Ivo (Brasil, 1924). Poeta, romancista, jornalista, ensaísta. Autor de As alianças (1947), Finisterra (1972), Confissões de um poeta (1979), Curral de peixe (1995) e O rumor da noite (2000), além de quase 40 outros títulos. Dentre os vários prêmios que recebeu, encontra-se o Casa das Américas (Cuba, 2009). Contato: moniquecfm@academia.org.br.

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