Reabrir o debate que falta

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. O cristão não considera a morte como o último acontecimento da vida humana, mas apenas como último acontecimento da sua dimensão histórica, que não é a única. Morrer é ser acolhido pelo irrepresentável mistério da infinita misericórdia divina, não como coroa dos méritos conseguidos durante a existência terrestre, mas devido à insondável graça do amor que Deus nos tem[1]. É convicção da fé que morrer é nascer para a vida ressuscitada, sem sabermos como será, mas acreditando que será uma vida de pura alegria. Poderão ser feitas biografias e balanços do percurso terreste dos seres humanos, nas suas manifestações entre o nascimento e a morte. Depois, adensasse o mistério.

Joseph Ratzinger, conhecido como Papa Emérito Bento XVI, morreu no último dia de 2022, dia em que Deus o acolheu na sua infinita misericórdia. O funeral foi celebrado no passado dia 5.

É inevitável que, dentro e fora da Igreja Católica, surjam posições muito contrastadas quanto ao seu passado e ao seu contributo para o diálogo ecuménico, inter-religioso e para o entendimento do mundo em que vivemos e sua evangelização.

Ratzinger participou no Concílio Vaticano II, como perito, inscrevendo-se na sua corrente mais aberta, mais renovadora. Muito diferente foi o seu papel como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), nomeado por João Paulo II. Mostrou-se tão zeloso da pureza doutrinal que parece ter secado, à sua volta, a teologia mais criativa.

«Cerca de uma centena de teólogos e teólogas do mundo inteiro foram chamados a Roma, questionados ou simplesmente sancionados sem terem sequer direito a réplica. Nomes incontornáveis da teologia católica do século XX como Bernard Häring, Edward Schillebeeckx, Johann Baptist Metz, Hans Küng, Leonardo Boff, Charles Curran, Eugen Drewermann, Tyssa Balasuriya, Anthony de Mello, Jacques Dupuis ou Lavynia Byrne, entre muitos e muitas outras foram objecto da censura fria de Ratzinger. A par de admoestações colectivas a grupos de teólogos ou a congregações religiosas que ousavam criticar as estruturas de poder do Vaticano ou a doutrina moral tradicional da Igreja – as duas grandes pedras de toque no confronto»[2].

A sua vigilância e o seu controlo sobre as diferentes correntes teológicas – europeias, latino-americanas (Teologia da Libertação), asiáticas ou africanas – reduziam a diversidade teológica ao seu próprio percurso.

  1. De todas essas intervenções, é fundamental conhecer a reacção do Prefeito da CDF – futuro Bento XVI – à paralisante declaração de João Paulo II sobre o ministério ordenado, dito sacerdotal, que ainda hoje continua a impedir a plena igualdade eclesial de homens e mulheres.

Estou a referir-me à Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis (1994) que pretendeu marcar de forma definitiva o futuro, invocando o passado e recusando os desafios do presente: «Embora a doutrina sobre a ordenação sacerdotal que deve reservar-se somente aos homens, se mantenha na Tradição constante e universal da Igreja e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, todavia, actualmente, em diversos lugares continua-se a retê-la como discutível, ou atribui-se um valor meramente disciplinar à decisão da Igreja de não admitir as mulheres à ordenação sacerdotal.

«Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cfr Lc 22,32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja» (nº4).

Deixo, aqui, um fragmento do longo Comentário do cardeal Ratzinger a esta brevíssima Carta de João Paulo II, que a reforça: «Perante um texto magistral do peso desta carta apostólica, surge agora inevitavelmente a pergunta: que grau de obrigatoriedade tem este documento? Diz explicitamente que o que nela se afirma deve ser considerado definitivo na Igreja e que esta questão fica fora do jogo das opiniões flutuantes. Será esta uma afirmação dogmática? A este respeito, deve-se responder que o Papa não propõe nenhuma nova fórmula dogmática, mas confirma uma certeza que foi constantemente vivida e afirmada na Igreja. Em linguagem técnica, deve-se dizer: é um ato do magistério ordinário autêntico do Sumo Pontífice e, portanto, um acto que não é definitivo nem solene ex cathedra, embora o objecto desse acto seja a declaração de uma doutrina ensinada como definitiva e, portanto, não reformável. Isto significa, como sublinha a apresentação do documento, que não se propõe como ensinamento prudencial ou como hipótese mais provável, nem como conselho para a acção, nem como simples disposição disciplinar, mas precisamente como uma doutrina certamente verdadeira. O «proprium» da nova intervenção magisterial não diz respeito, portanto, à explicitação do conteúdo da doutrina proposta, mas apenas à sua estrutura formal e epistemológica, no sentido de que explicita com a autoridade apostólica do Santo Padre uma certeza que sempre existia na Igreja e que alguns questionaram; é-lhe dada uma forma concreta, que também insere de forma vinculativa o que sempre foi vivido».

Esses documentos procuram enfrentar a transposição das correntes relativistas para as formulações católicas da fé, o que é saudável, mas o estilo escolhido e imposto de resposta terá sido o mais adequado? Não haveria outros caminhos mais colegiais? Classificar uma declaração sobre o futuro, necessariamente desconhecido, como definitiva, não terá sido excessiva? Não seria mais prudente retomar essa questão, não apenas recorrendo ao passado, mas entregá-la a comissões de ciências humanas, das várias correntes da teologia e da pastoral? Dada a complexidade do pluralismo cultural e da inculturação do Evangelho – quando as mulheres se revelam protagonistas de toda a vida espiritual, social, económica e política – não teria sido mais verdadeiro seguir o caminho que, agora, foi tentado, na preparação universal do Sínodo 2023? Com todas as suas deficiências, não me parece existir um processo e um espírito tão fecundos como os sinodais, o caminhar juntos em diálogo.

Quando se fala da impossibilidade da ordenação sacerdotal das mulheres, esquece-se a complexidade da própria noção de sacerdócio. No Novo Testamento, a palavra sacerdote é reservada a Cristo e ao povo cristão no seu conjunto. Julgo que essa questão e outras exigem revisitar o que as teologias feministas têm realizado e continuam a investigar.

  1. Bento XVI (2005-2013) publicou três belas Encíclicas sobre a dimensão teologal da vida cristã. Em 2006,Deus Caritas est, Deus é amor; em 2007, Spe salvi, salvos na esperança; em 2009, Caritas in Veritate, caridade na verdade.

Estes documentos revelam uma boa qualidade teológica. Não reabrem, no entanto, o seu comentário à referida Carta de João Paulo II. Esse é o debate que falta e que continua adiado.

 

[1] Mesmo sob o ponto de vista humano, cf. Michael J. Sandel, A Tirania do Mérito, Editorial Presença, 2022

[2] Cf. António Marujo, 7Margens, 31.12.2022


Público 08 Janeiro 2023