Em seu livro Carta a uma nação cristã, o
brilhante conferencista norte-americano Sam Harris conclui,
desalentadoramente, ser o livro, um "produto do fracasso".
"o fracasso dos numerosos e brilhantes ataques
à religião que vieram antes, o fracasso de nossas escolas em anunciar a
morte de Deus de um modo que cada nova geração possa compreendê-la, o
fracasso da mídia em criticar abjetas certezas religiosas das nossas
figuras públicas, fracassos grandes e pequenos que vêm mantendo quase
todas as sociedades deste planeta imersas nas suas confusões mentais
acerca de Deus e desprezando os que têm confusões diferentes.
Não crentes como eu postam junto a você, mudos
de espanto diante das hordas muçulmanas que gritam slogans pedindo a
morte para países inteiros, habitados por pessoas vivas. Mas também nos
postamos mudos de espanto diante de você - pela maneira como você
nega a realidade tangível, pelo sofrimento que cria ao servir aos seus
mitos religiosos e pelo seu apego a um Deus imaginário. Esta carta foi
uma manifestação desse espanto - e, talvez, de um pouquinho de
esperança." (1)
Embora possa compreender a indignação de
Harris, não quero concordar ipsis litteris com ele.
O fracasso, abordado por Harris, refere-se à
dificuldade em romper-se com barreiras construídas por gerações,
especificamente, neste caso, crenças.
Contudo, lutar contra crenças não é tão
simples. Não bastam inflamados discursos com base na razão. A crença não
dá espaço à razão. Milhares de anos de racional reflexão já teriam
modificado tal cenário.
O que há de indignação nas palavras de Harris é
exatamente o fato de as pessoas deixarem-se enganar por outras, muitas,
desqualificadas moralmente. Lembremos do já ensinado por La Boétie: "é
muito próprio do vulgo, mormente o que pulula nas cidades, desconfiar de
quem o estima e confiar nos que o enganam".(2)
A crença? A crença pensada em si mesma é frágil. Nada
há de particular na crença, excetuando-se o fato de "ser a crença um
sentimento facilmente contagioso exatamente porque lida com paixões".
(3)
A crença nos dá uma falsa sensação de
superioridade, de "estranha" felicidade, além de agregar ao crente um
patológico egocentrismo: eu consegui, Deus me ouviu, Deus me salvou.
Numa das fatídicas chuvas que atingiram o
litoral Norte do Estado de São Paulo, no último verão, lembro-me
de uma senhora de seus setenta e tantos anos que após ter perdido o
esposo e dois filhos vitimados por um deslizamento de terra, declarou a
uma repórter de um canal de televisão, estar agradecida a Deus por ter
salvado sua vida. - O que pensar diante de tal declaração? -
Consideremos, no âmbito do Cristianismo, a
crença no "Plano Divino". No projeto perfeito, sem necessidade de
ajustes.
Os cristãos (mas não só os cristãos) afirmam
que tudo, absolutamente tudo, é plano perfeito de Deus. Nada foi, ou
pode, ser modificado sem o Seu consentimento, Senhor do presente, do
passado e do futuro. E mais que isso, afirmam que tudo o que procede de
Deus é bom e, mesmo algo, sendo aparentemente mau, se proceder de Deus,
torna-se bom. Simples assim. Bem agostiniano.
Contudo, bastou Adão dormir, Eva nascer e,
desgraçadamente, pecar. A partir disso, tudo mudou.
"(...) Em consequência do crime esmagador de
Adão e Eva, que afectou e vai afectar a vida de toda a Humanidade até o
fim dos tempos, e mercê de uma decisão justa e misericordiosa de Nosso
Senhor, a vida terrestre mudou gradual, mas totalmente: apareceu a
morte, a mentira, a guerra, o assassínio, o roubo, a corrupção, o rapto,
o terrorismo, o comércio de armas, drogas, mulheres, crianças e órgãos
humanos, além de um leque de coisas menores, como a mentira, a
dissimulação, a soberba, a vaidade, o orgulho, a gula.
Mas Deus teve, ainda, problemas de outro tipo.
Na realidade, não seria de esperar tanta desobediência, tanto murmúrio,
tanta adoração a deuses pagãos, por parte de um povo, o eleito por Deus,
a quem Ele prometeu, e com quem ele privava tão intimamente, em especial
com os seus chefes. Para além de tantos e tão poderosos milagres
realizados em seu favor, alguns à vista de grandes multidões. Milagres
civis e militares, pois não se pode olvidar esta tão valiosa
característica guerreira do Senhor.
Recordemos que até o prestigiadíssimo Moisés,
revoltado com o seu povo, partiu a versão original das Tábuas da Lei.
Mais uma desilusão.
(...)
Comparando, pois, o projecto inicial de Deus
com a situação real, verificamos nada de nada ter ocorrido de acordo com
a Sua vontade." (4)
Que belo projeto!
Mas, o pecado de Eva vai além. Não pode ser
pensado como uma simples desobediência.
O fato de Eva ter comido do fruto proibido
escancara a primeira relação entre aquele que manda e deve ser
obedecido, o Senhor, e aquele que deve sujeitar-se, o Escravo.
Ressalte-se que sob o ponto de vista cristão, Eva errou por ser
insubmissa ao Senhor, por livre-arbítrio, e mereceu ser castigada e,
com ela, toda a humanidade.
É com base em coisas assim que cristãos
defendem a racionalidade de seu livro de cabeceira.
Em seu último alento, materializado em forma
livro, Últimas Palavras, o declarado ateu inglês Christopher
Hitchens, falecido em 2011, vitimado por um câncer de esôfago, encontrou
na Internet, provavelmente ao acaso, o seguinte "apoio" cristão, quando
a morte já o espreitava na intimidade. Reproduzo apenas as últimas
linhas da "cristã" e "sublime" mensagem, dirigida a Hitchens.
"Ele (Hitchens) vai se contorcer de agonia e
dor e se reduzir a nada, e depois ter uma horrível morte agonizante, e
ENTÃO vem a parte realmente divertida, quando ele é mandado para sempre
para o FOGO DO INFERNO, para ser torturado e queimado." (5)
Quanta solidariedade. Tais "singelas" palavras,
tenho certeza, fariam inveja ao mais desajustado psicopata.
Acredito, contudo, que o bestial missivista não
reflita a comunidade cristã como um todo. Parece-me dispensável dizer.
Acredito também que muitas coisas boas foram, e
continuam a ser feitas por religiosos de todas as denominações. Mas, da
mesma maneira acredito que muitos não religiosos fizeram, e continuam a
fazer, coisas boas; com a diferença de que estes agem apenas
impulsionados pelo desejo de fazer o bem ao próximo, sem a desnecessária
e, diga-se, indigna intenção de serem recompensados num futuro incerto.
A tristeza, a indignação, o sentimento de dever
não cumprido de Harris, que nos serviu de pretexto para esta brevíssima
reflexão, acreditamos - deve sim - manter um "pouquinho de esperança".
Afinal, Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra. (Lc:4,4) o
que certamente inclui: Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça. (Mt:13,9)
Pax
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