AIRES GAMEIRO
Quando Jesus respondeu aos herodianos, “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Lc 20, 20-26), distinguiu dois poderes, o terreno e o da vida do Além. Quando se recusou a decidir nas partilhas da herança de um irmão a favor do outro, deixou claro que não era testamenteiro de bens terrenos temporais (Lc12 13-15). A sua missão abrangia a esfera do reino de Deus, transcendente, de vida eterna. Vida eterna lembrada e esquecida através dos séculos, dentro e fora da Igreja. Jesus foi claro: o reino de Deus está neste mundo, mas estende-se para além deste mundo (Jo 18, 36). Os imperadores romanos e outros deste mundo não são deuses como as mitologias politeístas apregoam. Deus, há um só, o de Abraão, Moisés, João Batista, profetas. Mas o reino afirmado por Cristo prepara-se cá: “vinde, benditos do meus Pai possuir o reino que vos está preparado…”(Mt 25-34). E o rico ganancioso não o preparou; desprezou Lázaro, pobre e doente (Lc 16.19-31). Na história tem havido dúvidas e tensões entre os césares e os líderes religiosos, por uns e outros não serem fiéis à sua missão do bem de todos na própria esfera. Ainda hoje no Islamismo vigoram funções de césar e de Deus nas mesmas pessoas com grandes injustiças. Nas igrejas protestantes, Luterana e Anglicana, os dois poderes têm-se sido exercidos pelos mesmos líderes de nações. Na Igreja Católica, houve raros episódios de autoridade no âmbito de César. Os papas assumem a missão de vigário de Cristo, Pedra da sua Igreja, mas, pontualmente, procedem em funções relevantes como líderes religiosos fora da Igreja e como cidadãos-líderes morais. Sem deixarem de ser líderes do cristianismo católico, ao funcionarem a par de outros líderes religiosos e políticos, podem levar a perguntar se falam como papas da Igreja católica, ou como líderes religiosos ou líderes-cidadão. As missões plurais, no passado, foram exercidas por papas em situações de crise (Cf. Manfred Lutz, Escândalos dos Escândalos, Paulus, 2019, pp. 68, 79-80). E alguns césares cruzaram as fronteiras do poder temporal e impuseram entraves ao reino de Deus e à liberdade da Igreja (liberdade religiosa). As palavras de Cristo “são como ovelhas sem pastor” poderão ter levado a intervenções civis nos tempos de Leão Magno, Gregório VII, Urbano II, Alexandre III (1179) em que havia vazios de liderança temporal no Ocidente; o papa sobressaía em autoridade moral. Aconteceu na fundação de Portugal. Em 1571, Pio V, em certo vazio de poder temporal alargado e a aflição na Europa, envolveu-se contra a invasão muçulmana da Europa, terminada com a vitória de Lepanto. Sem a intervenção dele não teríamos hoje a Europa de raiz cristã. Vazios de credibilidade moral de líderes e governantes mundiais, podem levar a guerras ofensivas e abusos fraturantes, corrupção e injustiças avassaladoras. Será que hoje, as crises de corrupção agravadas pela pandemia do covid-19 levaram a um desses vazios? Vive-se “sem pastor”, sujeitos a lobos, a sofrimentos e aflições. Por isso todos os bons recursos, humanos e religiosos, serão bem vindos. Mesmo sem contar com as ameaças do Deep State e da “Nova Ordem Mundial”, que alguns, sem o provar, chamam conspirações, são inevitáveis as tensões entre poderes. Tanto a missão cristã-católica como as lideranças civis tem de discernir o que é de César e o que é de Deus. Não se vai deixar o pobre caído no poço, em dia de sábado, nem admitir a rapina da liberdade religiosa cristã. Nem «o crente tem que escolher entre ser membro da Igreja ou ser fiel ao Evangelho, nem [entre] o cisma ou a heresia» (https://www.catholicworldreport.com/2020/11/04/pope-peter-defends-the-papacy-while-explaining-its-role-and-limits/). Requer-se a fortaleza do Reino de Deus para os que a pedem. Natal cristão, e não há outro, é viver a fé cristã, que Cristo trouxe com Ele, na oração e nos serviços da caridade para os pequenos em quem Ele os recebe. Nada pode substituir estes recursos de fé. As tentativas de o conseguir, curtas ou prolongadas, falham sempre. Estaremos de novo numa tentativa dessas? As leituras do Evangelho, de fim e início do ano litúrgico, (Advento), mantêm os cristãos em alerta renovado, atentos a Jesus Cristo. Não se pode esquecer que só o cristianismo (de Cristo) inventou a distinção entre o religioso monoteísta e outras misturas religiosas; e inventou os conceitos de pessoa, liberdade de consciência e sua igual dignidade (cf. René Rémond, Les grandes inventions du Cristianisme,2000). Feliz Natal a todos os leitores!
Funchal, Novembro 2020
Aires Gameiro