A palavra, como representação da linguagem
verbal, cerceia a vida na medida em que é
puramente cerebral e racional, aguçando no
homem apenas suas faculdades intelectuais.
Sua busca é por idéias claras, fixas, bem
descritas. Sua forma oral enseja o discurso
pomposo, a argumentação consistente, a
persuasão. Sua construção escrita deve estar
correta, prostrada à gramática. Um todo
regulado, bem construído, ordenado conforme
as regras textuais e lógicas.
Cada palavra deve nomear, se reter ao
sentido, atribuir um significado exato ao
objeto ou situação que descreve. Sua
finalidade é definir, elucidar. Exaltar o
discurso lógico que reduz a vida a sistemas
classificatórios pretensamente infalíveis.
Trata-se da palavra fria, seca, sem comoção.
São palavras dirigidas ao domínio
psicológico somente na medida em que devem
nomear os sentimentos, disciplinar o
comportamento.
Tal ditadura da palavra constrói convenções
sociais e preceitos morais que devem ser
incondicionalmente obedecidos. Constrói o
homem disciplinado, controlado, castrado.
Limita o fluxo do pensamento, paralisa seu
devir, impede a livre profusão de imagens.
Direciona as idéias que os homens possuem
sobre a realidade e a própria ação diante
dela.
No domínio da vida, a palavra simboliza uma
tendência tecnicista e utilitária, de um
homem “antipoético”, subserviente às
instituições sociais - como a família, o
Estado, o trabalho, a igreja e a medicina.
Diante dessa noção de linguagem verbal,
pode-se entender que Artaud, ao buscar uma
nova linguagem, cria um outro modo de ser.
Busca uma nova vida. Transgredir a linguagem
verbal é subverter a ordem social. É ser
hostil, perigoso, indesejado. Bem sabemos o
preço pagou pela ousadia, encarcerado no
manicômio, apreendido pelo discurso
psiquiátrico… . suicidado pela sociedade.
Em seus acessos mais feéricos contra a
palavra, Artaud chega a dizer: “É preciso
acabar com a superstição dos textos e da
poesia escrita (…) Basta de poemas
individuais e que servem muito mais a quem
os faz do que a quem os lê” [02]
(grifos do autor). Fala mesmo na eliminação,
supressão da palavra. A poesia literária
chega a ser considerada uma força de
castração desligada da vida.
O fim da sujeição à palavra traria a
verdadeira expressão poética. Como seria
esta poesia sem palavras que Artaud propõe?
A trajetória de Artaud desse período é
caracterizada pela criação do Teatro da
Crueldade, em cujos textos e manifestos a
noção de poética surge de maneira bastante
intensa. Da mesma forma que a poesia, o
teatro ocidental também se encontrava refém
do texto, do diálogo, da palavra.
Se o teatro necessita da poesia para superar
as formas de expressão puramente descritivas
e narrativas dos textos, a poesia também
necessita do teatro para exprimir-se para
além das palavras. Da integração do teatro e
da poesia surge uma forma de expressão que
simboliza esta nova linguagem perseguida e
criada por Artaud.
O teatro é considerado como sinônimo de
“poesia em ação”, poesia realizada,
aplicada. É poesia pelo teatro. Trata-se de
uma forma de expressão espacial, concreta.
Artaud enfatiza a materialidade dessa nova
linguagem, sua exterioridade: física,
sólida, sensível, efetiva. Não o texto
dialogado que se dirige ao intelecto, mas
uma expressão concreta que se dirija ao
corpo, à sensibilidade. Não letra imóvel dos
livros, mas livres ações na vida.
A poesia abandona a palavra para se
materializar por meio de gestos, movimentos,
cores, sons, gritos, vibrações, atitudes… A
encenação teatral é a forma de expressão
poética genuína, pois tira a centralidade da
palavra para utilizar uma multiplicidade de
formas de expressão, uma “materialização
visual e plástica da palavra”. [03]
É uma linguagem espacial e colorida,
anterior ao discurso racional; um estado
poético, prenhe de signos e imagens. Artaud
se refere a este estado como “a Palavra
anterior às palavras”. [04] É um
estado poético do som, do gesto, do urro, da
cor, do afeto, do toque. A poesia cênica,
teatral refaz o próprio caminho que originou
a palavra.
É um regresso ao primitivo que faz avançar,
que faz a poesia transcender a palavra: “E
aquilo que o teatro ainda pode extrair da
palavra são suas possibilidades de expansão
fora das palavras, de desenvolvimento no
espaço, de ação dissociadora e vibratória
sobre a sensibilidade”. [05]
Sua materialidade corporal se destina a
aguçar a sensibilidade, os sentidos humanos.
Excitação de diversos planos do espírito por
meio dos nervos e coração. Faz cavalgar por
todos os lados seu impacto na visão,
audição, tato… com luzes, sons, imagens,
movimentos corporais que criam uma vibração
peculiar no corpo. Distante da passividade
antes imposta ao espectador, esta poesia
encenada pretende multiplicar imagens
contínuas em seu cérebro, criar um estado de
alteração orgânica similar à alucinação.
Esta poesia plástica leva a linguagem às
últimas conseqüências, desperta todo seu
poder de impacto ao espírito, transgride os
limites da palavra. A criação de tal poesia
também não é cerebral e obediente. Artaud
comenta um estado de criação total em que o
acaso, o imprevisto, a surpresa, são a
própria poesia. É uma composição realizada
de maneira única, no momento mesmo da ação:
o “… estado de incerteza e angústia inefável
que é próprio da poesia”. [06] É
Fatalidade.
O livre fluxo do pensamento, a profusão
intempestiva de imagens do inconsciente, o
desfilar violento de signos que revelam algo
fantástico. A transmutação das idéias nos
corpos, a liberdade mágica nos sonhos. É
Devir.
Erupção do inconsciente com seus conflitos,
seus mistérios, seu espírito poético que
regurgita os desejos recalcados pelas regras
sociais. É uma “poesia atroz” que pretende
reencontrar a intensidade da vida em sua
feição mais selvagem, espontânea. Ações que
contagiam para o crime, a guerra, a revolta,
em uma hemoptise, um “jorro sangrento de
imagens tanto na cabeça do poeta quanto na
do espectador”. [07]
A imagem espiritual da peste pode ser um
exemplo do impacto que o Teatro da Crueldade
pretende causar com sua poesia em ação: o
“delírio comunicativo”, que leva as pessoas
a sensações intensas, à desordem, à
desmoralização, ao transbordamento dos
desejos, ao furor sexual e erótico que
irrompe violento contra quaisquer proibições
ou convenções sociais. Transe. É Caos.
A poesia em ação é a consagração da revolta.
É Anarquia.
Artaud sente na anarquia a base de toda
poesia. Tal como a anarquia, a poesia põe-se
a desorganizar, transgredir, excitar a
revolta: “A poesia é uma força dissociadora
e anárquica, que, por analogias,
associações, imagens, vive apenas de uma
subversão de relações conhecidas”. [08]
É subverter as convenções lingüísticas de
sentido e significado, pela imagem; é
destronar a lógica da criação artística,
tornando esta criação suscetível as voláteis
vontades do espírito; é, enfim, romper com
as pretensas barreiras entre arte e vida. Em
suas palavras: “… o espírito poético quando
se exerce tende sempre a uma espécie de
anarquia fervilhante, a uma desagregação
integral do real pela poesia”. [09]
A arte indissociável da vida; a poesia que
irrompe no real; a transformação da
sociedade pela poesia. Artaud exacerba a
criação de um estado de vida poética, como
integração da poesia, teatro e anarquia. É o
estado de espírito em que a vida reencontra
sua expressão mais espontânea.
Heliogábalo, [10] o anarquista
coroado, jovem imperador romano pesquisado
por Artaud, é a figura que representou na
vida real este estado poético. Com todas as
suas desmoralizações, orgias,
ridicularizarão das autoridades e incentivo
às insurreições.
Para essa poética da exterioridade, da ação,
o próprio Artaud apresenta suas inspirações.
Em um curto texto sobre Rimbaud, descreve a
influência do aventureiro francês em levar a
uma força extrema a linguagem, expressa como
estado de vida, modo de ser. [11] A
fusão da arte e da vida, em estado de vida
anárquico e transgressor, também tem seus
precedentes em Alfred Jarry, a quem Artaud
homenageou com a fundação de um grupo
teatral homônimo.
Artaud, em janeiro de 1936, na Universidade
do México, palestra sobre o tema
Surrealismo e Revolução. Comenta o
estado de espírito, de recusa,
desmoralização e libertação que motiva a
expressão surrealista. Chega a afirmar que
tal estado de espírito “… não era mais
poesia no sentido dado à palavra, porém a
emissão magnética de um sopro, uma estranha
espécie de magia instalada em nós”. [12]
Esta magia parece similar ao estado de vida
poética, ao dilaceramento do espírito sob o
impacto da poesia em ação. Não é mesmo
poesia, mas não deixa de sê-lo.
Ao comentar entusiasmado alguns filmes dos Irmãos Marx, aponta: “O
primeiro filme dos Irmãos Marx que vimos
aqui, Animal Crackers, pareceu-me, e
assim foi visto por todo o mundo, uma
coisa extraordinária, a liberação,
através da tela, de uma magia particular que
as relações habituais entre as palavras e as
imagens não revelam, e, se há um estado
caracterizado, um grau poético distinto do
espírito que se possa chamar de
surrealismo, Animal Crackers participa
plenamente dele”. [13] Logo a seguir
acrescenta que tal magia somente se pode
encontrar em algumas “poesias surrealistas
bem sucedidas”.
Seria o teatro da crueldade, a expressão
poética em ação de Artaud, uma dessas formas
de poesia surrealista “bem sucedida”, na
medida em que promove esse tal estado mágico
do espírito? Teria Artaud radicalizado a
perspectiva surrealista, enquanto o próprio
Surrealismo “oficial”, por assim dizer,
estada prostrado de joelhos ao marxismo do
Partido Comunista?
De qualquer forma, eis as imagens da poética
em Artaud. Da negação da palavra escrita a
uma poética em ação, que aguça o espírito
por meio dos sentidos, levando as pessoas a
um fluxo liberto de pensamentos e imagens
que passam ao largo dos interditos sociais.
A poesia que pulula em um estado de vida
anárquico e transgressor.
Escrita, encenada, vivida, ainda aqui a
poesia permanece como enigma. Como num jogo
de espelhos, prefigura ela também indizível.
Indefinida, nos arrasta em seu vertiginoso
fluir. Inaugura uma vivência que não se
deixa apreender pela palavra. Paradoxal,
ambígua, escorregadia / sacia e deixa
sedento. Labiríntica, desencontrada mesmo lá
onde se imaginava escondida. |
NOTAS
[1]
Artaud, Antonin. Teatro e Cultura. In: O
Teatro e seu Duplo. (Teixeira Coelho,
trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1993.
[2]
Artaud, Antonin. Acabar com as obras primas.
In: O Teatro e seu Duplo. op. cit.
[3]
Artaud, Antonin. Teatro Oriental e Teatro
Ocidental. . In: O Teatro e seu Duplo.
op. cit.
[4]
Artaud, Antonin. Sobre o Teatro de Bali. .
In: O Teatro e seu Duplo. op. cit.
[5]
Artaud, Antonin. O Teatro da Crueldade
(primeiro manifesto). In: O Teatro e seu
Duplo. op. cit.
[6]
Artaud, Antonin. Sobre o Teatro de Bali. op.
cit.
[7]
Artaud, Antonin. Acabar com as obras primas.
op. cit.
[8]
Artaud, Antonin. In: Artaud, Linguagem e
Vida. (J. Guinsburg, Silvia Fernandes,
Regina Correa Rocha e Maria Lúcia Pereira,
trad.). São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 83
[9]
Artaud, Antonin. Irmãos Marx. In: Artaud,
Linguagem e Vida. (J. Guinsburg, Silvia
Fernandes, Regina Correa Rocha e Maria Lúcia
Pereira, trad.). São Paulo: Perspectiva,
1995. p. 163
[10]
Artaud, Antonin. Heliogábalo ou o
anarquista coroado. (Mário Cesariny,
trad.). Lisboa: Assírio & Alvim, 1991.
[11]
Artaud, Antonin. In: Artaud, Linguagem e
Vida. op. cit.
[12]
Artaud, Antonin.
Surrealismo e Revolução. In: Escritos de
Antonin Artaud. (Claudio Willer, trad.).
Porto Alegre: LP&M, 1983. (Coleção Rebeldes
e Malditos, vol. 5).
[13]
Artaud, Antonin. Irmãos Marx. op. cit. |