Redescobrindo um génio: o cinema de Alfred Hitchcock em tempo de netflixes, squid games e afins…

 

CARLOS ACABADO


Carlos Acabado  (Lisboa 1945 /). Licenciado em Germânicas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.Professor efectivo do 9º grupo pedagógico (8º escalão da careira docente. Aposentado). Beckettiano e hitchcockiano convicto.

As reflexões que se seguem são o resultado da autonomização de um conjunto de ideias e, (como titulou um cantor francês em tempos muito falado, Antoine) lucubrações a serem reunidas em livro com o título por opção em inglês de “Alfred Hitchcock and the Peter Pan Complex”). Dada a especificidade do conteúdo pôde o mesmo ser apresentado na forma artigo autónomo celebrando aqueles que foram cumulativamente um dos filmes e um dos cineastas mais geniais que o cinema universal alguma vez conheceu.

Se me for permitido dedicá-lo-ei a dois mestres no caminho dos quais a vida fez o favor de me pôr enquanto estudante, os agora meus colegas, José Fernandes costa e Yvette K. Centeno, cujo contributo para a minha formação como ser pensante, como homem, como professor e como cidadão foi verdadeira e virtualmente inestimável.

Deixo, de igual modo, uma nota de reconhecimento á minha sobrinha Joana Mira e à minha ex-colega e Amiga M.R. pelo contributo que quiseram dar ao tio e colega, tecnologicamente limitadíssimo, na aquisição via internet de livros e filmes necessários para as minhas modestíssimas escrevinhações nas mais diversas áreas do saber.

Por fim, um aceno à inesquecível memória do meu Amigo Aurélio Santos que teve a gentileza de apresentar a ninha exposição de colagem intitulada “Um Não-Alexandre onírico” (na Biblioteca municipal do Seixal, polo da Amora) assim como a Álvaro Cunhal cuja amabilidade escrevendo-me a felicitar-me e a encorajar-me nunca poderei esquecer.

Carlos Machado Acabado
Carnaxide em 20.10.2021


 *SHADOW OF A DOUBT (1943)*

                                                                                                                                                 Nos Estados Unidos, chamam-lhe Hitch. Nós, em França, preferimos usar a expressão O SENHOR Hitchcock”
François Truffaut

 

A filha Pat disse uma vez que era o filme preferido do pai e é efectivamente um soberbo «objecto» fílmico, uma obra-prima absoluta que—como eu vejo o conjunto da Obra do Mestre, este dedicaria grande parte do que veio cinematograficamente a seguir a des-construir tão metódica quanto deliberada e permitir-me-ia eu acrescentar compulsiva mas nunca grosseira nem primariamente a, como digo e tento demonstrar noutro lugar, talvez inconscientemente des-construir.

O filme (refoco-me obviamente, outra vez, em “Shadow of a Doubt”) é uma subtilíssima, prodigiosa reflexão sobre aquilo que é, do meu ponto de vista pessoal, a mais firme constante, o core tópico, talvez pudéssemos dizer assim com fundamento e propriedade, o «vértice témico« desse fabuloso edifício existencial e narrativo que é a opus hitchcockiana: a tragédia da perda da inocência, o desastre do crescimento (1). No filme são, com efeito, recorrentes as referências á unidade original a essa extensão ideal da homeostase uterina fundacional que é a inocente placidez e a serenidade da infância vista de uma perspectiva não-freudiana, i.e. manifestamente não-sexualizada.

Irónica e também muito… hitchcockianamente, o filme (quase) abre com as melancólicas desencantadas considerações de ‘Charlie’/Teresa Wright sobre a monotonia, o spleen como titularia e conceptualizaria num rótulo célebre, Baudelaire, o fastio (“the rut”) do rame-rame rotineiro  da vida doméstica e familiar com os seus, no limite, como de resto, Charlie virá a constatar, tranquilizadores rituais e ‘personagens’ identitários.

Ficam perfeitamente claras desde a reveladora “ouverture” do filme (a curta mas significativa panorâmica daquele recanto urbano deserto onde agoniza solitário e triste o cadáver de um carro antig representando o passado morto)  duas coisas: comecemos por esta envolvendo o que é manifestamente a paixão adolescente de Charlotte (Teresa Wright) pelo tio Charlie, Charles Oakley (Joseph Cotten) muito claramente consubstanciada na ideia de uma suposta e muito ingénua «comunicação telepática» entre ambos que Charlotte admite expressamente na conversa com a funcionária do posto de correios,-—um  innuendo ou a sugestão/piscadela de olho á audiência que a caminhada posterior de ambos lado a lado a caminho do banco onde trabalha Joe, o pai de Charlotte, sugerindo um par de amorosos, reforça com muita clareza.

A outra coisa que o Cineasta deixa perfeitamente claro é que a “sombra da dúvida” do título não se reporta a qualquer um de nós constituindo antes o resultado de um transfert para a personagem de Teresa Wright (1) conjuntamente com a família e designadamente com a mãe, dois dos vértices operantes de toda a narrativa. Passa a ser objectivamente impossível negá-lo, i.e., negar a sombra da dúvida—a entrada do filme naquilo que, numa obra referencial da Cultura ocidental, Sarraute viria a designar por “lère du soupçon”—depois do episódio do rolo de filme exigido por Charlie ao fotógrafo da polícia.

De resto, “Shadow of a Doubt”, (favorito ou não do Mestre constitui sem… sombra de reserva ou dúvida, como atrás disse, uma obra-prima absoluta!) é, para mim, o filme dos transferts, um objecto narrativo sublimemente complexo (labiríntico mesmo!) e subtil onde a realidade se transmuta e choca dialogantemente consigo própria num sistema de intertransferências em cujo contexto a inteligência narrativa do grande Cineasta está plasmada.

Transfert da “dúvida”, da insegurança daquelas pessoas do espectador para a personagem de Charlie/Charlotte, elegendo-a para pivot das impressões que o filme visa provocar mas, de igual modo, de maneira muito clara e crucial dessa mesma Charlotte para o Tio, formando ambos, até dado momento, como Janus uma única pessoa, assim como ao longo de toda a película, do mundo ficcional de Joe e Herbert, os detectives virtuais sempre a planear “crimes de papel” para o real onde os crimes efectivamente sem que disso qualquer dos virtuais “conspiradores” (“plotters”) e “assassimos” se dê conta, aconteceram e/ou, debaixo dos seus sempre distraídos e um pouco pueris olhos, na sombra se preparam.