NICOLAU SAIÃO
Arsénio da Ressurreição (1901-1991), um pintor de Portalegre
Referiu um dia André Gide: “Já se disse tudo, mas como as pessoas se estão sempre a esquecer é preciso recomeçar”.
Recomecemos então, dizendo que a pintura não é nem ilustração de coisas que se tinham por reais, como sustentavam certos contemporâneos de Cézanne, nem um sublinhar de conceitos acatitando o Estado ou os interesses de camarilhas – como pretendiam os estalinistas e seus avatares modernos, propiciadores do “realismo socialista”. Com efeito – e aqui é que entra, com toda a naturalidade, a singeleza artística de Arsénio – a pintura tal como a escrita, aliás, que nada tem a ver com escrevinhação, é um apelo interior que pela magia dos traços, das cores e das formas emerge posteriormente em paisagens, figuras, rostos humanos, pormenores imaginados. A pintura é, na verdade, uma alta aventura do espírito, uma aposta do ser humano em plenitude.
Por isso é que, a despeito das aparências fabricadas e das jaculatórias dos tecnocratas da esquerda fantasista ou da direita limitada, nesse território os diplomas ou veneras não contam, nem por mal engendrados contam em qualquer parte ou qualquer disciplina.
Pissarro e Picasso não tinham nenhum curso específico, Max Ernst nunca se deu ao trabalho baldado de oficiar num salão para aprendizes. E muitos mais nomes fundamentais poderiam ser acrescentados. Também Arsénio descobriu por si e em si mesmo, paulatinamente, o seu válido caminho – amparado pelas largas trocas de opiniões com amigos perspicazes, confrades interessados e, muito principalmente, José Régio.
Constituiu o grande autor de “Davam grandes passeios ao domingo…”, sem dúvida, o “Oh captain, my captain!” do notável aguarelista portalegrense. Foi o seu arrimo, até, no entrosamento sócio-intelectual do conviva muito quotidiano, talentoso mas sem ouropéis, que Arsénio modestamente sempre foi – numa Portalegre, ontem como hoje, sujeita a posturas de castas, fissuras e compartimentações de cariz interiorizado no dia-a-dia societário.
O que mais importa salientar na obra considerável que o pintor nos deixou é o lirismo e o evidente gosto – deverei talvez dizer amor – com que pintou a cidade alto-alentejana e os seus trechos mais singulares ou que aos seus olhos apresentavam maior expressividade. Porque, sublinho de novo, um vero artista não é uma espécie de ilustrador para chauvinismos mais ou menos grosseiros e apressados, mas um recriador de momentos, de lugares e de figuras presos a esse “instantinho de beleza” como dizia Cesariny e que nos devolve à pureza da contemplação e do conhecimento possível que nos certifica como seres humanos de qualidade.
À sua maneira sensível, despojada de artifícios, singela e lírica a um tempo, foi isso que Arsénio fez, conservando para o futuro, desta cidade de cambiantes, a sua luz e a sua estrutura peculiares. Honra lhe seja, pois!
Nicolau Saião (Francisco Garção/ Portugal), nascido em Monforte do Alentejo e residindo em Portalegre desde os 3 anos. Autor de alguns livros, de quadros e de objectos-esculturas, proferiu palestras em locais nacionais e do estrangeiro sobre arte, literatura de mistério e análise social, além de ter feito declamação nomeadamente em realizações radiofónicas. Ligado à prática surrealista, mas de forma heterodoxa e libertária.