Refracções de Jorge Maximino

MARIA ESTELA GUEDES


Publicado nas Edições Sem Nome (Lisboa), sob a tutela de um homem ligado ao surrealismo, Luiz Pires dos Reys, coleção Torre Gelada, com posfácio de Lilian Jacoto, saiu este ano um livro de poemas assinado por Jorge Augusto Maximino, Refracções, seguido de A morte inédita [ou Em Abril, a 25].

Podemos começar por Artémis, mais conhecida como Diana, a caçadora, irmã de Apolo, votada à caça e à proteção das grávidas, possuidora de bela cabeleira loura, segundo Arquíloco: “mulher de cabelo amarelo”, disse ele. Por sua vez, diz Jorge Maximino:

começa onde começa o corpo este trabalho

o jogo entre as mãos se mais barato

viver como pseudónimo da morte

mas digo seis da tarde ou esta queda

sebastiânica de abril quando em setembro

sustenta artémis: mais cabelo do que tarde.

O poema faz parte do conjunto intitulado «A morte inédita [ou Em Abril, a 25]». Três termos definem a tragédia: corpo, Artémis e Sebastião. O mais importante deles é o corpo, considerado hoje, por alguns filósofos mais atentos ao fenómeno do virtual, desaparecido com o erotismo das artes, salvo, talvez, da dança. As refrações de Jorge Maximino tendem a revelar um corpo de luz a aproximar-se da morte, seja Abril o nome desse corpo, sem com a referência à revolução se esgotar naquilo que é clássico, anterior a 1974, e clássicos são muitos elementos deste livro de poemas que só podia ser moderno. São clássicas as recordações da mitologia, clássica a musicalidade, o ritmo, a cadência, e os jogos, como a rima ou a aliteração, que arrastam a vocalidade até aos tempos de hoje. De hoje é a frase assintática ou a sequência de expressões desvinculadas de gramática evidente, outros tantos corpos caídos do rosário da comunicação, para voltarmos ao que parece segunda queda sebastiânica: este pós-25 de Abril. Vejamos como assomam, aqui e ali, na sequência dos versos, as refrações ou menções à mítica história do rei desaparecido em batalha com a sua cavalaria, e que em manhã de nevoeiro há de voltar:

viajo em neblina vocabular.

alguns cavalos tardam no poema

e os frutos ardem

no azul que se esvai.

A refração é uma ilusão de óptica. Diz a Física que se trata de uma alteração da velocidade da luz, etc.. A teoria é sempre difícil de assimilar, fácil é olharmos para um canudinho no copo de refresco e verificarmos que ele quebra ao mergulhar no líquido. Pode ser que as refrações de Jorge Maximino sejam manifestos de esperança. Pode ser que o desaparecimento de Abril e seus cravos na neblina do mito sejam ilusões de óptica. Pode ser que os deuses de louros cabelos continuem as suas caçadas, pode ser…

Vivemos tempos de obscenidade e dessacralização do religioso mesmo portas adentro dos templos. A dessacralização manifesta-se no discurso e comportamento, quer de crentes (fanáticos, melhor dizendo), quer dos pastores. É o mundo cristão que está a ser varrido por uma onda de excrementos morais, espirituais, verbais. Refiro-me, concretamente, às hordas evangélicas que propagam a maré de asco bolsonarista. Que o tumor brasileiro não sofra metástases para o mundo todo, eis o que se deseja. Cabe ao poeta manter-se acima da maré pestilenta, de maneira a preservar o decoro das funções sacerdotais; e assumi-las, até, se necessário. Jorge Maximino cultiva uma poesia que tem pacto com o mais alto, exercida com a solenidade de uma liturgia. Mesmo quando as entidades são ctónicas, mesmo quando se atravessam os rios do império do Hades, seja o Erídano, mesmo quando o sagrado se localiza nas zonas ínferas, o tom de Jorge Maximino é elevado, recusando a vulgaridade, ou nem pensando na possibilidade de se tornar sacrílego. O discurso dos nossos dias, na extrema direita, ou mais além ainda, é sacrílego e obsceno. Repito que tal acontece em templos cristãos, informo que alguns dos praticantes desses templos frequentam assembleias satânicas. Porventura pouco do que escrevo se encontra formulado ou referido nos clássicos poemas de um livro que muito delicadamente receia a morte do 25 de Abril, pelo contrário. Porém, aqueles que o mesmo receiam devem preparar-se para a investida dos que já na cor dos cravos descobrem o inimigo comunista e contra ele investem com armas de fogo. Temos de estar preparados para combater esse Inferno, que não é Outro, nem são os outros, são seres humanos desviados do caminho da cultura. Ódio à cultura, revelam. Morte à cultura! – defendem, como projeto político.

Jorge Maximino labora em campos férteis, àqueles incultos contrários. Ele está em combate, mesmo sem pensar nisso. O poeta não tem vida fácil, é árdua a existência. Porém, o olhar apoia-se na luz, nas propriedades dela, e o que a morte escreve, como caneta tão ágil e veloz como os galgos do poema de abertura – o tempo era um galgo, escreve ele – , é um registo de esperança e de superação do drama:

a morte com que escrevo é sedução

oculta língua nome ou água

quase lugar: sentença do olhar

ou apolo herdando esta paz pequena.

sereno espaço onde o olhar se apoia

perde-se o regresso e no limiar o drama

 

JORGE AUGUSTO MAXIMINO

Refracções

Lisboa, Edições Sem Nome, 2021