Rabo de lagartixa

 

GERSON VALLE


Pós-graduações na França, Holanda e Portugal. Lecionou Direito Internacional Público, Política Internacional, Noções de Direito e Cultura Brasileira em faculdades do Rio de Janeiro. Procurador da FUNARTE/Ministério de Cultura por 17 anos. Publicou 16 livros: de poesia (de sua autoria e tradução), ficção, ensaios, contos, Direito. Mais de 500 publicações em periódicos. Prêmios nacionais e no exterior (como o 1º lugar do concurso de livros de contos, em 2006 pela Associação Nacional de Escritores, de Brasília, ou o de Notório reconhecimento do Prêmio Maestro Guerra Peixe de Cultura 2018, da Prefeitura Municipal de Petrópolis). Libreto da ópera Olga, com música de Jorge Antunes, encenada no Theatro Municipal de São Paulo (2006), no Teatro Nacional de Brasília (2013), e em 2019 no Teatro Báltico de Gdansk, Polônia. Membro titular da Academia Petropolitana de Letras, onde foi presidente reeleito num segundo mandato (2017 a 2021), e da Academia Brasileira de Poesia – Casa Raul de Leoni.


Não basta crer. Há que se encarar o lado das aparentes eternas verdades que nos são transmitidas. E o outro lado das dúvidas e tropeços a todo canto. As posições nunca são definitivas, por mais que pesquisemos, tentemos teorizar ou sonhemos. Boatos ou fatos? Certeza, certeza mesmo, só se um morto ressuscita e Tomé toca-lhe as chagas.  Assim mesmo a certeza é para Tomé. Não para mim, que sequer vi as feridas da crucificação. E confesso nunca ter entendido porque Jesus, depois da ascensão ao Paraíso, ainda permanecia com os furos dos pregos em suas mãos. Isto, porém, é outro papo. Pitoresca a promessa selada entre os amigos Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. O primeiro que morresse apareceria ao outro, provando existir o depois.

– Existe! – digo eu, acordando no CTI de um hospital e, sem precisar me beliscar por sentir meus braços balançando, as pernas caminhando. Existe, sim, o depois! Estou realmente além do corpo físico! Não tem mais vírus em meus órgãos. Em compensação não têm mais função os próprios órgãos! Perdi a finalidade da vida, o caminhar para a morte. Se já estou morto, que vou fazer agora? Caminhar para a morte na morte para chegar à outra vida e aguardar sua futura morte?

O coronavírus andou pelo mundo, primeiro a passo de cágado, depois em trote de pangaré, até chegar à corrida de lebre, me atingindo. É irreversível, pensei. Entretanto, estou aqui. Lugar estranho onde as pessoas passam por mim, não me veem, não falam comigo. Tento articular um olá. Percebo não ser ouvido. Não dá para ligar um aparelho de som. Minhas mãos existem, mas não manipulam coisa alguma. Não seguro nada. Nem uma musiquinha posso provocar para direcionar meus sentidos. O lugar deve estar cheio de outros abantesmas iguais a mim. Se eu existo muitos outros existirão. E se isto ocorreu desde o início do mundo, todo ambiente deve estar superlotado. Nem isto vejo. Mundo novo, indefinido, misterioso. Não sinto medo, porém, nada me parecendo fantasmagórico. A mesma pasmaceira dos dias indeterminados, noites sem objetivos. Se pudesse segurar um livro, o tempo seguiria uma leitura. Tempo e espaço se confundem com coisa alguma.

Mas posso me dirigir para onde bem entendo. Que saudade sentia disto! A pandemia do coronavírus fez todo mundo viver isolado, em quarentena sem papo furado. Tudo objetivo, para não transmitir doença, possível morte, sofrimento… Se já não transmito nada, nem recebo coisa alguma, posso ir aonde quero. Até entrar num ônibus ou metrô, e me acomodar ao lado dos que me são agora os fantasmas do mundo dos vivos! Mas de que me adianta a liberdade? Acho que foi Sartre quem disse que a liberdade serve para a gente se prender a alguém ou alguma coisa. Se não foi ele, ou se a frase não foi exatamente esta, alguma relação possui do existencialismo e do raciocínio inteligente – se é livre para poder se prender – sem dúvida Sartre tinha bom humor, e as pessoas achavam o existencialismo tão “serioso”… Talvez haja na “boutade” sartriana meio sarcástico-piadística com seu tom filosófico existencial uma lição para eu seguir. Sobretudo que não sei que existência levar quando não tenho mais a existência física. Vou ser um “existencialista do além-túmulo”? Ponha-se divagação metafísica em quem não tem o que fazer depois de morrer! Devo mesmo prender-me numa relação amorosa já que isto é o inexorável fim das liberdades individuais? Para não ficar bobando pela eternidade devo me amarrar em alguém? Ou, como dizia o amigo gozador Toninho Ipojuca, “contra alguém”? E nisto posso tentar descobrir se existe, como a vida de além-túmulo, este outro mito, o tal do amor. Sim, porque nas lendas de nossas culturas, o amor transcende a morte, e assim o ser amante ou amado consegue enxergar o seu “outro espiritual”, quando invisível para outras pessoas. Não será não?

Para isto, há que se ter uma atração forte, ligação anterior à existência, identificação de gêmeos. Existirá, em meu caso, com alguém?

Há a Roxane, mulher de meu primo Golias. Há anos dialogamos como se tudo em nós se afinasse. Procuramos, até, não dar bandeira quando o marido dela estava presente. Desde que nos conhecemos eu ou ela não precisamos terminar uma frase, nos entendendo apenas por olhares. É como se fôssemos iguais em tudo, tivéssemos nascido um para o outro. Eu sempre desconfiei que tal coisa seja uma tolice. Mas ela, em mais de uma oportunidade, deu a entender que acredita nisto. Eu até tento fingir estar sempre engasgado, para pigarrear sem dar na vista. Afinal, Golias é meu primo e amigo da mocidade, quando eu ainda ria das piadas grosseiras e citações de filmes pornográficos de que ele não se cansava. E que me enchiam o saco. Nos tais olhares trocados com Roxane, no entanto, onde as frases se completam, há mais que simples telepatia. É como se penetrássemos no espírito um do outro. E na vontade também da penetração dos corpos. Gaiato que reluto, achando que apesar de todas as identificações, nossos gostos divergem em muita coisa. Sempre que a quero menosprezar, para não me deixar levar por desejos inconvenientes, critico seus vestidos de exagerado mau gosto, sua falta de sensibilidade para as artes mais elaboradas, seu primarismo ante a literatura que cultivo. E aí me desagrada plenamente seu fingimento ao me espicaçar para falar de livros e autores, fazendo cara de tê-los lido e até compará-los, vaidosamente, como integrantes de seu próprio currículo!… Psicopatia? Apesar de primária, convence-me em buscar conversa na afinidade de olhares e bocas! Seu modo chamativo de se vestir, sobrando seios e coxas, lembram-me o antigo e desagradavelmente obsceno teatro de revista. Não existe mesmo, tento me convencer, esta de almas gêmeas! Mas, nossos olhares nos tocam e pedem aproximações.

Por que não a procurar agora? Estando desfeitas as uniões sociais do mundo dos vivos, nenhuma regra deve mais prevalecer no desagregado plano onde me encontro.

Não toco a campainha por absoluta impossibilidade de pressionar um objeto. Transpasso a paredes como num filme de vampiro. E estou diante dela. Preparo-me para ouvir-lhe o grito, apavorada, se verdadeira a lenda dos que se amam poderem se ver mesmo depois da morte. Parece que sim. E não lhe causo o mínimo susto. Olha-me como se estivesse me esperando. Na verdade, era outro fato que me fazia estranhá-la. Certa convicção fatalista, ao que parece, de quem não se surpreende com nada, como se tudo fosse possível, talvez por não ter suficiente preparo para classificar os acontecimentos como possíveis ou impossíveis. Quem conhece pouco, espera por tudo. Não é essa apreensão das coisas que faz os crentes admitirem milagres em qualquer igrejinha de exploração financeira? Para quem prescinde das provas científicas, tudo é possível, mesmo a aparição de um morto (E aqui cabe uma leve digressão, parecendo-me que isto contraria a famosa frase de Dostoiévski de que se Deus não existe, tudo é possível. Não. Se Deus existe conforme a pura fé dos que nele acreditam, então sim, toda absurda consequência da crença sem prova é possível!). Ela de fato confirma:

– Te esperava. Sempre soube que nosso destino é comum. O primeiro passo foi teu. Agora, temos um casamento para a eternidade. Sei que me amas como te amo. Me abrace.

Tentei abraçá-la. Por mais que a criticasse nada me pareceria mais agradável que um beijo apaixonado de quem troca comigo olhares de compreensão. A atração é algo indescritível, e como dói se se frustra. Mas, minha boca entrou por sua boca sem que nada sentíssemos. E meus braços se perderam sem a abraçar. Ser sem corpo, isto é que é um morto; algo redundante, não é mesmo?

Sentamo-nos um em frente ao outro. Namoramos e projetamos o que pareceu uma solução. Aliás, a ideia partiu dela:

– Pelo que me chega do espiritismo ou da umbanda, o espírito pode se incorporar num médium. Na macumba chamam de cavalo. Esta pode ser uma forma de nos beijarmos, abraçarmos, nos penetrarmos todinhos um no outro.

– Mas, se houver um “cavalo”, ele é quem estará te beijando, te abraçando, te penetrando…

 – Vocês homens são tristes! Uns ingênuos. Pensam que nós, mulheres, amamos um corpo por esta ou aquela aparência. Eu amo é você, não meu marido. Sabendo que você está no corpo dele, eu vou gozar até morrer. E, morta nos juntaremos no paraíso!

Senti um temor que até então a morte não me dera. Aquela fala não fora macabra? Isto parece terror gótico. Porém, meu desejo frustrado que tentara abraçar e não conseguira, como se continuada na morte essas doidas ansiedades orgânicas, tinha de ser saciado. Uma inevitável tentação, desprezando racionalidades. Senti-me como um personagem do mesmo Dostoiévski que parecia me acompanhar no “post-mortem”, sempre em tudo fascinante, levando ao extremo situações insustentáveis, até mesmo à degradação, como quem entra bêbado em ambiente circunspecto.

Quando Roxane e Golias se deitaram para dormir, concentrei-me para entrar no corpo do primo. Ele parece ter sentido algum aperto e se contorceu um pouco. Mas acabou por relaxar, e passei a ser o motorista a dirigir-lhe o caminhão. E, aliás, seu apêndice lá de baixo bem merece esta designação. Mas, se a Roxane diz tanto desejar-me é porque seu caminhão não resolve suas ambições, pensei. Dentro de seu cérebro, memória, corpo inteiro, no entanto, pude vivenciar momentos que viveram com amplos orgasmos de ambos. Utilizei seu instrumental com tal furor, que ao final ela me disse que eu fui o que esperava.

– Nunca tive uma relação tão completa! E é claro que foi por saber ser você, fosse de quem fosse o corpo que eu abraçava! A satisfação, o verdadeiro amor, está aqui, olha, e aqui (e apontou a cabeça e o coração alternativamente).

Há muito eu já percebera que a mentira para ela não existe. Uma espécie de psicopatia, sim, faz com que aborde as questões inventadas ou desejadas como verdadeiras. Por isto, talvez, “conhecia”, sem nunca os ter lido, os grandes clássicos do passado. Há muita gente assim. Por ter referência em aulas de colégio ou em capas de livraria, e até por ter amigos ou parentes que falam de seus livros. O que se brinca constituir “cultura por osmose”…  Eça de Queiroz, por exemplo, já era, sabe tudo sobre ele. A preguiça e os tratos prosaicos do quotidiano não lhe dão tempo para leituras, que, na verdade, não está em seus hábitos, a não ser para as “socialmente necessárias” autoajudas. Servem para fingir distinção entre a gente de poucas reflexões que a cerca. O fingimento, enfim, parece fazê-la convencer-se de ser culta, “de fino trato”, e a ter ideias como aquela que o amor do espírito aproxima mais que o físico, e, assim dar a entender ser seu desejo viver no éter da eternidade comigo (com a licença para o trocadilho), mais ilustrado que seu marido, meu primo Golias, o das grosserias sexuais.

Ainda nas deformações da psicopatia, isto era uma reação de momento, e em sua falsidade só há de real o momento. Quando eu me encontrava dentro do corpo dele, entrando em sua memória, tive conhecimento de como o namoro dos dois começara. Golias ouvira falar que Roxane fora a uma excursão com a turma de faculdade e um professor sentou-se ao lado dela, no ônibus, à noite, de volta para casa. Ela insinuou-se bastante ao professor, e quando estavam lado a lado, no escurinho do ônibus noturno, pôs uma revista no colo dele, para disfarçar, e, por baixo, meteu a mão para acariciar-lhe o pau. Golias ficou excitadíssimo. Queria para ele aquela garota sexualmente audaciosa. Na primeira festinha que se encontraram “ficou com ela”, o “ficar” que entrava na moda naquele tempo. E logo lhe foi mostrando o “caminhão” (que, aliás, ela chama de “maracanã”). E os dois, tão bem dispostos sexualmente, sempre consideraram o casamento, o amor, como a penetração dos gemidos noturnos. Estavam satisfeitíssimos. Puro delírio dela se dizer disposta a viver com meu espírito para a eternidade. Achou bacana a ideia, por achar bacana meus conhecimentos alguns anos-luz na frente do meu primo Golias, boa gente, mas um bárbaro culturalmente.

Foi nossa única relação de cama. Meu espírito me salvou de reencontrar Roxane. As coisas, de uma forma geral, foram ficando mais embaçadas, diminuindo de intensidade. Apagando-se. Eu não sendo mais visível nem para ela. Pareceu-me que o chamado espírito possui uma sobrevida limitada. Que talvez seja isto a existência da propalada e/ou negada vida após a morte. Durante um tempo após o esgotamento físico, uma sombra do corpo perambula, até ir-se desfazendo, e tudo acabar. Como acontece com o rabo das lagartixas, que, após serem separadas do corpo, ficam se mexendo durante algum tempo, até que param, não sendo mais que matéria que apodrece.

Isto, definitivamente, me coloca na mesma posição alternativa disposta por Braz Cubas como a de um autor defunto ou defunto autor. Quem vai saber? Mas, ainda tenho fôlego para uma última reflexão. A bem dizer, a analogia sobre o “post-mortem” de rabo de lagartixa foi influenciada pela quarentena em que passava devido ao coronavírus. Minha vida, com ela, já era apenas um reboque aparentemente automovido depois de se separar do carro condutor, continuando a deslizar na estrada simplesmente por efeito da inércia. Na morte houve um reflexo do que já era reflexo no final de vida. Toda a argumentação me vem por hipóteses. Convicção parece que tenho apenas de haver outros reflexos a serem deixados pelo coronavírus. E nenhuma certeza sobre as dúvidas metafísicas propostas no início desta narrativa, que chega ao fim, quem sabe ainda deixando algum rabo de lagartixa…