Rascunhos entre imagens e palavras | ironias, cómico e comédia

MARIA JOSÉ CAMECELHA


Esta comunicação teve como ponto de partida uma curiosidade: a referência às  ‘Portas ‘inclusa na introdução que,  nos anos 30, Leslie Charteris  (1) fez  no seu conto  ‘Alta Finança’  in O Santo em Londres (2):

 “Um dia, talvez um ficcionista literário com mais tempo para perder do que eu, escreva uma preciosa monografia acerca de “portas”. Salientará que as portas são, ao mesmo tempo, entradas e saídas e tirará conclusões pseudofilosóficas  acerca da Vida e da Morte.  Demorar-se-á  em considerações acerca da porta que os diplomatas norte-americanos insistem sempre em conservar aberta excepto quando se encontram no interior e mencionará, quase inevitavelmente, algumas portas famosas, tais como: a Grande Porta da catedral de Poillissy-sur Loire na qual Voltaire garatujou  um rude epigrama dedicado ao papa; a Grande Porta do Templo de Pashka em Alaabad, na qual estão esculpidas 777 vacas sagradas: a porta de casa de hóspedes de César Bórgia, que enterrava punhais nas costas de quem a transpusesse; etc. Provàvelmente  inventará, sem escrúpulos, toda esta parte, tal qual como eu fiz, mas ninguém dará por isso….

e continua:

“Custa a crer que a porta do Barnyard Club, em Londres, encontrasse lugar em tal enumeração…

O Santo sai de lá para a porta a Aventura e nós saímos da porta da ironia caindo directos numa outra aventura: a da linguagem.

Note-se que o texto de Charteris tem um tempo muito próprio em que autor e leitor partilham, a simultaneidade do  presente. Numa primeira leitura, surpreende-se o leitor com a descrição, obrigando-o a associações diversas e a transposições de sentidos.

Lembre-se aqui o F for Fake de Orson Welles (3)  onde um dos  desafios do autor/narrator/director se centra entre ´bons falsários ou maus falsários´. O verdadeiro e o verosímil.

Abrindo e fechando com um truque de mágica, Welles usa a sua experiência espectacular de grande mágico (com que abre e fecha o filme) para contar histórias. Em Ibiza (s)  e.g. Clifford Irving (autor da suposta biografia falsa de Howard Hughes), Elmyr de Hory (falsificador de arte, nomeadamente do “melhor período de Picasso”) são duas das personagens presentes.

Dicotómico e paradoxal, como é a última frase de Elmiyr relativamente à descoberta dos falsos Picasso pela assinatura “eu nunca assinei um quadro”. Note-se aliás que a personagem | ele próprio vai queimando quadros, em diversas sequências.

Voltando a Charteris e interpelados  por uma invenção sem escrúpulos e, finalmente, por mas ninguém dará por isso o leitor atento poderá  ir a correr confirmar  factos  mas lembra-se aqui  Chesterton: “os factos, os factos, como os factos obscurecem a verdade” (4)  E é esta a porta que se abre à curiosidade: da Grande Porta da catedral de Poillissy-sur Loire (daqui só existe  o Loire), às 777 vacas (número indicativo J) à casa  de hóspedes dos Bórgia e aos garatujos de Voltaire (recorde-se a célebre polémica de Voltaire com  Alexander Pope, sobre a dificuldade do optimismo versus  Terramoto Lisboa 1755). Papa …  Pope …

As irónicas (e icónicas portas), advêm pela construção de sentidos com referentes distintos. Acreditamos nos possíveis, noutros poderemos verificar ?   De uma mera leitura a uma tentativa entendimento do texto. Qual a chave? A procura eterna do sentido final, absoluto. E o cómico nasce também a partir desta subversão. Veja-se a profunda ironia patente n ‘Os Manuscritos de Jeffrey Aspern’, de Henry James (5), perseguidos, encontrados e queimados.

É uma desordem criativa.

Para passar do cómico à comédia, dado que a fina ironia da personagem Simon Templar não se coaduna neste contexto, peço ajuda, a despropósito evidentemente, a algumas formulações de Luís Miguel Cintra, por exemplo nos textos de apresentação dos espectáculos ‘E Não Se Pode Exterminá-lo? ‘e ‘Não se Para não se Paga’ (6)  em que a acepção de comédia é tida como uma ‘reconstrução da ordem’ em confronto com a disrupção provocada pelo cómico.

Lembro aqui Hollywood e Billy Wilder (por exemplo Some Like It Hot, 1959 | Quanto mais Quente Melhor | na versão portuguesa) (7) em que ele consegue o melhor do entrelaçamento entre os dois mundos – do cómico e da comédia.

Voltando para os anos 30, onde começámos, abstenho-me de qualquer comentário e passo directamente à Mulher Tatuada de Groucho Marx (8).

E para  dar a  ver e ouvir, fecho esta apresentação com Picasso “A arte é a mentira que nos faz perceber a verdade”


(1)  http://www.lesliecharteris.com/

(2) Leslie Charteris, The Higher Finance in The Misfortunes of Mr Teal (1934) (aka The Saint in London and The Saint in England); (‘Alta Finança’  in O Santo em Londres, Ed. Edição Livros do Brasil, Colecção Vampiro Nº 220, ed. 1988.

(3) Orson Wells, F for Fake,  1973 https://www.youtube.com/watch?v=gIVgUjj6RxU

(4) The Tremendous Adventures of Major Brown  First appeared in Harper’s Weekly [v47, December 19th 1903] incluído em 1905 no livro The Club of Queer Trades, 1903 (O Clube dos Negócios Estranhos, G.K. Chesterton, Edição Livros do Brasil, Colecção Vampiro Nº 493, ed. 1988).

(5) Henry James, Os Manuscritos de Jeffrey Aspern (originalmente publicada em The Atlantic Monthly em 1888 |  Relógio d’Água, 1986).

(6) Não se Paga não se Paga Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia 09/01/81; E Não Se Pode Exterminá-lo? Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 24/03/79. Fonte:  Teatro da Cornucópia .

(7) Billy Wilder Some Like It Hot, 1959  https://www.youtube.com/watch?v=pn9wwpcz2b4

(8) Groucho sings his signature song, “Lydia the Tattooed Lady,” in At the Circus, 1939

https://www.youtube.com/watch?v=n4zRe_wvJw8


ANEXO: E_8_Comunic_Portas_imagens_vf (abre em pdf)


OITAVO ENCONTRO TRIPLOV
Convento de São Domingos, Lisboa, 25.05.2019