CARLOS ACABADO
As reflexões que se seguem são o resultado da autonomização de um conjunto de ideias e, (como titulou um cantor francês em tempos muito falado, Antoine) lucubrações a serem reunidas em livro com o título por opção em inglês de “Alfred Hitchcock and the Peter Pan Complex”). Dada a especificidade do conteúdo pôde o mesmo ser apresentado na forma artigo autónomo celebrando aqueles que foram cumulativamente um dos filmes e um dos cineastas mais geniais que o cinema universal alguma vez conheceu.
Se me for permitido dedicá-lo-ei a dois mestres no caminho dos quais a vida fez o favor de me pôr enquanto estudante, os agora meus colegas, José Fernandes costa e Yvette K. Centeno, cujo contributo para a minha formação como ser pensante, como homem, como professor e como cidadão foi verdadeira e virtualmente inestimável.
Deixo, de igual modo, uma nota de reconhecimento á minha sobrinha Joana Mira e à minha ex-colega e Amiga M.R. pelo contributo que quiseram dar ao tio e colega, tecnologicamente limitadíssimo, na aquisição via internet de livros e filmes necessários para as minhas modestíssimas escrevinhações nas mais diversas áreas do saber.
Por fim, um aceno à inesquecível memória do meu Amigo Aurélio Santos que teve a gentileza de apresentar a ninha exposição de colagem intitulada “Um Não-Alexandre onírico” (na Biblioteca municipal do Seixal, polo da Amora) assim como a Álvaro Cunhal cuja amabilidade escrevendo-me a felicitar-me e a encorajar-me nunca poderei esquecer.
Carlos Machado Acabado
Carnaxide em 20.10.2021
*SHADOW OF A DOUBT (1943)*
Nos Estados Unidos, chamam-lhe Hitch. Nós, em França, preferimos usar a expressão “O SENHOR Hitchcock”
François Truffaut
A filha Pat disse uma vez que era o filme preferido do pai e é efectivamente um soberbo «objecto» fílmico, uma obra-prima absoluta que—como eu vejo o conjunto da Obra do Mestre, este dedicaria grande parte do que veio cinematograficamente a seguir a des-construir tão metódica quanto deliberada e permitir-me-ia eu acrescentar compulsiva mas nunca grosseira nem primariamente a, como digo e tento demonstrar noutro lugar, talvez inconscientemente des-construir.
O filme (refoco-me obviamente, outra vez, em “Shadow of a Doubt”) é uma subtilíssima, prodigiosa reflexão sobre aquilo que é, do meu ponto de vista pessoal, a mais firme constante, o core tópico, talvez pudéssemos dizer assim com fundamento e propriedade, o «vértice témico« desse fabuloso edifício existencial e narrativo que é a opus hitchcockiana: a tragédia da perda da inocência, o desastre do crescimento (1). No filme são, com efeito, recorrentes as referências á unidade original a essa extensão ideal da homeostase uterina fundacional que é a inocente placidez e a serenidade da infância vista de uma perspectiva não-freudiana, i.e. manifestamente não-sexualizada.
Irónica e também muito… hitchcockianamente, o filme (quase) abre com as melancólicas desencantadas considerações de ‘Charlie’/Teresa Wright sobre a monotonia, o spleen como titularia e conceptualizaria num rótulo célebre, Baudelaire, o fastio (“the rut”) do rame-rame rotineiro da vida doméstica e familiar com os seus, no limite, como de resto, Charlie virá a constatar, tranquilizadores rituais e ‘personagens’ identitários.
Ficam perfeitamente claras desde a reveladora “ouverture” do filme (a curta mas significativa panorâmica daquele recanto urbano deserto onde agoniza solitário e triste o cadáver de um carro antig representando o passado morto) duas coisas: comecemos por esta envolvendo o que é manifestamente a paixão adolescente de Charlotte (Teresa Wright) pelo tio Charlie, Charles Oakley (Joseph Cotten) muito claramente consubstanciada na ideia de uma suposta e muito ingénua «comunicação telepática» entre ambos que Charlotte admite expressamente na conversa com a funcionária do posto de correios,-—um innuendo ou a sugestão/piscadela de olho á audiência que a caminhada posterior de ambos lado a lado a caminho do banco onde trabalha Joe, o pai de Charlotte, sugerindo um par de amorosos, reforça com muita clareza.
A outra coisa que o Cineasta deixa perfeitamente claro é que a “sombra da dúvida” do título não se reporta a qualquer um de nós constituindo antes o resultado de um transfert para a personagem de Teresa Wright (1) conjuntamente com a família e designadamente com a mãe, dois dos vértices operantes de toda a narrativa. Passa a ser objectivamente impossível negá-lo, i.e., negar a sombra da dúvida—a entrada do filme naquilo que, numa obra referencial da Cultura ocidental, Sarraute viria a designar por “lère du soupçon”—depois do episódio do rolo de filme exigido por Charlie ao fotógrafo da polícia.
De resto, “Shadow of a Doubt”, (favorito ou não do Mestre constitui sem… sombra de reserva ou dúvida, como atrás disse, uma obra-prima absoluta!) é, para mim, o filme dos transferts, um objecto narrativo sublimemente complexo (labiríntico mesmo!) e subtil onde a realidade se transmuta e choca dialogantemente consigo própria num sistema de intertransferências em cujo contexto a inteligência narrativa do grande Cineasta está plasmada.
Transfert da “dúvida”, da insegurança daquelas pessoas do espectador para a personagem de Charlie/Charlotte, elegendo-a para pivot das impressões que o filme visa provocar mas, de igual modo, de maneira muito clara e crucial dessa mesma Charlotte para o Tio, formando ambos, até dado momento, como Janus uma única pessoa, assim como ao longo de toda a película, do mundo ficcional de Joe e Herbert, os detectives virtuais sempre a planear “crimes de papel” para o real onde os crimes efectivamente sem que disso qualquer dos virtuais “conspiradores” (“plotters”) e “assassimos” se dê conta, aconteceram e/ou, debaixo dos seus sempre distraídos e um pouco pueris olhos, na sombra se preparam.
Toda esta dialéctica, soberbamente esplanada e posta em cena (“mise en scène”) por um dos maiores Cineastas de sempre faz de “Shadow of a Doubt” um exercício de arrebatadora subtileza e perícia narrativa a que a dificilmente resistível candura de Wright confere um brilho absolutamente delicioso e completamente inesquecível.
De notar o como estamos ainda longe das famigeradas inacessíveis glaciais loiras que muitos se obstinam em associar como cliché ao cinema do Mestre, i.e. o modo como estamos numa fase em que os filmes (mau grado, por exemplo, o ”caso” ‘vintage’ dessa esplendorosa Madeleine Carroll em “The Thirty-Nine Steps”…) predominam os rostis inocentes e juvenis de Nova Pilbeam (que «vimos crescer» de a garotinha do primeiro “The Man Who Knew Too Much” até á azougada, afoita auxiliar do fugitivo (também ele, como tantos heróis de Hitchcock, injustamente acusado de “Young and Innocent”
Isto, sem esquecer a sublime “rapariga sem nome” de “Rebecca” (uma juvenil, tímida, fabulosamente sedutora Joan Fontaine.)
Em “Shadow…” Hitchcock muito à sua maneira, vai acumulando “os indícios em torno desse estado de encantamento, euforia, núbil arrebatamento e paixão iniciais que ligam Wright à imagem antiga, passada, do Tio. Chegam mesmo a partilhar o leito ainda que (outro exemplo de transfert temporal e vivencial/existencial, discretamente erótico, desta feita!) em momentos distintos: a sugestão fica, em qualquer caso, patente…)
Aliás o Tempo, no filme, é sempre um pouco como em Einstein, estruturalmente relativo com o passado fundador a emergir recorrentemente num presente que tragicamente o deforma, desfigura e trai por completo. Esse, de facto, volto a dizer, o «centro témico» do Filme, ou seja, a tragédia do confronto do humano com a perda da inocência original—e da pureza que, supostamente ao menos, lhe anda associada. Charlie Charlotte «é» Charlie Oakley antes de o mundo a corromper como corrompeu este (recordemos, a propósito, por exemplo, o já referido plano inicial da cidade com as ruinas—os deprimentes despojos—de um carro abandonado num ermo avistável do quarto de hotel onde Oakley se refugiou para fugir á polícia a qual, porém, o aguarda à esquina, numa imagem que remete cinematograficamente (e não por acaso, é um dos fantasmas do realizador e da relação deste com o pai, como sabemos) para “Dial M. For Murder” (2).
Um aspecto curioso num Autor que dirigiu filmes (em francês) de propaganda aliada antinazi (“Bom Voyage” e “Aventure Malgache”) ou se propôs denunciar o amoralismo mais ou menos deturpadamente nietzscheano em “Rope” e “Strangers On a Train”), um aspecto curioso, dizia é, neste quadro témico o discurso despudoradamente amoral ou meta-moral (Jenseits von Gut und Böse) do Tio Charlie sobre “as viúvas” (“They are people!”/”Are they Charlie?”.
Já falámos da relativicidade estrutural do Tempo, remetendo directa ainda que mais ou menos metaforicamente para Einstein.
O grande ausente/presente na obra de Hitchcock é, porém, ao longo de toda ela o Autor de “Traumdeutung” ou “Totem und Tabu” (o conteúdo témico de “Shadow…” remete, a dado passo, subtilmente embora, com efeito, para a pulsão incestuosa simbólica do amor entre Charlie/Charlotte e o seu projectivo, potencial alter ego e potencial lado negro, Charlie Oakley. A saber: Freud que, se a memória não me atraiçoa, vemos pelo menos por duas vezes citado expressamente no trabalho do Mestre: em “The Lady Vanishes”, numa espécie de calembur entre o nome da idosa agente britânica, miss Froy—“Froy! Não Freud”, esclarece a própria e em “Marnie” quando a personagem de Tippi Heddren se dirige sardonicamente a Mark perguntando-lhe se pretende “dar uma de Freud” e psicanalisá-la.
Em “The Shadow”, temos o já aludido discretíssimo tabu do incesto, temos o papel determinante do passado identitariamente fundador e um pouco beckettianamente o regresso tranquilizante á simbólica serenidade uterina original na forma de uma réplica da felicidade doméstica que o nascente amor de Charlie por Graham.
Porque, de facto, a família com todas as suas rotinas, tontices mas, de igual modo, no limite, toda a ideia de ordem que traz consigo (a figura bonómica, tranquilizadoramente não-sexualizada, terna, tutelar, protectora, pura e significadora da Mãe, papel entregue à actriz Patricia Collinge) .
Carlos António de Carvalho Machado Acabado . Carnaxide em 19.10.2021
NOTAS
- É minha convicção estritamente pessoal que esta área témica do que designo por “Peter Pan Complex” determina um aspecto curioso do Cinema do Mestre—aspecto que tenciono abordar com mais detalhe noutro lugar—a saber, o que chamo a geometria ou geografia vertical subjectiva plasmada na dialéctica altura/profundidade muito comum no conjunto da opus «hitchcockiana».
- Proveniência das imagens que ilustram o texto:
- Nova Pilbeam: National Portrait Gallery
Joan Fontaine: Pinterest
Patricia Collinge: IMDb e adorocinema.com
Teresa Wright: IMDb e Mulher no Cinema
Joseph Cotten: cinegrandiose.com
(1) Estamos, em termos de carreira cinematográfica, numa fase em que as famigeradas louras mais ou menos inacessíveis e glaciais ainda não fizeram a sua entrada na Obra do Mestre, dando lugar às jovenzinhas inocentes e ingénuas de Nova Pilbeam (que «vimos crescer» no Cinema de Hitchcock num arco que vai do primeiro “The Man Who Knew Too Much” a “Young and Innocent”) onde a sua personagem, azougada infantilmente irrequieta e afoita está, de igual modo, no centro da narrativa. É difícil, por outro lado não ver na sobre-humano Teresa Wright de “Shadow…” uma coincidência física e mesmo caracterológica com a não menos sublime, diáfana e… imaterial “rapariga sem nome” de “Rebecca” (a esplendorosa e ainda muito juvenil Joan Fontaine).
(2) Um exemplo particularmente significativo e curioso de trasnfert resulta, a nosso ver, do cotejo entre os polícias que esperam Oakley ou Tony (em “Dial M. For Murder”) e os assassinos de “The Thirty-Nine Steps” emboscados para abater a agente e o próprio herói Richard Hannay. Comparando os planos é como se no subconsciente de Hitchcock, marcado pela experiência infantil de ter sido, segundo ele, encerrado numa cela para castigo de alguma pueril maldade, é como se, dizia, no subsconciente torturado do Cineasta não houvesse distinção, antes identificação…
Ocorre-me evocar a propósito desta ambiguidade entre forças do Bem e do Mal, essa outra obra-prima de Lang “M…”, uma espantosa reflexão sobre uma realidade para mim muito importante a que chamo o direito individual á própria culpa (algo que o cristianismo, em meu entender, trouxe para a Civilização ocidental e que o nazismo negou, punindo as vítimas pela “raça”) e, no caso particular de “M…” punindo-as através de uma espécie de polícia e tribunal de ladrões e assassinos numa clara alusão aos mecanismos policiais e judiciais do próprio nazismo.
C.A.
Madeleine Carroll: falámos dela a propósito de loiras hitchcockianas
quando evocámos “The Thirty-Nine Steps” do Mestre. (Imagem: Pinterest.com)