Quando o Pentecostes acabar é o fim

FREI BENTO DOMINGUES, O.P.

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«O animal corre, e passa, e morre. E é o grande frio. / É o grande frio da noite, é a escuridão. / O pássaro voa, e passa, e morre. E é o grande frio. / É o grande frio da noite, é a escuridão. / O peixe nada, e passa, e morre. / E é o grande frio. / É o grande frio da noite, é a escuridão. / O homem come, e dorme, e morre. E é o grande frio. / É o grande frio da noite, é a escuridão. / Acende-se o céu, apagam-se os olhos, resplandece a estrela. / E aqui em baixo é o frio, e lá no alto é a luz. / Passou o homem, desfez-se a sombra, libertou-se o cativo. / Vem, espírito, vem, por ti chamamos.»[1]

O autor dos Actos dos Apóstolos diz que quando chegou o dia de Pentecostes – isto é, cinquenta dias depois da Páscoa – estavam todos os discípulos reunidos no mesmo lugar. Como disse na crónica do Domingo passado, se nada acontecesse de novo, continuava ali uma Igreja na sua prisão de medo, de gente pasmada, fiéis a um judaísmo tradicional, o judaísmo da fidelidade à letra que mata, e às interpretações infinitas do mesmo. Os Actos falam de algo insólito. Uma rajada de vento e línguas de fogo. O que teria sido aquilo? Estamos perante representações simbólicas.

Segundo uma narrativa antiga, a diversidade de línguas era fruto de uma maldição divina[2]. Era deus que não queria que os povos se entendessem, não fossem eles unirem-se contra ele. Um deus assustado com a criatividade humana.

Os factos até pareciam comprovar essa suspeita. O Pentecostes veio mostrar que era uma suspeita infundada. O que o Espírito de Deus mais deseja é o entendimento de todos os povos, sem anular a originalidade de cada um. Não lhe agrada a unicidade linguística, nem qualquer outra que tente dominar as possibilidades originais de cada povo. A dominação globalizada é a antítese do Espírito do Evangelho. Sempre que na Historia o nome de Cristo foi usado para impor uma cultura ou uma religião, traiu o que há de mais genuíno no Espírito de Pentecostes.

Existem, certamente, cidades que são património da humanidade, a diversos títulos. Entre nós, é comum referir-se a Jerusalém, a Atenas e a Roma como símbolos de uma cultura que soube unir, sem confundir, a religião, a razão e o direito. Sabemos que nunca foi uma história pacífica e linear. Mas aquilo que deve mover os cristãos é o espírito de convergência e não de arrogância. A distinção entre a fé, a razão e o direito deve permitir a sua coabitação pacífica, colaborante. Não existe, para os cristãos, cidades e povos mais santos, uns do que os outros. Podemos e devemos rezar pela paz, mas também trabalhar pelo desenvolvimento da razão e do direito se queremos que a religião, a razão e o direito não sirvam para o que há de mais torto no mundo, a dominação dos mais fortes sobre os mais fracos.

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Já abordámos, em crónicas anteriores, os atrevimentos do Espírito de Cristo. Para Ele, não há povos que são de Deus e outros que estão irremediavelmente perdidos. Por outro lado, como não é um espírito nivelador, suscita uma grande diversidade de carismas. Como não actua só no espaço eclesial, a Igreja, enviada a todo o mundo, – Igreja de saída – tem de estar atenta a tudo o que de bom vai acontecendo na sociedade, dentro e fora das religiões. Ele sopra onde quer, quando quer e como quer, sem pedir licença ao que antigamente estava escrito na Bíblia. Mas a liberdade do Espírito suscita na Igreja o espírito de liberdade, de criatividade. Foi para a liberdade que fostes libertados. Uma Igreja que recusa a inovação em nome do que sempre assim foi, do que está escrito nos textos do Novo Testamento, atraiçoa a sua missão. Como diz Tomás de Aquino, a letra sem Espírito, mesmo a do NT, mata!

Não se trata de recusar o estudo aturado, a exegese em todas as suas formas, dos textos do NT. Não se pode pensar que o Espírito de Cristo esgotou as suas capacidades e as nossas necessidades. Precisamos de rezar como os pigmeus, Vem, espírito, vem, por ti chamamos.

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Jacques Lacan tinha razão quando dizia que o cristianismo ainda não disse a sua última palavra. Com toda a objectividade, não se pode reduzir a sua história àquilo que atraiçoou o espírito do Nazareno. Semelhante a um grande rio, como diz Hans Küng, cuja nascente é das mais modestas, soube adaptar-se sempre a novas paisagens culturais. Sofreu derrotas estrondosas e profundas alterações. Esteve, muitas vezes, na origem de novas transfigurações da história do mundo.

O que é extraordinário é que esse Espírito conseguiu irromper sempre, apesar das falhas pessoais e das instituições, na vida daquelas e daqueles que não se contentaram com palavras e O seguiram na sua vida, de forma nova e inovadora, em fidelidade à graça que o Baptismo celebra e que a Eucaristia alimenta.

A verdade do cristianismo não é um encadeado de ideias ortodoxas para conhecer e debater, um credo, mas uma verdade que faz viver, transfigurar a existência. O que lhe interessa não é a produção de uma história exterior de beleza e cultura. O fruto dos dons do Espírito Santo são as pessoas que consentem que as suas vidas sejam verdadeiras obras de arte, pela alegria que deram a quem precisava de uma mão estendida e de um sorriso.

O cristianismo não disse a última palavra. S. Pedro, no sermão do Pentecostes, mostrou porquê ao lembrar uma profecia que não está esgotada: derramarei o meu Espírito sobre todo o ser vivo. Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos anciãos terão sonhos e os vossos jovens terão visões[3].

O Papa Francisco tem feito um esforço enorme para que esta profecia continue a realizar-se. Uma das coisas em que mais insiste com os jovens é que eles devem ser pessoas criativas e de rebeldia, inconformados com o mundo que temos. Quando se lhes pede para que sejam muito ajuizados, Bergoglio pede-lhes que sejam muito atrevidos. Mas esse atrevimento, em vez de ser dirigido para a repetição da estupidez, seja criador de sonhos. Uma das invenções da juventude é a descoberta da sabedoria dos avós e daqueles que foram arrumados em casas de tristeza. Aconselha-os a irem cantar e dançar com e para quem ainda pode rir e alegrar-se.

Se o Pentecostes é a abertura, a partir do concreto, a todos os mundos, a todos os povos de todas as línguas e culturas, sem esse Espírito ficaremos atados aos projectos de quem pensa que todo o mundo é seu e que precisa de levantar muros físicos, técnicos, económicos e culturais para perpetuar a sua dominação.

in Público, 20. 05. 2018


[1] Pigmeus, África Equatorial (trad. de Herberto Helder)

[2] Gn 1, 9

[3] Act 2