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ANTÓNIO
JUSTO
ENTRE A
PALAVRA E A IMAGEM
Por uma
Efeminização do Discurso |
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“Nada de novo sob o Sol” diziam já os
antigos. Isto não nos deve impedir de, à
sombra das imagens, nos aquecermos no fogo
das palavras e nelas aumentar o espectro das
perspectivas.
No princípio estava o Verbo que é mais que a
palavra. Ele, mais que abstracção, é acção
na complementação, é encarnação. O verbo, o
logos é biótopo, é ao mesmo tempo razão e
natureza, abstracção e experiência do todo,
no sentido do todo (Alfa e Ómega), para lá
dum simples ordenar de letras do alfabeto.
Da palavra surgiu a cultura, numa
metamorfose esforçada contra a natura.
A interpretação da realidade numa dinâmica
(sentido) de palavra contra a imagem, de
masculino contra o feminino, de cidade
contra o campo, tem sido redutora duma
realidade que é Verbo. A imagem é
a-perspectiva e aponta para a fonte profunda
da cultura.
Primeiro está a imagem e depois vem a
palavra. A imagem é indutiva, parte da
experiência directa enquanto que a palavra é
dedutiva, resultando duma elaboração
intelectual emancipada. Pelas duas se
pretende apalpar e expressar a realidade, as
duas são informação, encontrando-se numa
relação de autonomia complementar.
Primeiro está a imagem que encobre muitos
conceitos. Sem a palavra o conceito não
seria dado à luz e ficaria submerso na
imagem, perdido na ramagem da floresta
primitiva, reduzido ao ulular da selva
animal. O pensamento torna-se num andaime de
que as palavras são os ferros. A imagem cria
a necessidade do suporte.
A língua vive das suas metáforas tecidas de
imagens. Por detrás das palavras escondem-se
imagens, as ideias. As ideias são para
Platão imagens protótipo, são as coisas do
mundo das aparições, dos fenómenos. Para
Kant são os reguladores do esforço humano,
provenientes da razão, sem realidade
objectiva mas que possibilitam a construção
de imagens fechadas do mundo, ultrapassando
a possibilidade da experiência nas ideias de
Deus, liberdade e imortalidade.
Na imagem eu não falo, sou falado… ela é o
lugar da poesia e da religião.
O discurso não se forma numa roleta das
palavras ao gosto dum linguarejar
unidimensional masculino. A palavra só é
verdadeira, se encarnada. Não chega a
informação do sémen (a palavra) é necessária
também a imagem, o útero que lhe dá
consistência. Só assim ela é completa, é
verbo. De resto, reduziríamos a palavra a
uma tautologia do quem esteve primeiro, o
galo ou a galinha, se quem está na origem é
o esperma ou o óvulo. Não passaríamos de
guarda-livros da vida! Entre o Esperma e o
Óvulo encontra-se uma outra Dimensão da
Realidade.
Sem a matriz da selva, sem a fantasia não
haveria agir humano, nem arte nem mitologia.
A geração, a criatividade dá-se na união e
não na divisão. A sociedade patriarcal, a
civilização, domina mediante a afirmação
exagerada da palavra contra a imagem. A
palavra real emancipa-se, da imagem,
abstraindo-a mas mantendo ao mesmo tempo uma
relação de filiação com ela. É uma relação
de necessidade que leva o espírito à gruta,
o espírito ao corpo gerado pelo espírito e
ao mesmo tempo transformado em lugar de
nascimento da divindade. Aí, o ser integra o
estar, num processo de ser, ao mesmo tempo
parido e parturiente. No eu da minha palavra
reúne-se o grito, a ressonância do encontro,
o intermédio, o sentido surgido entre imagem
e palavra. De mim vazio, entrelinha,
torno-me imagem e grito (palavra) do mundo
para com ele nascer no outro, à luz do
encontro trinitário, na complementaridade do
eu e do tu a expressar-se no nós sempre a
acontecer.
O eu e o tu ganham forma e transcendem-se no
nós. O eu, tal como a palavra que o
consciencializa, pressupõe não só a voz mas
também o eco no tu, na imagem dum eu
primordial. Imagem e palavra encontram-se em
correlação, tal como praxis e teoria, tal
como mulher e homem, matéria e espírito,
tempo e espaço, natureza e cultura, na
coexistência e interferência complementar,
sempre a caminho e a gerar uma terceira
dimensão, na relação do todo integral.
O andaime é veículo, diríamos, é a lógica
que não se deixa reduzir à palavra porque
faz parte da imagem. Antes da palavra está o
balbuciar, o gaguejar do pensar que é a
expressão das dores de parto, da noite sem
sonho, no dormir do estar sem ser, para
depois começar a sonhar e a aparecer. No
grito treme, ao mesmo tempo, o espírito e a
matéria que, nas pegadas do tempo, deixam o
eco sempre repetido na palavra.
Também o mar das emoções gera as ondas do
sentimento. Emoção, sentimento e palavra são
diferentes níveis de expressão duma
realidade comum. Veículo e veiculado
encontram-se em relação de necessidade
mútua.
A realidade da árvore não se deixa definir
pelas folhas como as folhas não se definem
pela árvore. O mesmo se diga do pensamento e
das palavras. O andaime não se deixa limitar
a veículo; ele faz parte integrante dum
processo vivo. A palavra, como o ferro do
andaime, realiza, desde que enquadrada no
processo de que ela se torna também
mensageira. Se olho para a folha vejo também
ramos e talvez uma perspectiva da árvore.
A palavra realiza-se e redime-se na medida
em que revela ou dá acesso ao conceito, à
ramagem da árvore e a conduz à imagem
inicial. A palavra é mais que código, mais
que veículo. |
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A Palavra petrificada para o Povo no Deserto
do Sinai |
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É verdade que a Sarça-ardente de Moisés
(1.400 a.C.), sem a palavra dos Mandamentos,
neste caso, uma espécie de materialização do
espírito, não expressaria a Verdade da Sarça
ardente, do Mistério. Moisés, o iniciado,
que experimentou o mistério que o prostrou,
manifesta a sua sombra na força da imagem,
na realidade do fogo. A Verdade
experimentada por Moisés só podia ser
transmitida, duma forma distante,
democratizada através da palavra, dos
mandamentos, ao povo. A sua experiência do
todo (Verdade) prostra-o por terra,
desfigurando-o.
Moisés não confia no povo e resiste a Deus,
não reconhece no povo a capacidade de se
subordinar à religião nem ao direito.
Desfigura-se e reconhece depois que a
integralidade da verdade (Realidade) pode
encontrar o mais elementar acesso a ela
através da janela da palavra, nos
mandamentos. Não chega a mera palavra; esta
tem de se espiritualizar num processo de
errar pelo deserto da vida antes de atingir
a Terra Santa, que Moisés mesmo depois de 40
anos (uma vida inteira de procura) não chega
a atingir. O primeiro degrau no acesso à
verdade dá-se pelas palavras, a folhagem do
pensamento. A realidade (verdade) em fluxo
na Sarça-ardente só se torna acessível à
generalidade através da experiência (de
Moisés) petrificada nas palavras e deste
modo adaptada ao receptor. O povo não tem
acesso directo à imagem e menos ainda à
realidade que prostrou Moisés. A verdade
transcende a sua petrificação nas pedras do
Sinai e nas pedras do cérebro. Ela é
dinâmica como a Sarça-ardente sempre em
processo a acontecer. Por isso há que despir
as palavras da “mentira” que as envolve,
tirar-lhe a ilusão das pedras da lei. O
processo de libertação da “escravidão do
Egipto” pressupõe o ajuntamento e a subida
ao Sinai. Mesmo a lei libertadora não
garante a chegada.
Se a palavra é a janela do conhecimento a
imagem é a janela do sagrado.
Entre os dois acontece a realidade. Pela
janela da palavra descortina-se o irromper
da paisagem do mistério, de que também ela
faz parte. Ela fica no limiar do Segredo e
do Espírito. Não somos só filhos incógnitos
do pensamento, do “penso logo sou”. Ao eu –
imagino da selva segue-se o eu – falo, o eu
sou em sociedade. Este foi o grande caminho
especialmente do Ocidente que frutificou nos
direitos humanos e que precisa da referência
oriental à imagem, à mãe. Primeiro está a
paisagem do nós e depois o indivíduo nela.
Este ao sair dela tem a possibilidade de se
reflectir dentro do diálogo e em diálogo
passar ao triálogo. Somos filhos do
mistério e com ele continuaremos a ser
definidos. Pela palavra temos acesso ao mar
do mistério mas ela é apenas a sua onda. A
palavra sem a imagem é vida em segunda mão.
A Palavra (Verbo, não é só sujeito e
objecto) é acontecer, é processo tal como o
esperma e o óvulo na dimensão dum ventre a
dar à luz. Ela não pode ser reduzida a
um flatus duma verdade
meramente espacio-temporal, a uma crosta da
crosta. A palavra seria então a
objectividade enquanto que a imagem a
subjectividade duma realidade para lá das
duas.
Os caminhos do Homem marcam a sua presença
na selva da realidade à maneira de caminhos
feitos sobre o alcatrão da palavra que em
contexto de imagem se pode tornar também
realidade. A palavra, ao mesmo tempo pegada
e caminho em “contexto” deveria transcender
os holofotes da lógica dialéctica redutora e
determinista, de causa – efeito, para
atingir uma Realidade, não só de diálogo
(dialéctica pura do “ou… ou”) mas sobretudo
de triálogo (trinitária) do “não só… mas
também”. Esta será o pressuposto duma nova
cultura, dum novo mundo. |
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O Verbo é a Informação ainda
não formatada |
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O mundo físico é uma expressão fenomenal
(uma forma da Realidade), tal como o
pensamento (um molde da realidade física).
A palavra vem do pensamento, o pensamento
vem da imagem e a imagem vem da informação
não formatada (Verbo), da verdade de gerar
ou enformar. Se, por um lado, se dá o
processo evolutivo espiral ascendente, por
outro lado, temos o momento do processo
descendente, da Palavra que se encorpa num
processo trinitário e não apenas numa
dimensão linear de afirmação pelo
contradição dual. A Realidade que é a
divindade interage na relação Pai, Filho e
Espírito. No princípio era o Verbo… O
Espírito seria analogicamente o princípio
criador maternal. Em Jesus encarnou a
Palavra e com ela a carne entra num processo
de espiritualização, expressa na natureza de
Cristo, onde se transcende a consciência
espacio-temporal, a consciência bipolar do
bem e do mal.
A fixação na palavra, tal como a fixação na
imagem, aprisiona a realidade a uma
vertente. Uma cultura quanto mais
iconoclasta é mais masculina se torna.
Quanto mais puro o monoteísmo mais machista
é!
Imaginação é a força que está por detrás do
poder de abstracção, a inteligência. Ideia é
representação no palco do conhecimento. A
relação abstracta, se por um lado é
libertadora por outro é redutora, meramente
binária, o mundo e eu.
A dialéctica afirma-se pela contradição
quando a estrutura da Realidade e do diálogo
é trinitária, como a teologia previa e a
física quântica parece confirmar. Esta
superou o determinismo e o mecanismo
dogmático da física clássica. O processo é
complexo não se deixando reduzir à realidade
do plano bidimensional da coisa (outro), do
eu e da consciência, quer próprio quer do
outro. Eu sou mais que ser com. O meu estar
com o estar do outro possibilita a minha
presença, a vivência de não só estar mas
também ser. A presença do outro leva-me a
ser. Ser o espaço entre o meu estar e o
estar do outro numa correspondência tripla
Eu-Tu-Relação (mais que vivência/ideia):
Pai-Filho-Espírito. Husserl também constata
que para lá do nível da realidade “plana” se
encontra a “dimensão da espiritualidade
viva”. O espírito humano revela-se na língua
pela possibilidade de dizer tu. Revela-se na
capacidade de reconhecer um tu, no limiar do
“pecado” de Adão e Eva, como reconhece a
Bíblia. O reconhecimento leva à fala que
permite então o encontro. Oh feliz culpa!...
No argumento e contra argumento, cada
interlocutor reduz a coisa à sua imagem
fixa, cristalizando-a na própria diferença,
ou aspecto, truncando-a da imagem viva que é
movimento. |
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Discurso Masculino contra o
Feminino |
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Através da imaginação ultrapassa-se a
situação real, encara-se a realidade para lá
da via causa efeito. Para lá das palavras e
das ideias encontram-se imagens, panoramas
da alma. Por isso se queremos mudar
sentimentos e comportamentos recorre-se a
imagens.
A comunicação acontece no âmbito verbal e
não verbal. A zona mais próxima ao
sentimento é a das imagens; a primeira
apreensão da realidade talvez se dê através
da inteligência emocional. A imaginação é a
chave para secções da personalidade. A
imaginação é um instrumento que pode
desenvolver a atitude racional. Nas câmaras
da cave do nosso cérebro encontram-se
armazenadas as mais diferentes imagens, à
imagem de pinturas rupestres, que uma vez
estimulados deixam representar a cor local
de então como se fossem filmes reais. Ao
pensar criam-se associações ligadas ao
panorama da imagem.
A parte esquerda do cérebro é responsável
pelo pensar lógico, de orientação causal e
determinista, tem a competência da língua e
da actividade verbal, como ler, escrever,
matemática, decorar e processos analíticos.
É o centro do pensar racional, ao mesmo
tempo ordenador e orientado para uma meta.
O hemisfério cerebral direito tem a
competência da compreensão de imagens. Não é
lógico, e corresponde a uma visão de
conjunto, criativa, global, de carácter
fotográfico panorâmico, de carácter
intuitivo emocional numa relação de indução.
Esta parte cerebral é desprezada a nível
escolar, político e económico e mesmo no
sistema de pensamento, dando-se mais
importância à inteligência racional
(carácter mais masculino, firmamento) do que
à inteligência emocional (carácter mais
feminino, terra). Repete-se o defeito da
dialéctica na relação entre Realidade e
ideia. Assiste-se à ciência contra a arte e
contra a religião, ao patriarcado contra o
matriarcado. É o hemisfério cerebral
esquerdo contra o direito. Continua-se no
diálogo rectilíneo, quando o a realidade é
complementar e acontece em triálogo.
Podemos fazer uma comparação extrema para a
apreensão da realidade. A parte esquerda do
cérebro podíamos designá-la do homem em nós
e a direita de mulher em nós. Imaginemos que
homem e mulher se encontram num extremo dum
jardim sem caminhos e querem atingir o outro
extremo. O homem chega naturalmente
primeiro! Ele com o seu pensar lógico só via
o fim (o firmamento) pisando muitas das
flores e arbustos para lá chegar
rapidamente. A mulher chegou mais tarde mas
não estragou e chegou mais rica porque pode
descrever muitas das flores e arbustos que
observou ao contornar. Ela tem a visão
individual e quer manter o todo intacto, o
seu estar é um estar em relação. O homem tem
a visão abstracta, tem no sentido a meta,
provoca a dor mas consegue chegar mais
rápido, o seu estar é distante.
A Escola, o Estado, o Pensamento e até a
Religião, continuam a cultivar uma cultura
masculina, um discurso exclusivo do “ou…ou”
quando a Realidade é integral, necessitando
nós duma cultura do “não só…mas também.” As
duas forças juntas conseguem reunir o
princípio da selecção e da colaboração
(osmose) numa parceria de complementaridade
em relação de igualdade. Trata-se de ver o
mundo não só segundo uma dimensão de uma
perspectiva (masculina ou feminina, dedutiva
ou indutiva) mas também da dimensão
a-perspectiva, porque a perspectiva é sempre
redutora, tal como a definição. A paz e a
harmonia no sentido evolutivo realizam-se
então na dança da mulher e do homem, da
imagem e da palavra, num processo contínuo
de emancipação dos dois, num jogo de
ejaculação e gestação, de tensão e relaxe.
Na complementação dos dois se dará à luz uma
nova realidade, uma cultura da paz e não da
guerra. A estratégia a seguir será o
reconhecimento da complementaridade da
feminilidade e da masculinidade de forma
equitativa. |
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© António da Cunha Duarte
Justo
Pegadas do Tempo
http://antonio-justo.eu/ |
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ANTÓNIO da Cunha Duarte JUSTO
. N.
Várzea-Arouca (Portugal)
Professor de Língua e Cultura Portuguesas, professor de Ética, delegado da disciplina de português na Universidade de Kassel .
Algumas publicações: Chefe Redactor de Gemeinsam, revista trimestral do Conselho de Estrangeiros de Kassel. Editor da Brochura bilingue: "Pontes Para um Futuro Comum – Brücken in eine gemeinsame Zukunft", Caritas, Kassel. Autor de „Kommunalwahlrecht für Ausländer – Argumente“, Kassel, 1987. Co-autor de „Ausländerbeiräte in Hessen - Aufgaben und Organisation“, AGAH e Hessische Landeszentral für politische Bildung, Wiesbaden, 1988.
Colaborador de vários jornais e do programa de rádio semanal de português de Hamburgo.
E-mail:
a.c.justo@t-online.de.
http://blog.comunidades.net/justo
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