Raquialgias e paradigmas fisioterapêuticos

LUÍS COELHO
Fisioterapeuta e escritor


Não pergunte que método o fisioterapeuta tem, mas que fisioterapeuta o método tem.
(in «A Razão Neurótica. Um livro de auto-desajuda», Manufactura Editora, 2019)

 

 As raquialgias (dores do ráquis/coluna) são, provavelmente, a razão principal de visita ao fisioterapeuta e de intervenção multidimensional. Tema sempre actual, mas nem sempre actualizado, tem muito para nos ensinar sobre a natureza das terapêuticas, dos paradigmas clínicos, do relativismo em saúde, e da confusão que, ora, se apossa, de quando em quando, da cabeça do paciente (o que, bem vendo, agrava a raquialgia).

A simplificação do tema é grosseira, criticável, mas, verosimilmente, servirá o meu intento. Assim, podemos dizer que, no tracto das raquialgias, há dois modelos fundamentais de compreensão e tratamento das dores de coluna. Paradigmas polares, de certo modo, que revelam muito da propriedade do terapeuta e da visão clínica.

O modelo que intitularemos de “funcional” é, talvez, modernamente dominante. Ele é, a meu ver, representado pela vertente que valoriza a patologia discal, abarcando as hérnias, enquanto mote de uma causa proximal das dores, facilmente localizável, respeitante a uma origem a “curto prazo”. Este paradigma é fortemente “biomédico”, “biomecânico”, e assenta numa visão veramente grupal e generalizável. Identificada a área envolvida, o interesse é imediato e perspectiva a redução da dor. A fisioterapia poderá, como tal, consistir em manobras anti-sintomáticas, e, na melhor das hipóteses, o terapeuta poderá efectuar “terapia manual”, de modo a restaurar a mobilidade. O trabalho de força profunda é também recomendado. Existe um esforço para realizar o que é justificável cientificamente. E, em nome da ciência, pespegam-se as receitas de higiene postural, incluindo a manutenção da coluna em posição neutra e o evitamento de posturas viciosas, para além de se aconselhar a prática de actividades como hidroginástica, em que a água age enquanto meio “facilitador”, ou a natação, para fortalecer as costas, onde, aparentemente, a musculatura está enfraquecida. O modelo “funcional”, a bem ver, valoriza o reforço do paciente, musculatura laboral incluída. É uma espécie de protótipo liberal, na qual o fisioterapeuta age enquanto funcionário de um sistema, quiçá, keynesiano. A filosofia é empírica e utilitária, valorando o cidadão, aquém do indivíduo hermenêutico.

Neste contexto, se o modelo de cima é científico-liberal e positivista, o modelo que intitularemos de “postural” é francamente “espiritual”, psicanalítico, fenomenológico, preferindo ver as coisas nos termos do “longo prazo” estrutural e interpretativo. Assim, aquelas artroses, hérnias e/ou dores serão encaradas como consequências de um desequilíbrio postural, na qual a parte psicossocial desempenha um papel fundamental. Anos de agressão “liberal” poderão ter contribuído para reforçar as defesas do paciente, encurtando a musculatura “postural”, processo que agrava, ainda mais, a retenção social. Trata-se de uma retracção do “espírito”, aqui representado pela cadeia muscular posterior, conjunto de músculos e fáscias com grande tendência para o encurtamento. Os músculos parecem fracos, porque são do tipo “postural” e têm, assim sendo, pouca capacidade de hipertrofia (os músculos “tónicos” possuem alta proporção de fibras musculares concentradas no esforço leve e constante), e a sua tensão é, na verdade, causa da fraqueza “liberal”, anterior, do sujeito. Obviamente, fortificar indiscriminadamente o paciente, ou mais propriamente as suas “costas”, só gera mais defesa, contratura e fragilidade. A defesa, claro, pode ser útil, possibilitando a “adaptação”, o “pathos” social, mas, quando ela chega ao estado de esgotamento, o “pathos” torna-se uma genuína “doença”, sobressaindo a dor e a desadaptação social.

Nem sempre interessa, portanto, ir à “causa” profunda das coisas, até porque a interpretação é inacabável, pode ser mais importante compensar, para consentir o funcionamento. Para além do mais, o Sistema poderá não permitir ou obviar a resolução de uma problemática “íntima”, talvez seja melhor manter o indivíduo enquanto parte de um rebanho, a coisa acaba por funcionar, pelo menos para uma boa maioria, os estudos até o confirmam.

Estudos sobre a importância da postura, nos trâmites do “longitudinal”, são difíceis de realizar, porque implicam uma idiossincrasia, e um tempo longo de acompanhamento do sujeito. E é de uma idiossincrasia que se trata, o paciente possui características suas que levam tempo a ser compreendidas. Uma intervenção fisioterapêutica massificada contribui, tão-só, para escamotear o fundamento do “ser”. Dei, durante anos, aulas de grupo, e sentia, todos os dias, a falta do contacto, incluindo o “manual”. A terapia “manual”, o movimento, o Pilates, tudo isto é importante, mas deve ser adequado, o mais possível, à singularidade do paciente. E, de preferência, após ter havido alongamento postural. Flexibilizar, primeiro, para, depois, movimentar e reforçar. É uma ordem mais coerente, e ela adapta-se aos dois paradigmas. Um tratamento é, geralmente, multivariado, no mesmo exercício, poderei estar a trabalhar tudo em simultâneo, o que, de mais a mais, nos lembra que é difícil isolar variáveis, e, atendendo a que “o todo é maior do que a soma das partes”, existe, em muitas manobras, um efeito multivariado que não pode ser reduzido analiticamente. E tudo isto se baseia, apesar de tudo, em ciência, física, biologia, matéria bruta e certeira que justifica o intrínseco dogma “postural”, incluindo a noção de que a cadeia muscular posterior se comporta como um “todo” e é mais “tónica” do que a região anterior, essencialmente fásica, do corpo. Esta matéria também é “grupalizável”, mas continua a ser alvo do preconceito dos “cépticos”, que, comummente, traem a própria lógica.

Pelos vistos, a síntese é possível, mas nem sempre é requerida ou desejável. Os paradigmas são, apesar de tudo, parcialmente incompatíveis (nem que seja para mera caricatura sociológica, kuhniana). Não é muito recomendável trabalhar com o paciente “postural” em extensão, andar a reforçar os desequilíbrios. Mas, tal-qualmente, não é desejável alongar excessivamente “em flexão” uma coluna que tenha por exemplo hérnia discal, com ou sem neuropatia periférica. Uma postura de reeducação postural agrava, muitas vezes, uma hérnia, uma ciática. Há pacientes que não podem conhecer grandes “flexões” do seu ráquis. E destes há muitos. Por isso a ciência os identifica tão facilmente. Mas talvez mais vezes do que as vezes reais. E é especialmente a estes que se aconselham, ou devem aconselhar, a coluna neutra e a higiene postural. Mas, se o paciente não for francamente flexível, as duas anteriores poderão ser fortemente desaconselháveis. Manter as “costas direitas” poderá ser um suplício para quem não tem uma cadeia muscular posterior muito flexível. E como o trabalho daqueles músculos “posturais” é subconsciente, andar a advogar o “estar direito” é um convite à contratura, bem como ao medo, à ameaça. E esta contrai mais os músculos, que, por sua vez, comprimem a hérnia. Mas, às tantas, se quisermos alongar aqueles músculos, teremos de ter cuidado para não complicar o caso da hérnia e das dores.

Como pode ser visto, as coisas não são tão simples como parecem muitas vezes. Mas, recuperando a ideia de síntese, uma intervenção global, abrangendo os dois paradigmas, com mais ou menos enfoque num deles (há que lembrar que certos pacientes parecem incluir-se escrupulosamente num modelo preciso, mas esta percepção, por parte do terapeuta, é sempre dubitável, o profissional constrói, e placebetiza, o paciente, e vice-versa), é possível e desejável. Por outro lado, a noção de “idiossincrasia” é fundacional para entender profundamente o erro brutal de tantas asneiras que se fazem nos ginásios, com exercícios concebidos para as “massas liberais”, com flexibilidade perfeita e sem problemas de maior. O trabalho de ginásio, bem como a totalidade dos desportos, não se adapta à individualidade (e a adaptação adequada dependeria de um conhecimento nímio da patonormatividade, coisa quase sempre inexistente entre os profissionais). Posturas há muitas, problemas são a regra, o que serve a um não serve a outro. A actividade física não é, bastas vezes, recomendável à saúde articular, sobretudo se vicia a postura, se compromete a posição. O trabalho de força é, por natureza, repressivo da idiossincrasia. O que não invalida a sua importância em termos neurológicos, segundo o ponto de vista da programação neuromuscular, aqui, sim, empreendemos, de novo, na síntese, numa intercessão simultaneamente postural e funcional. Mas cuidai para que o benefício não seja obtido à custa de novas compensações. A não ser, claro, que seja essa a intenção, porque isto, bem vendo, é tudo relativo. Tudo depende, aliás, do objecto que está em jogo, já lá vai o tempo em que eu mesmo era paradigmaticamente dogmático. No meu «O Anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo (…)» (Contra-Margem, 2008), defendi a gravidade de enaltecer o modelo “postural” a todo o custo, mas, com a própria experiência, tornei-me menos radical, permitindo mais compensações. Com obviedade, tomamos várias vezes a liberdade de reforçar com menos restrições o paciente sem alterações posturais evidentes, e, do mesmo modo, nada nos impede de mobilizar as vértebras de um indivíduo com retracção posterior. É a inerente sensibilidade empírica do terapeuta que admite, de certa maneira, “dar uma no cravo e outra na ferradura”, o alongamento pode ser moderado e acompanhado de tracção manual e movimento, depois, o paciente poderá ter de se virar de barriga para baixo, para assestarmos a terapia manual (a qual ganha com a preparação postural e a tracção prévia da coluna), reduzindo a possibilidade de a coisa se complicar em termos “discais”. A intervenção deve harmonizar realidade, paradigma e placebo, verdade “moderna”, espírito “positivo”, e realidade “pós-moderna”, a qual faz confluir pré e pós-cientificidade, e tudo é ciência, ainda assim, cons-ciência, processo que visa racionalizar e transcender. De igual forma, nada deixa de se emprenhar no plano de uma crença que é compartida pelo “duo” terapêutico. O mecanismo interventivo não pode, por ora, ser dinâmica e perfeitamente algorotmizado, o terapeuta é necessariamente falível, e o processo nunca cessa inteiramente. Variáveis são cruzadas constantemente e muitas coisas resultam, bastas vezes por aquilo que vislumbra ser um “acaso”. Todavia, é identicamente certo que qualquer pormenor poderá fazer toldar a resultante, a benignidade, deste decurso; certo é que todas as regras simples são quiméricas e superficiais, mas mesmo isto pode ser o forçoso à segurança placebetária do sujeito ou do tecido social.

Concluindo, o modelo “postural”, espiritual, é a porta de entrada racional para o “funcional”, mas, como vimos, também pode perigá-lo. É a analogia do dogma a ameaçar o processo científico “stricto sensu”. Mas não deixemos que a ciência seja também ela dogmática. Manter uma posição bastante tempo não é o cabo dos trabalhos. Dobrar as costas ou descansá-las no assento poderá ser vantajoso para quem tem hiperlordose lombar (mas, existindo hérnia, a vantagem é menor). As regras são para ser decepcionadas, se isso se justificar. O resto fica a depender do “bom-senso”.


LUÍS COELHO