José Roberto Baptista

Sub censura

Em seu livro Carta a uma nação cristã, o brilhante conferencista norte-americano Sam Harris conclui, desalentadoramente,  ser o livro, um "produto do fracasso". 

"o fracasso dos numerosos e brilhantes ataques à religião que vieram antes, o fracasso de nossas escolas em anunciar a morte de Deus de um modo que cada nova geração possa compreendê-la, o fracasso da mídia em criticar abjetas certezas religiosas das nossas figuras públicas, fracassos grandes e pequenos que vêm mantendo quase todas as sociedades deste planeta imersas nas suas confusões mentais acerca de Deus e desprezando os que têm confusões diferentes.

Não crentes como eu postam junto a você, mudos de espanto diante das hordas muçulmanas que gritam slogans pedindo a morte para países inteiros, habitados por pessoas vivas. Mas também nos postamos mudos de espanto diante de você - pela maneira como você nega a realidade tangível, pelo sofrimento que cria ao servir aos seus mitos religiosos e pelo seu apego a um Deus imaginário. Esta carta foi uma manifestação desse espanto - e, talvez, de um pouquinho de esperança." (1) 

Embora possa compreender a indignação de Harris, não quero concordar ipsis litteris com ele.

O fracasso, abordado por Harris, refere-se à dificuldade em romper-se com barreiras construídas por gerações, especificamente, neste caso, crenças.

Contudo, lutar contra crenças não é tão simples. Não bastam inflamados discursos com base na razão. A crença não dá espaço à razão. Milhares de anos de racional reflexão já teriam modificado tal cenário.

O que há de indignação nas palavras de Harris é exatamente o fato de as pessoas deixarem-se enganar por outras, muitas, desqualificadas moralmente. Lembremos do já ensinado por La Boétie: "é muito próprio do vulgo, mormente o que pulula nas cidades, desconfiar de quem o estima e confiar nos que o enganam".(2)

A crença? A crença pensada em si mesma é frágil. Nada há de particular na crença, excetuando-se o fato de "ser a crença um  sentimento facilmente contagioso exatamente porque lida com paixões". (3)

A crença nos dá uma falsa sensação de superioridade, de "estranha" felicidade, além de agregar ao crente um patológico egocentrismo: eu consegui, Deus me ouviu, Deus me salvou.

Numa das fatídicas chuvas que atingiram o litoral Norte do Estado de São Paulo, no último verão,  lembro-me de uma senhora de seus setenta e tantos anos que após ter perdido o esposo e dois filhos vitimados por um deslizamento de terra, declarou a uma repórter de um canal de televisão, estar agradecida a Deus por ter salvado sua vida. - O que pensar diante de tal declaração? -

Consideremos, no âmbito  do Cristianismo, a crença no "Plano Divino". No projeto perfeito, sem necessidade de ajustes.

Os cristãos (mas não só os cristãos) afirmam que tudo, absolutamente tudo, é plano perfeito de Deus. Nada foi, ou pode, ser modificado sem o Seu consentimento, Senhor do presente, do passado e do futuro. E mais que isso, afirmam que tudo o que procede de Deus é bom e, mesmo algo, sendo aparentemente mau, se proceder de Deus, torna-se bom. Simples assim. Bem agostiniano.

Contudo, bastou Adão dormir, Eva nascer e, desgraçadamente, pecar. A partir disso, tudo mudou.

"(...) Em consequência do crime esmagador de Adão e Eva, que afectou e vai afectar a vida de toda a Humanidade até o fim dos tempos, e mercê de uma decisão justa e misericordiosa de Nosso Senhor, a vida terrestre mudou gradual, mas totalmente: apareceu a morte, a mentira, a guerra, o assassínio, o roubo, a corrupção, o rapto, o terrorismo, o comércio de armas, drogas, mulheres, crianças e órgãos humanos, além de um leque de coisas menores, como a mentira, a dissimulação, a soberba, a vaidade, o orgulho, a gula.

Mas Deus teve, ainda, problemas de outro tipo. Na realidade, não seria de esperar tanta desobediência, tanto murmúrio, tanta adoração a deuses pagãos, por parte de um povo, o eleito por Deus, a quem Ele prometeu, e com quem ele privava tão intimamente, em especial com os seus chefes. Para além de tantos e tão poderosos milagres realizados em seu favor, alguns à vista de grandes multidões. Milagres civis e militares, pois não se pode olvidar esta tão valiosa característica guerreira do Senhor.

Recordemos que até o prestigiadíssimo Moisés, revoltado com o seu povo, partiu a versão original das Tábuas da Lei.

Mais uma desilusão.

(...)

Comparando, pois, o projecto inicial de Deus com a situação real, verificamos nada de nada ter ocorrido de acordo com a Sua vontade." (4) 

Que belo projeto! 

Mas, o pecado de Eva vai além. Não pode ser pensado como uma simples desobediência.

O fato de Eva ter comido do fruto proibido escancara a primeira relação entre aquele que manda e deve ser obedecido, o Senhor, e aquele que deve sujeitar-se, o Escravo. Ressalte-se que sob o ponto de vista cristão, Eva errou por ser insubmissa ao Senhor,  por livre-arbítrio, e mereceu ser castigada e, com ela, toda a humanidade.

É com base em coisas assim que cristãos defendem a racionalidade de seu livro de cabeceira.

Em seu último alento, materializado em forma livro, Últimas Palavras, o declarado ateu inglês Christopher Hitchens, falecido em 2011, vitimado por um câncer de esôfago, encontrou na Internet, provavelmente ao acaso, o seguinte "apoio" cristão, quando a morte já o espreitava na intimidade. Reproduzo apenas as últimas linhas da "cristã" e "sublime" mensagem, dirigida a Hitchens. 

"Ele (Hitchens) vai se contorcer de agonia e dor e se reduzir a nada, e depois ter uma horrível morte agonizante, e ENTÃO vem a parte realmente divertida, quando ele é mandado para sempre para o FOGO DO INFERNO, para ser torturado e queimado." (5) 

Quanta solidariedade. Tais "singelas" palavras, tenho certeza,  fariam inveja ao mais desajustado psicopata.

Acredito, contudo, que o bestial missivista não reflita a comunidade cristã como um todo. Parece-me dispensável dizer.

Acredito também que muitas coisas boas foram, e continuam a ser feitas por religiosos de todas as denominações. Mas, da mesma maneira acredito que muitos não religiosos fizeram, e continuam a fazer, coisas boas; com a diferença de que estes agem apenas impulsionados pelo desejo de fazer o bem ao próximo, sem a desnecessária e, diga-se, indigna intenção de serem recompensados num futuro incerto.

A tristeza, a indignação, o sentimento de dever não cumprido de Harris, que nos serviu de pretexto para esta brevíssima reflexão, acreditamos - deve sim - manter um "pouquinho de esperança". Afinal, Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra. (Lc:4,4) o que certamente inclui: Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça. (Mt:13,9)

Pax                                                                                           

NOTAS

(1). Harris, Sam. Carta a uma nação cristã. São Paulo : Companhia das Letras, 2007. p. 85-86.

(2). La Boétie, Étienne. Discurso sobre a servidão voluntária. Lisboa : Antígona, 1997. p. 43.

(3). Novaes, Adauto (org.)  A invenção das crenças. in Mutações: a invenção das crenças. São Paulo : Edições SESC SP, 2011. p. 20.

 (4). Figueiredo. Manuel Sousa. Deus, o Homem e a Verdade. Lisboa : Argusnauta, sd. p. 307.

(5). Hitchens, Christopher. Últimas Palavras. São Paulo : Globo, 2012. p. 23-24.

José Roberto Baptista é editor da ARTE-LIVROS Editora. Foi professor universitário e Diretor-Acadêmico de tradicionais instituições de ensino superior em São Paulo. É estudioso da fenomenologia parapsicológica e autor, entre outros, do livro Introdução ao Estudo da Parapsicologia (Arké, 2007), além de já ter escrito vários artigos sobre o tema. Dirigiu o IEP-SP - Instituto de Estudos Psicobiofísicos de São Paulo voltado, exclusivamente, ao estudo e ao ensino da Parapsicologia.