Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX NÚMERO 05|ABRIL DE 2010

NÚMERO 05

Abril 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Gilberto Freyre:

o brincar na cultura brasileira

 

Betty Milan

Escritor e sociológo brasileiro nascido no Recife em 1900 e falecido em 1987. Bacharel em ciências e letras pelo Colégio Americano Gilreath, do Recife, em 1917, partiu no ano seguinte para os Estados Unidos, para estudar na Universidade Baylor. Bacharel em Artes por essa escola em 1920, vai para Nova York em 1921, entrando na Universidade Colúmbia, onde conheceu o antropólogo Franz Boas, sua principal referência intelectual. Sua obra principal é Casa grande & senzala, editada em 1933. Trata-se do primeiro grande ensaio sobre a formação da sociedade brasileira com repercussão internacional. Seus livros estão traduzidos em mais de uma dezena de países. Em 1962, recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, e em 2008, postumamente, a Grã-Cruz da Legião de Honra da França.

Foi em julho de 1984. Eu andava às voltas com o projeto de me aprofundar no que Joãosinho Trinta a chamava de “cultura do brincar”. Para saber qual a origem do nosso brincar, ocorreu-me consultar Gilberto Freyre. Telefonei de São Paulo para a Fundação Joaquim Nabuco e consegui ser recebida por ele. Como, além das minhas questões escritas, eu tivesse um gravadorzinho, o encontro se configurou como uma entrevista.

Lembro a pontualidade e a elegância de Freyre, que, apesar do calor, estava vestido de terno. Lembro também a nossa seriedade extrema, decorrente da surpresa dele e do meu receio. Joãosinho Trinta era meu guia espiritual, e eu temia que suas ideias fossem desconsideradas pelo sociólogo. Por não o conhecer, claro.

Foi um dos intelectuais brasileiros mais abertos que encontrei. Sempre disposto a reconsiderar as suas posições. Respondeu a todas as minhas perguntas, me questionando às vezes sobre o que eu pensava da sua resposta e me dando assim a possibilidade de ter com ele uma conversa de igual para igual – malgrado a diferença de idade e de estatura intelectual. No fim, teve a gentileza de me oferecer um livro com uma conferência sobre Camões, em que pôs uma dedicatória inesquecível: “pelas afinidades do pensar e do sentir”.

No dia seguinte, recebi um telefonema da Fundação, me informando que, por sugestão de Gilberto Freyre, fora colocado um carro à minha disposição para que eu conhecesse Recife.

Não vou dizer que ficamos amigos, mas isso poderia ter acontecido, pois um tempo depois eu o convidei para um congresso de psicanálise no Rio de Janeiro e, apesar das dificuldades de saúde, ele tomou um avião e foi, prestigiando a minha causa de então.

Segue o texto da entrevista, cujo tema é o brincar na formação da cultura brasileira.

***

 

    BM Salvador de Madariaga, diz, na sua obra, a propósito dos franceses, ingleses e espanhóis, que os franceses privilegiam o droit, os ingleses o fair play e os espanhóis o honor. Pode-se dizer que a cultura brasileira privilegia o brincar?

GF Sim.

BM Qual a origem, na nossa formação histórica, do privilégio do brincar? O que nos veio do índio, do negro e do português?

GF O brincar veio, sobretudo, do negro, que é um extrovertido. O negro é mais do que o europortuguês, mais do que o ameríndio de origem asiática e não-tropical, o verdadeiro filho do trópico. De modo que no Brasil ele não veio para um meio estranho, veio para um meio ao qual ele estava predisposto por vários motivos, a começar por um motivo biológico, pela sua transpiração. O negro transpira pelo corpo inteiro. Isto é uma vantagem enorme na sua acomodação ao clima tropical. Transpirando pelo corpo inteiro, ele é extrovertidamente feliz no seu modo de respirar o trópico.

BM Mas o índio também brincava.

GF Você está, sem dúvida, informada de uma grande contribuição dada por uma colega da Universidade Colúmbia, chamada Ruth Benedict, que dividiu os seres humanos em dionisíacos e apolíneos. O ameríndio foi, principalmente, um antidionisíaco, ele foi um apolíneo, o que se explica pelo fato, geralmente esquecido, de que o ameríndio não é um filho do trópico, onde ele viveu com saudade da Ásia. O negro é um filho completo do trópico, encontrou-se, no Brasil, em terra dele, deparou com estranhos no trópico, como eram os portugueses e os ameríndios. Deve ter se sentido como o verdadeiro homem do trópico do Brasil, portanto, com uma capacidade de brincar superior à dos outros. No que diz respeito ao português, fala-se muito da saudade como tristeza, e nós geralmente encontramos evidências de um homem triste, não é?

BM Sim, mas, em Casa grande & senzala, o senhor nos fala do cristianismo muito pouco ortodoxo do português, que chegava a namorar nas igrejas, e uma das características do brincar é justamente a não-aceitação da ortodoxia.

GF Aí, no modo de ser cristão, o português brincou. Onde ele não brincou foi na saudade. A saudade é o antibrincar.

BM Sim.

GF Quem mais brincou, no Brasil, foi o negro.

BM O negro adorava o seu orixá, cultuando um santo católico. O senhor acha que essa dissimulação tinha algo a ver com o brincar, ou ela deve ser explicada só em termos das relações de força?

GF Isso nos leva, confesso, para um campo em que nunca pensei. É uma pergunta interessantíssima, mas eu não estou preparado para responder. É bem possível que tenha havido dissimulação por parte do negro.

BM A base do brincar é a máscara, é a dissimulação, a criança brinca de ser outra, o carnavalesco também, e eu penso que, se não fosse o privilégio do brincar, a aculturação das religiões no Brasil teria se feito de outra maneira. O africano adora Iansã, cultuando Santa Bárbara; o jesuíta catequizava, transformando a liturgia em função do índio.

GF Sim, mas eu não posso deixar de lado a saudade portuguesa como uma maneira de não brincar.

BM Estou inteiramente de acordo.

GF Foi uma coisa de tal modo preponderante que deu a tristeza pela saudade.

BM Mas o senhor acha que prevalece aqui o desejo de brincar ou a saudade?

GF Hoje, prevalece o brincar, eu creio que sim, mas aí você tem que tomar em consideração outras influências.

BM Quais?

GF Você já não pode dar ao Brasil uma configuração de europeidade inteiramente ibérica nem sequer portuguesa, porque em certa fase da formação brasileira nós temos a influência francesa. O francês brinca?

BM Com o corpo, não. Brinca com a palavra.

GF Acrobaticamente com a palavra.

BM O nosso brincar está muito ligado ao corpo.

GF Sem dúvida nenhuma.

BM Como o brincar da criança.

GF Sim. Mas eu peço permissão para voltar aos franceses.

BM Por favor, volte.

GF O brasileiro da classe alta burguesa brincou muito com a mulher francesa, a coquete, a prostituta fina que veio para o Brasil e, a certa altura, foi até mais apreciada do que a mulata. Não lhe parece que o brincar com a francesa deva ser tomado em consideração?

BM Jamais teria me ocorrido isso, mas eu já pensei numa equivalência entre o nosso brincar e a libertinagem do século XVIII, que desculpabilizava o gozo. Isso existiu na França, mas jamais existiu na cultura inglesa e nem na cultura ibérica.

GF Na alemã também não. Você já prestou atenção à grande influência da boneca francesa sobre a formação brasileira? Creio que foi uma influência enorme e que ainda não foi estudada. A boneca começou a ter influência sobre a criança e, através desta, sobre a mãe e o pai da criança, todos sensibilizados pela boneca loura, ariana.

BM Sim, a burguesia. O povo valoriza a negra. O carnavalesco Joãosinho Trinta mostrou, num dos seus muitos desfiles, uma Cinderela negra. Trata-se, aliás, de um exemplo de como o brincar subverte os valores da burguesia, quer dizer, aceita a Cinderela que faz parte do nosso imaginário, mas dá a sua versão brincalhona, ladina e negra.

GF Sem dúvida que é um ponto a ser considerado. Como é que você aplica a teoria psicanalítica?

BM Durante três anos, eu me coloquei à escuta dos carnavalescos no intuito de esclarecer melhor a questão da identidade cultural – uma questão, aliás, sintomática da nossa intelligentzia, que duvida da própria identidade. Isso não diz respeito ao senhor como autor. O senhor está certo do seu lugar subjetivo e da sua identidade, não a vive de maneira angustiada como os outros autores citados pelo Dante Moreira Leite em O caráter nacional.

GF A senhora acha que Mario de Andrade foi um angustiado? Eu acho que sim, porque, na verdade, ele nunca assumiu a negritude.

BM No entanto, foi ele que escreveu Macunaíma.

GF Mas aí houve uma transferência, foi uma obra-prima de transferência.

BM É verdade, porque há uma ruptura muito grande entre o Mario crítico, o ensaísta, e o autor de Macunaíma.

GF São dois Marios.

BM Um era branco e o outro era mestiço, pertencia à cultura do brincar, através da qual nós damos a nossa versão da cultura europeia. Trata-se de uma cultura mestiça, porque ela não é nem do negro, nem do branco. Pena que seja tão desvalorizada pela cultura oficial. O senhor vê que até hoje a tendência é tratar o Carnaval como um fato exclusivamente folclórico.

GF Sem dúvida. Realmente, a tendência oficial é fazer do Carnaval uma simples expressão pitoresca, folclórica. O Roberto Da Matta está rompendo com isso e também outro antropólogo do Museu Nacional, o Gilberto Velho, que eu considero tão importante quanto o Roberto Da Matta.

BM Bem, vou ficar por aqui. Não desejo sobrecarregá-lo.

GF Você me encantou com suas perguntas inteligentes. Estou crescentemente interessado no seu trabalho.

Betty Milan (Brasil, 1944). Romancista, ensaísta e dramaturga. Colaborou nos principais jornais brasileiros e atualmente é colunista da revista Veja. Sua bibliografia inclui títulos como O papagaio e o doutor (1991), Paris não acaba nunca (1996), e Fale com ela (2007). Entrevista originalmente publicada como “Extrovertidamente felizes”. Folha de S. Paulo, 12/03/2000, figura no livro A força da palavra (Editora Record, 1996). Contato: bettymilan@free.fr.

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