Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX NÚMERO 05|ABRIL DE 2010

NÚMERO 05

Abril 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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AMADEU BAPTISTA

Quatro quadros

PAUL GAUGUIN:
O CRISTO AMARELO (1889)

E sabíamos todos que a hora

era chegada e tudo em volta

escurecia,

 

e que, em Pont-Aven,

era chegado o tempo da colheita

e os campos estavam todos amarelos.

 

E aconteceu que as mulheres da Bretanha

ajoelharam,

e vinha eu no caminho

e vi a luz,

 

e os meus olhos cegaram para que visse

a roda do martírio

e o escárnio.

 

E aconteceu que as cores se saturaram,

e a paleta recebeu,

vindas do céu,

as cores

 

–  e eu enchi a tela de perguntas,

e, pelo esplendor,

atirei-me ao chão

e em mim senti um som sombrio.

 

E vi, então, que as mulheres

choravam

e que os homens

não se compadeciam

de quem sofria,

 

e tudo tinha um brilho

esplêndido,

um brilho sobrenatural,

à minha volta.

 

E aconteceu que se ouviu cantar

o galo,

e que toda a terra se abriu para aquele brilho,

 

e os camponeses vieram,

e choraram.

 

E vi que preparavam varas novas,

e que as varas eram só espinhos,

e que o homem caía,

 

caía mesmo em frente aos nossos olhos,

que nada mais fazíamos do que o ver caído.

 

E eu tomei a tela e preparei-a,

 

e sangrava o homem

abundantemente,

e eu perguntei ‘quem somos?’

e nada se ouviu.

 

E chegou o crepúsculo

e, em volta, era só amarelo o que se via,

 

e o rosto do homem inundava-se de lágrimas e de sangue,

e arquejava-Lhe o dorso,

e puseram-Lhe aos ombros o madeiro.

 

E as mulheres da Bretanha

irromperam em choro,

e a multidão

adensou-se no lugar,

e suplicou o pão,

e os peixes,

 

e seguiram-No.

 

E vi as minhas cores queimadas pelo fogo,

 

e que os meus pincéis vibravam,

e misturei ao óleo terebentina,

enquanto o homem subia pelo monte

onde reinava o silêncio

e a abominação.

 

E perguntei:

‘quem somos, de onde vimos?’,

 

e em volta levantou-se um grande incêndio,

e as labaredas tomaram o lugar,

 

e era tudo amarelo nesse sítio.

 

E houve uma mulher que trouxe

água,

e com a água trouxe um pano branco,

e limpou-Lhe o rosto,

e o Seu rosto estava iluminado.

 

E eram amarelos os Seus cabelos,

e amarela era a Sua barba,

e a cruz, nos ombros,

era amarela,

como um topázio.

 

E, então, caiu o homem

pela segunda vez,

e as mulheres da Bretanha

arrancaram os cabelos,

 

e olharam em redor

para que chegasse algum socorro,

de onde quer que fosse.

 

E os campos em volta permaneciam amarelos,

e eu prendi aos dedos o pincel

porque toda a terra tremia

 

e o coração

saltava-me do peito,

e a cabeça doía-me

e pesava-me.

 

E o homem seguiu, arrebatado

pela dor,

e um outro homem veio em Seu auxílio,

e eram grandes as feridas,

e deitavam muito sangue.

 

E as mulheres da Bretanha

seguiram com Ele,

e vacilavam-Lhe os passos,

e o Seu corpo

era todo amarelo,

 

a boca,

as mãos,

os pés.

 

E assim se acercou do cume da montanha,

com as mulheres da Bretanha sempre atrás,

 

e havia soldados

e outros condenados,

que o viram cair pela terceira vez.

 

E Ele levantou-se,

e a multidão exultou nesse momento,

e eu, com o pincel, fiz o esboço

daquele quadro de grande sofrimento.

 

E uma das mulheres chamou-Lhe ‘filho’,

e outra ‘amado’,

 

e a elas se juntou outra mulher

que Lhe chamou ‘irmão’,

 

e, nos seus vestidos,

caíram lágrimas de sangue e de estupor.

 

Do meu pincel só o amarelo

permitia

estender-se na tela,

e tudo era amarelo,

 

os campos em volta,

o rosto de quem estava,

e a cruz.

 

E cravaram-Lhe as mãos e os pés

àquela cruz,

 

e tudo em volta foi um só silêncio,

e parecia que a terra dimanava

um odor amarelo,

que só as mulheres da Bretanha compreendiam.

 

E um soldado

veio com a esponja

embebida em vinagre,

e prendeu-a a um ramo,

e deu-Lhe de beber, porque a sede

o martirizava.

 

E eu executava a minha obra,

 

e tudo era amarelo à minha volta,

as árvores,

as colinas,

as casas que se viam do ponto onde estava.

 

E o tempo passou,

e olhei o homem,

 

e olhar a Sua face pacificou-me,

 

porque o homem sorria

por ver a multidão

a partilhar o pão

e os peixes

que Ele lhes entregava.

 

E a terra tremeu,

 

e vi tudo amarelo à minha volta,

e as mulheres da Bretanha olhavam-No

a sorrir,

enquanto eu perguntava:

‘quem somos, de onde vimos, para onde vamos’?

 

E na linha do horizonte vi os anjos,

 

e as asas dos anjos

cintilavam,

 

e cintilava, também, esta pintura

onde, em silêncio, pus

as mulheres da Bretanha,

 

e o Cristo amarelo

com o meu rosto.

MARK ROTHKO:
NUMBER 207-
RED OVER DARK  BLUE ON DARK GRAY (1961)

Não sei o que há entre Dvisnsk

e Nova Iorque,

 

e mesmo que soubesse

proporia que tudo fosse silenciado,

 

que nada se dissesse,

 

e só o avassalador silêncio

pudesse dizer quem fui e o que fiz.

 

As palavras enredam-nos em armadilhas

mortais

e nada há mais mortal

que a vida,

 

por isso,

as minhas telas

são o silêncio que são,

 

onde as cores se demoram

para que a exaltação do silêncio

permaneça e se guarde

 

e só quem as contemple reconheça

o que lá está:

 

a dor,

o sofrimento,

a vida em estado puro.

 

Se alguma coisa tenho para dizer,

direi, apenas, que há emoções

desconhecidas no que faço,

 

e que é pela claridade que confronto

o público

com as telas

 

que, com elas,

deve gritar e chorar,

 

porque foi exactamente aos gritos e a chorar

que as pintei,

 

rangendo os dentes

e insuflando-lhes vida.

 

Vejam:

 

alio este vermelho a este azul,

 

as cores conjugam-se,

mesmo repelindo-se,

 

e, olhando bem,

não é só o vermelho e o azul o que se vê,

aqui, em frente à tela,

mas tudo o que nos toca o coração,

 

e se encontra latente na memória

 

e, pelo confronto,

chega.

 

O azul, por exemplo:

 

sente-se que oscila,

 

sente-se que nos leva para trás,

sente-se que nos arrasta pela nuca

 

e nos coloca

perante obsessões

que nos envenenam.

 

E, levando-nos para trás,

os nossos olhos fecham-se,

 

e entramos num quarto muito escuro,

e, no escuro, reconhecemos

o azul do brilho de uma lâmina,

 

e os nossos dedos,

azuis,

tocam a lâmina,

e a lâmina,

azul néon e mate,

impele-nos a confrontar a morte,

 

até que não podemos mais

e, a correr, saímos.

 

E o vermelho

 

– é, tão-só, vermelho,

 

ou atrai-nos para um poço?

 

O poço é escarlate,

 

e escarlate sendo, o que se vê?

 

Uma mulher deitada numa cama,

com um roupão vermelho,

 

e as unhas pintadas de vermelho,

 

e a boca vermelha,

 

e a cabeça caída sobre uma almofada,

também vermelha,

 

de um vermelho vivo,

tão brilhante,

 

que sabemos

que há um crime oculto no vermelho

que nós observámos na infância.

 

Vejamos o conjunto:

 

o azul está por baixo e, por cima,

o vermelho primário a transformar-se

em lábios,

corais,

crepúsculos,

 

e um sortilégio avassalador

que nos leva a um monte com um túnel.

 

Atravessando o túnel

vemos as cidades,

e, por cima das cidades,

o demónio,

 

e o demónio blasfema,

 

e lembra-nos a indiferença

com que os nossos pais nos abandonaram,

 

e é medonha a noite,

e é medonha a sensação de termos sido

abandonados.

 

No fim, há só silêncio.

 

Mas o milagre já aconteceu,

 

já cada um de nós foi confrontado

com o que não queria ver

pela selvajaria da serenidade

 

e pode, depois disso,

voltar para casa.

 

De novo vem a nós

o silêncio:

 

estamos em casa

e as cores, de tão amenas,

são já frenéticas,

 

e os nossos dedos rasgam-nos

a carne,

e supliciamos o corpo,

 

e percebemos que há pouco sentido

na vida que levamos.

 

Tem cor a nossa vida?

 

E a resposta chega-nos,

certeira e inequívoca,

enquanto nos lembramos

dos gritos e do choro

que, em frente ao quadro,

produzimos,

 

e da força que há na nossa natureza,

 

e dos milagres possíveis

que em cada coisa há.

 

Coube-nos viver num tempo de assassinos,

mas é a claridade que almejamos,

 

não a que veio ao quadro convocar-nos,

mas a que, pelo poder da pintura,

se instala em nós,

a modular a noite

e a apaziguar-nos.

 

É essa claridade que procuro,

– e o silêncio.

 

O silêncio das cores e o seu apelo

irrevogável,

 

de que nada há a temer,

mesmo que atemorize.

 

A vida é isso mesmo:

 

o medo à nossa frente,

imóvel como a esfinge,

 

e nós sempre a enfrentá-lo,

 

transparentes,

aflitos,

condenados,

 

mas prontos para ver

 

as cores do infinito.

FRANCIS BACON:
STUDY FOR CROUCHING NUDE
(1952)

(para José Manuel Vasconcelos)

Os cães,

essa corda de cães

a ganir ao relento

e a lamber as feridas gangrenadas

 

–  ao que vêm,

se a este território

só chegam os eleitos,

com os seus cetins cinzentos

de abóbada celeste?

 

E eu, como os suporto,

como os vejo,

sabendo que sou deles

pela carne e os ossos

e, mais profundamente, pelo uivos

aterradores?

 

Estou aqui

para não me conter,

e sei que o meu trabalho

é exaurir e exasperar,

 

enquanto sigo

a cor

e, de mim para mim,

pressinto, em cada esquina,

a lancinação

 

dos cães a apodrecer.

 

Como os suporto,

como me contenho

de lhes ladrar também

enquanto se ilumina a montra do talhante

e, sobre a carne,

o cutelo se abate

para a deflagração?

 

Que crime estabeleço

para pôr no que faço

o que me fazem os cães

da ignomínia

 

–  se não consigo,

na insustentável máquina das cores,

fazer vibrar no escuro,

a dor,

eficazmente?

 

Ah, a vida:

 

se aqui cheguei,

que insígnias escolho

para a confrontação

com a sangueira que corre

pela estrada?

 

A escuridão do roxo,

servirá?

 

Será que a carne admite

a transmutação de cada pincelada

de modo a que se veja,

e a que se sinta,

a putrefacção?

 

Ou é preferível

usar

este tom violáceo

que nas cerdas se amontoa

e faz com que na boca

cresça a aguadilha do meu nojo?

 

Este vermelho,

 

figurará no quadro

o âmago da alma

e o horror nos tímpanos

com que a arrogância

se expande na cidade,

enquanto a fúria dos cães nos amedronta?

 

Os cães,

essa corda de cães

martirizados,

a ganir ao vento

e a lamber as feridas gangrenadas

 

–  como posso

acirrar-lhes o fogo

e acossá-los?

 

No osso inciso,

na grande obra incompleta,

sou uma válvula de vácuo

e um transístor,

a desfragmentação

e o cromatismo

que resiste à vileza

e vê no crime

o imparável modo de estar vivo,

a aprofundar a refrega dos subúrbios,

como arte,

dissipação,

incandescência.

 

E os ferros progridem

sobre a minha cabeça,

e não creio

 

– quem sou já pouco importa

porque os cães estão em todo o lado,

e devoram as casas,

e sobem aos telhados para devorar

os livros,

e, nas jaulas,

amontoam cadáveres,

instantes peregrinos

com cabeça de rádio

e desorbitados olhos

pelo terror do urânio,

as múltiplas engrenagens.

 

Vacilo, eu?

 

Hesito e não hesito

neste páramo de ódios

e incertezas pútridas,

cósmicas,

telúricas

pelos dentes acerados

da matilha?

 

Como não basta pôr termo

às mortes assassinas,

sob o empaste?

 

Circulo,

envilecido,

na proximidade das morgues

e a matéria do mundo

 

–  cadaverosa,

a tinta.

 

Mas há um escalpelo

sobre a mesa

e, onde durmo,

um sonho extravagante,

revestido a ouro,

que pulsa na agonia.

 

E não quero nada intacto,

 

e dou uso

ao branco e ao verde

para que a luminosidade mostre

o esplendor da nudez,

e o óleo arda,

e a sagração amplie

os contornos da dor que, sobre os corpos,

reluz,

torcionariamente.

 

Ah, os cães:

 

essa corda de cães ajoelhados

com o ódio a vibrar

nas suas línguas pútridas,

a ganir ao relento

e a lamber as feridas gangrenadas.

 

Eles e eu,

numa acareação

de maldição e praga,

onde os gritos são o silêncio

vasto

das lágrimas dispersas

pelas coisas:

 

uma grade,

um elefante que atravessa a noite,

um sinal da exterminação,

os uivos que se escutam

de Berlim a Londres,

a crucificação,

 

o sangue da chacina,

as cores da abstracção.

 

Eles e eu,

numa acareação

em que não há metamorfose

e tudo é a terra desolada da infância

onde correm cavalos

degolados

e as três graças

estão cegas,

surdas,

e em silêncio

 

como se já tivesse vindo o apocalipse

e os cães tivessem derrubado os cavaleiros

para sempre.

 

Ah, os cães,

eles e eu:

essa corda de cães

a ganir ao relento

e a lamber as feridas gangrenadas.

EDVARD MUNCH:
O GRITO
(1893)

Por aqui,

 

descem-se estas escadas

que a esquadria delimita

e os fungos verdes invadiram,

 

e depois volta-se

à direita.

 

Depois há o mar,

com tons roxos e escarlates,

como colchas nas varandas

quando há festa.

 

Depois,

sobe-se, de novo,

e há um  fulgor repentino,

como se o mar fica-se preto

e  vibrasse:

 

o rosto espera-nos.

 

Depois, há fumo,

sabe-se que há fumo,

e os braços levantam-se acima da cabeça

e respirar é um tormento:

 

não é uma figura da tragédia,

não é, tão pouco, Caronte,

olha-se o rosto e sentimos o coração

na boca,

 

as algas que se enredam

ao pescoço,

uma estrela amarela no braço,

 

a estender-se pelo firmamento,

em Oslofjord, ao pôr-do-sol.

 

No mar e no céu

há nuvens brancas,

e um odor intenso a especiarias,

talvez o odor da morte,

 

e escuta-se um leão a rugir,

enquanto se não sabe onde pôr as mãos,

se a salvo,

a cobrir os olhos,

ou dentro de água.

 

E com o rugido do leão

escutam-se os barcos,

 

e a pintura é a infância,

e arde,

infinitamente,

 

onde está um rapaz em frente de um cavalete

a preparar a água para pintar uma aguarela.

 

O rapaz diz:

eu não pinto aguarelas,

o que faço com a tintas

sou eu a chorar,

 

e, então,

voltamos, de novo, à plataforma,

com as gaivotas a uivar,

como lobos.

 

Depois, mais para a frente,

há sombras:

 

sombras de panos brancos

 

–  e os panos incendeiam-se

por combustão espontânea,

e há mulheres que gritam por socorro

e homens atarefados a recolher as redes,

 

os peixes.

 

Os peixes voam:

 

e é possível vê-los voar sobre as nuvens,

e a plataforma balança com a força das ondas,

enquanto alguma coisa pica

o sangue

e se enovela na garganta.

 

Aí começa o túnel:

 

em dois passos a escuridão cerca as escadas

e não é possível voltar atrás,

os cães são

os guardiães do caminho,

 

– desse caminho –,

 

e uivam lancinantemente,

alucinadamente.

 

Vêmo-los postos ali

e são cães translúcidos,

são cães azul glaciar,

azul lazurino,

branco de mármore,

 

e estão a invadir a plataforma,

enquanto o gelo

invade os degraus,

e a neve cai,

em blocos.

 

Procuro o homem no seu exacto lugar,

e os barcos voltam a Oslofjord,

 

e as velas estralejam,

uivam as sirenes,

como cães.

 

Procuro o homem no seu exacto lugar:

 

– tudo isto não é mais que um esboço,

 

nos meus cadernos há carvões assim,

 

onde procuro desassossegar a morte

e o seu frio glaciar,

e os degraus das escadas do inferno não têm fim.

 

Verde, vermelho, ocre: o céu.

 

E a linha transversal ao quadro

conduz o olhar ao túnel,

 

e tudo é negrume,

 

um negrume audível,

em que há pedras que voam,

há a solidão do mundo,

há uma verdade

que é como a morte,

uma verdade que antecede o último suspiro.

 

A têmpera conduz a paisagem,

é leve

 

–  tão leve que é insuportável,

com a vedação por trás,

e a erupção vulcânica

na cabeça da figura,

só,

desesperada.

 

De novo os barcos regressam a Oslofjord,

sobem-se a escadas que os fungos invadiram,

 

e volta-se à esquerda,

e, depois, à direita:

 

e a lonjura

é toda a expectativa do quadro.

 

Mais do que o desespero,

a lonjura ramifica-se em partes iguais

em todas as direcções,

povoa a luz e as sombras,

os barcos, ao longe,

o frio,

o gelo azul.

 

Dois passos na plataforma

não alteram o ponto de visão

 

–  a cabeça é uma cabeça de gesso,

fria como o gelo azul,

 

insuportável

naquelas cores difíceis,

naquelas cores inclinadas para o mar,

íngremes,

rasgadas sobre o céu.

 

Este homem, é quem?

 

O meu pai, há tanto desaparecido,

que não tem memória de mim

e eu não tenho memória do seu nome?

 

E esta mulher, quem é?

 

A minha mãe,

que me embala nas escadas

e me dá o seio, com um cobertor vermelho

cobrindo-lhe o regaço?

 

Estou exausto e pinto,

 

é sobre um cartão que pinto,

e a têmpera é uma estrela amarela

sobre a plataforma,

 

e eu sou um menino,

 

um menino perdido na escuridão,

com o seu bibe encarnado

e os seus lápis de cor

a transpor a vedação,

enquanto as gaivotas uivam

sobre a minha cabeça

 

e os barcos regressam a Oslofjord.

AMADEU BAPTISTA (Porto, 6 de Maio de 1953)
Poeta, com numerosas obras publicadas. Títulos mais recentes: O Claro Interior [Prémio de Poesia e Ficção de Almada – 2000/poesia], 2004; Salmo, 2004; Negrume, 2006; Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982 – 2007), 2007; O Bosque Cintilante, [Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama– 2007]. Colaboração dispersa em jornais, revistas, livros colectivos e antologias nos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U. A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Portugal, Roménia e Uruguai.
Poemas seus foram traduzidos para castelhano, catalão, francês, italiano, inglês, romeno, neerlandês e hebraico.

Contato: kefiah@hotmail.com

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