JULIÃO BERNARDES
Considerando
– a experiência individual acumulada ao longo da vida de cada um de nós, mormente a que, bem lá no fundo, rejeita as bases em que tem assentado a vivência social suportada até ao momento,
– a experiência recolhida no 8º Curso de Gestão para Dirigentes e Quadros
(que é, afinal, o 1º), curso que decorreu de 28FEV94 a 31JUL94, no Centro de For- mação Profissional da Venda Nova
Tendo em vista
– não perder esse Capital acumulado, fonte do êxito a alcançar pelas gerações vindouras no campo da satisfação individual total, expressa pela capacidade de rejeitar, enfim liberta
– que o Investimento é relativamente pequeno face ao imenso Lucro a haver – o enriquecimento pessoal enfim conseguido, pelo desenvolvimento acelerado das quali- dades que, na mulher e no homem, são profundamente humanas
– que o Risco de não obtenção de resultados é mínimo – quem rejeita atinge sempre o seu objectivo, não aceitar
– que o Prazo de Recuperação do Capital é imediato – não se aceita, logo não se obtém
Proponho
Que se constitua desde já a LIXADOS (Liga dos Independentes Xilóforos Activos Desempregados Obedientes e Submissos), com o seguinte
ESTATUTO
1º. LIGAR, isto é, tratar com respeito todos os desempregados;
2º. Desenvolver no desempregado a capacidade de se manter livre i INDEPENDENTE,
para que possa optar correctamente pelo que na vida o satisfaz fazer, libertando-o do estresse;
3º. Criar no desempregado o espírito de XILÓFORO (literalmente o o sacerdote hebreu que acendia e mantinha aceso o fogo sagrado), acendendo e mantendo nele a chama interior que o levará a só fazer o que lhe der na real gana;
4º. Ensinar o desempregado a manter-se ACTIVO, pelo preenchimento, até à exaustão
dos seus tempos livres – dormirá bem todas as noites, sem necessidade de remédios;
5º. Incentivar a que o desempregado se mantenha DESEMPREGADO, para que, não estando espartilhado entre horários e patrão, reaprenda a ocupar positivamente todo o seu tempo, de forma a que, livre de subserviências, volte a rir daquilo a que acha graça e só disso, sem obrigação do riso de conveniência tão dissonante e tão contrário à plenitude que cada pessoa pretende atingir;
6º. Ensinar o desempregado a manter-se OBEDIENTE, primeiro que tudo à vida, da qual terá por obrigação descobrir o valor intrínseco e verdadeiro; depois, ao amor, a si próprio e aos outros, estes que passará a olhar na sua dimensão humana real:
ou de desempregados a quem, contra todos os conselhos, se deve lamentar prosseguir no seu caminho de alheios à LIXADOS, ou de desempregados a quem, abertos já os olhos à verdadeira realidade da vida, se deve estimular a aprendizagem e a aplicação dos princípios aqui expressos;
7º. Despertar no desempregado o desejo de adquirir a qualidade de SUBMISSO – já que a vida o fez desempregado, essa condição aceitar sem indignação ou ressentimento, inveja ou revolta, antes como um bem a preservar, pois não consta que haja desempregado a morrer das doenças que mais afligem a humanidade, e que resultam, quase todas, de excessos alimentares e de trabalho;
8º. Na prática do mais virtuoso princípio de solidariedade, cada LIXADO deve manter-se vigilante sobre cada um dos outros Lixados e sobre si próprio (neste caso deixa de ser solidário e passa a considerar-se solitário) por forma a manter vivo o querer subjacente à condição de Lixado, e que consiste em dominar a vontade de trabalhar, quando se manifestem aqueles impulsos que, afinal, nos foram erradamente inculcados em anos e anos de mau encaminhamento familiar e social;
9º. A LIXADOS extinguir-se-á, naturalmente, quando todas as pessoas do planeta atingirem a condição de LIXADO, uma vez que quem atinge esta situação não aceitará por certo sair dela, e, atingido o objectivo para que foi criada, a LIXADOS deixará de ter razão de existir.
REGULAMENTO INTERNO
1º. Ninguém poderá sofrer qualquer tipo de descriminação, mesmo os que façam gosto em ocupar o seu tempo sem nada fazer;
2º. Temporariamente aceitar-se-ão como membros da LIXADOS pessoas que se vejam compelidas, por necessidades prementes de subsistência, a viver com o estatuto revoltante de empregados, pois se sabe que a isso são conduzidas por uma sociedade que ainda não soube criar as condições para acabar com esse flagelo, essa condenação que contraria a condição humana com que nascemos e que alguns continuam a possuir pela vida fora, apesar de continuamente tentados, pela sociedade, a perdê-la, em nome de aquisição de regalias que a contrariam;
3º. Haverá punição exemplar, a determinar caso a caso, a quem faltar às reuniões da LIXADOS que aqui vão ficar aprovadas, a realizar no local escolhido ou em local previamente combinado e do conhecimento de todos, nos seguintes dias:
– dias 30 dos meses com 30 dias (Abril, Junho, Setembro e Novembro; excluem-se os que têm 31, uma vez que, apesar de terem também 30, nos baralham a sistematização da memorização e um LIXADO deve excluir pormenores que possam vir a atrapalhar o seu dia-a-dia mental;
– dia 28 (ou 29) de mês de Fevereiro;
4º. O dia 28 de Fevereiro passa a comemorar-se anualmente como DIA DOS LIXADOS, uma vez que foi no dia 28 de Fevereiro deste ano que se iniciou o curso que teve a felicidade de nos juntar.
Atente-se o facto, significativo, de em cada 4 anos haver um ano em que não se comemora o aniversário da LIXADOS. Não se poderia ter melhor indicação directa, e por todos entendida, da especial importância para a humanidade do nascimento desta Liga em data tão assinalada;
5º. Nas reuniões, aconselha-se que cada LIXADO mastigue e torne a mastigar todos os elementos comestíveis fornecidos, por forma a reduzi-los à sua expressão mais simples, o que permitirá que esses elementos sejam digeridos rapidamente e sem qualquer trabalho suplementar dos órgãos intervenientes, facilitando a sua absorção total, conseguindo-se, por esse modo, a plena satisfação, o que constitui, como se sabe, o objectivo de cada reunião.
CONSIDERAÇÃO FINAL
Tendo sido convidados para este acto solene Sua Excelência o Senhor Presidente da República e Sua Excelência o Senhor Primeiro Ministro, os mesmos não se dignaram comparecer nem fazer-se representar, sabendo-se que consideram esta Liga subversiva e contrária aos princípios da lei e da ordem estabelecidas.
Propõe-se que a LIXADOS lhes perdoe o não terem atingido o interesse nacional e de utilidade pública desta Liga, o qual certamente será dentro em breve reconhecido como interesse mundial.
Todo o arrazoado constante deste documento foi lido e aprovado por todos os intervenientes presentes, que de seguida o assinam, se esse trabalho quiserem ter, dando autenticidade ao mesmo.
A proposta constante desta consideração final foi aprovada por unanimidade e aclamação; foi sugerida uma ida ao programa “Perdoa-me”, da SIC. Tendo ficado de se estudar em pormenor essa hipótese, o que fará, como prémio, o que vier a ser o LIXADO 1.000.000.
(No documento original seguem-se as assinaturas dos 14 LIXADOS que o assinaram)
Discurso para excitação dos LIXADOS:
SET94
Lixadas!… Lixados!…
Estamos aqui reunidos
cada vez mais convencidos
de que, para o nosso meio
ser desempregado é feio,
nos amarra e nos limita
e é fonte de desdita.
Que triste sociedade
que faz do luxo e vaidade
o ideal a atingir
e passa a vida a fingir!
Finge ser mais importante
o dono de tal semblante,
sisudo, de ocasião,
ou um outro, de cifrão,
que tem na banca dourada
cofre de conta calada
ganha não se sabe como;
ou outro, feito mordomo,
guindado a um qualquer cargo
e que mais cheio e mais largo
se sente por tal motivo.
Fingir virou adjectivo.
Por isso quem o não sabe
não tem lugar onde cabe.
Na boca da maioria
– que há-de aprender um dia
que trabalhar é um frete –
não ter emprego é ferrete
pior que a escravidão,
vida pior que a de cão
que ganha a sua comida
vivendo à boa vida
sem com nada se ralar…
Esquece, bem a contento,
que para seu cumprimento
o homem nasceu pra amar,
e que trabalho é amarra
com que a vida nos agarra,
pouco tempo nos deixando
pra ir vivendo e amando.
Há sempre quem bem se amanhe
e para si abocanhe
o que, sem se diminuir,
podia distribuir
pra matar ao mundo a fome
– que muita gente consome
sem qualquer finalidade
vivendo a frivolidade
à grande, à tripa-forra.
Vai até onde a pachorra?!
Já sei, dirão que é loucura,
pois a actual conjuntura
– seja ela a que for –
é o bem vindo motor
de um futuro mais rico.
Eu também o verifico!
Só que há sempre mais gente
a viver como indigente,
enquanto outros, sem pejo,
na vida arranjam ensejo
para juntar, com usura,
de modo contranatura,
já que, a morte nos prova,
nada levarão prá cova.
Quanto mais cresce este lado,
mais cresce o desempregado.
Neste tempo fratricida
– por isso mesmo suicida –
dá-se valor ao dinheiro,
ao luxo e ao poleiro,
que têm a primazia,
e a vida é uma quantia
sem interesse nem valor.
Vale mais o desertor,
de posição, bem falante,
que quem porfia, constante,
nos valores morais e éticos.
E serão vozes de heréticos
as que se ergam, com Dono,
para dar fé do que abono!
Com o maior despudor
pegam em qualquer gestor
que degradou património
e lhe darão, com encómio,
ir gerir outro qualquer.
Mais barato era fazer
justiça ao desempregado,
dar-lhe um naco, um bocado
do muito que, ao falir
se anda a repartir.
Agora vão para a TAP
– onde não houve quem tape
o prejuízo imenso –
a fundo perdido, penso,
180 milhões.
São muitos, muitos tostões…
Na minha opinião
– que não vale um tostão –
nada vai adiantar:
vai-se o buraco alargar
e o pilim que se gasta
era talvez o que basta
para criar mais riqueza
numa qualquer outra empresa
que dê saldo positivo
e mantenha o País vivo
gerando estáveis empregos;
mas os governos são cegos
e os partidos também
porque lhe dizem amém.
Qual é o papel então
do modesto cidadão,
ele sim contribuinte,
neste viver de requinte?
Ir assistindo às falências
Quase todas indecências?!
A Europa da riqueza…
A Europa da pobreza!
Fala-se na CEE
e não se sabe o que é.
Cria mais desigualdade
com menos humanidade.
A Europa do dinheiro
a pôr Deus no mealheiro.
A dar-se à avidez
e a perder lucidez,
a esquecer repartir,
que é meio de conseguir
felicidade e paz.
Mas pra eles tanto faz!…
Só pensam no deus-cifrão
que lhes dá a relação
com o gozo desmedido
onde nada faz sentido;
comem do bom, do melhor,
e vivem no esplendor;
os outros?! Roam os ossos
e que chupem os caroços;
África?! Fica distante
e só é estimulante
p’lo que dela se retome;
morre-se à sede e à fome?!
Nem com isso os desarmas
pois vendem milhões em armas
e o que mais lhes importa
é o valor que se exporta.
Mas um dia há-de acabar
todo este aldrabar.
Ser LIXADO é entender
que viver é aprender
e sentir e aceitar,
mas também é rejeitar
quando aquilo que se ajeita
humanidade desfeita;
que o valor do tostão
é no próprio coração
que se deve encontrar,
não no que pode comprar.
No que aos outros dará
é que a Alma se achará.
Por isso quão mais LIXADOS
menos somos enganados.
E se houver ponta de sonho
nem um pouco eu me oponho,
que sonhar é o que resta
quando o que existe não presta.
Os homens que nos dirigem,
seja qual for a origem,
hão-de ter a condição
de sentir a comunhão
com os outros, seus iguais,
nas coisas simples, banais.
Não compliquem o que É!
Que o pagode, o Zé,
não vivam a mascarar
e a tentar aldrabar;
que se deixem de retórica,
por vezes fantasmagórica,
só para justificar
sua visão singular
que os leva a decidir
de modo a agredir
o que é o nosso sentir,
passando o tempo a fugir
às questões a resolver
como seja o comer,
a casa, o agasalho,
haja ou não haja trabalho.
Igual preço tem nascer
e custa o mesmo viver.
A riqueza que há no mundo,
no fundo, bem lá no fundo,
a todos deve uma parte.
Pois então a vera arte
está em fazê-la chegar
a todo e qualquer lugar
onde haja uma pessoa.
O resto… é tudo loa
contada com voz dengosa
mas muito, muito gulosa.
E porque a hora é tardia
e ouvir-me faz asia,
vamos ficar por aqui,
que bastante já bati.
Haverá mais a dizer
mas terei de me conter
e evitar aos que estão
alguma indigestão.
Uma última tarefa
a bem de toda a catrefa:
sabendo dever amá-los,
mas longe de respeitá-los,
perdoemos-lh’ os pecados,
caros e caras LIXADOS.
Assim faz o bom cristão
mesmo cheio de aflição.
06SET94/30SET94
Julião Bernardes