BM Salvador de Madariaga, diz, na sua obra, a propósito dos
franceses, ingleses e espanhóis, que os
franceses privilegiam o droit, os
ingleses o fair play e os espanhóis o
honor. Pode-se dizer que a cultura
brasileira privilegia o brincar?
GF
Sim.
BM Qual a origem, na nossa formação histórica, do privilégio
do brincar? O que nos veio do índio, do
negro e do português?
GF
O brincar veio, sobretudo, do negro, que é
um extrovertido. O negro é mais do que o
europortuguês, mais do que o ameríndio de
origem asiática e não-tropical, o verdadeiro
filho do trópico. De modo que no Brasil ele
não veio para um meio estranho, veio para um
meio ao qual ele estava predisposto por
vários motivos, a começar por um motivo
biológico, pela sua transpiração. O negro
transpira pelo corpo inteiro. Isto é uma
vantagem enorme na sua acomodação ao clima
tropical. Transpirando pelo corpo inteiro,
ele é extrovertidamente feliz no seu modo de
respirar o trópico.
BM
Mas o índio também brincava.
GF
Você está, sem dúvida, informada de uma
grande contribuição dada por uma colega da
Universidade Colúmbia, chamada Ruth Benedict,
que dividiu os seres humanos em dionisíacos
e apolíneos. O ameríndio foi,
principalmente, um antidionisíaco, ele foi
um apolíneo, o que se explica pelo fato,
geralmente esquecido, de que o ameríndio não
é um filho do trópico, onde ele viveu com
saudade da Ásia. O negro é um filho completo
do trópico, encontrou-se, no Brasil, em
terra dele, deparou com estranhos no
trópico, como eram os portugueses e os
ameríndios. Deve ter se sentido como o
verdadeiro homem do trópico do Brasil,
portanto, com uma capacidade de brincar
superior à dos outros. No que diz respeito
ao português, fala-se muito da saudade como
tristeza, e nós geralmente encontramos
evidências de um homem triste, não é?
BM Sim, mas, em Casa grande & senzala, o senhor nos
fala do cristianismo muito pouco ortodoxo do
português, que chegava a namorar nas
igrejas, e uma das características do
brincar é justamente a não-aceitação da
ortodoxia.
GF Aí, no modo de ser cristão, o português brincou. Onde ele
não brincou foi na saudade. A saudade é o
antibrincar.
BM Sim.
GF Quem mais brincou, no Brasil, foi o negro.
BM
O negro adorava o seu orixá, cultuando um
santo católico. O senhor acha que essa
dissimulação tinha algo a ver com o brincar,
ou ela deve ser explicada só em termos das
relações de força?
GF Isso nos leva, confesso, para um campo em que nunca pensei.
É uma pergunta interessantíssima, mas eu não
estou preparado para responder. É bem
possível que tenha havido dissimulação por
parte do negro.
BM A base do brincar é a máscara, é a dissimulação, a criança
brinca de ser outra, o carnavalesco também,
e eu penso que, se não fosse o privilégio do
brincar, a aculturação das religiões no
Brasil teria se feito de outra maneira. O
africano adora Iansã, cultuando Santa
Bárbara; o jesuíta catequizava,
transformando a liturgia em função do índio.
GF Sim, mas eu não posso deixar de lado a saudade portuguesa
como uma maneira de não brincar.
BM Estou inteiramente de acordo.
GF Foi uma coisa de tal modo preponderante que deu a tristeza
pela saudade.
BM Mas o senhor acha que prevalece aqui o desejo de brincar ou
a saudade?
GF Hoje, prevalece o brincar, eu creio que sim, mas aí você
tem que tomar em consideração outras
influências.
BM Quais?
GF Você já não pode dar ao Brasil uma configuração de
europeidade inteiramente ibérica nem sequer
portuguesa, porque em certa fase da formação
brasileira nós temos a influência francesa.
O francês brinca?
BM Com o corpo, não. Brinca com a palavra.
GF Acrobaticamente com a palavra.
BM O nosso brincar está muito ligado ao corpo.
GF Sem dúvida nenhuma.
BM Como o brincar da criança.
GF Sim. Mas eu peço permissão para voltar aos franceses.
BM Por favor, volte.
GF O brasileiro da classe alta burguesa brincou muito com a
mulher francesa, a coquete, a prostituta
fina que veio para o Brasil e, a certa
altura, foi até mais apreciada do que a
mulata. Não lhe parece que o brincar com a
francesa deva ser tomado em consideração?
BM Jamais teria me ocorrido isso, mas eu já pensei numa
equivalência entre o nosso brincar e a
libertinagem do século XVIII, que
desculpabilizava o gozo. Isso existiu na
França, mas jamais existiu na cultura
inglesa e nem na cultura ibérica.
GF Na alemã também não. Você já prestou atenção à grande
influência da boneca francesa sobre a
formação brasileira? Creio que foi uma
influência enorme e que ainda não foi
estudada. A boneca começou a ter influência
sobre a criança e, através desta, sobre a
mãe e o pai da criança, todos sensibilizados
pela boneca loura, ariana.
BM
Sim, a burguesia. O povo valoriza a negra. O
carnavalesco Joãosinho Trinta mostrou, num
dos seus muitos desfiles, uma Cinderela
negra. Trata-se, aliás, de um exemplo de
como o brincar subverte os valores da
burguesia, quer dizer, aceita a Cinderela
que faz parte do nosso imaginário, mas dá a
sua versão brincalhona, ladina e negra.
GF Sem dúvida que é um ponto a ser considerado. Como é que
você aplica a teoria psicanalítica?
BM Durante três anos, eu me coloquei à escuta dos
carnavalescos no intuito de esclarecer
melhor a questão da identidade cultural –
uma questão, aliás, sintomática da nossa
intelligentzia, que duvida da própria
identidade. Isso não diz respeito ao senhor
como autor. O senhor está certo do seu lugar
subjetivo e da sua identidade, não a vive de
maneira angustiada como os outros autores
citados pelo Dante Moreira Leite em O
caráter nacional.
GF A senhora acha que Mario de Andrade foi um angustiado? Eu
acho que sim, porque, na verdade, ele nunca
assumiu a negritude.
BM No entanto, foi ele que escreveu Macunaíma.
GF Mas aí houve uma transferência, foi uma obra-prima de
transferência.
BM
É verdade, porque há uma ruptura muito
grande entre o Mario crítico, o ensaísta, e
o autor de Macunaíma.
GF São dois Marios.
BM
Um era branco e o outro era mestiço,
pertencia à cultura do brincar, através da
qual nós damos a nossa versão da cultura
europeia. Trata-se de uma cultura mestiça,
porque ela não é nem do negro, nem do
branco. Pena que seja tão desvalorizada pela
cultura oficial. O senhor vê que até hoje a
tendência é tratar o Carnaval como um fato
exclusivamente folclórico.
GF
Sem dúvida. Realmente, a tendência oficial é
fazer do Carnaval uma simples expressão
pitoresca, folclórica. O Roberto Da Matta
está rompendo com isso e também outro
antropólogo do Museu Nacional, o Gilberto
Velho, que eu considero tão importante
quanto o Roberto Da Matta.
BM Bem, vou ficar por aqui. Não desejo sobrecarregá-lo.
GF
Você me encantou com suas perguntas
inteligentes. Estou crescentemente
interessado no seu trabalho. |