Profetas

 

RODRIGO LESTE


Rodrigo Leste é ator, escritor e produtor cultural. Publicou o livro de poemas A Infernização do Paraíso e lança agora o livro de contos Monstro da Perfeição. Co-editou o jornal alternativo “O Vapor” e a revista “Circus”. Nos palcos desde 1974, já montou, produziu e encenou cerca de quarenta espetáculos. Produz e apresenta o Web-Programa Radiopoemas.


Pregar nunca foi o mais difícil. Não! Os pulmões vão sendo adestrados, a garganta se acostuma com o esforço e as palavras começam a jorrar. Quanto menos se pensa, mais fácil torna-se o trabalho. A cantilena é quase sempre a mesma: apontar pecados, lançar ameaças de pestes horríveis, içar lagos cheios de culpas, erguer vulcões de lava ardente sobre os que não se arrependerem. Enfim: contrapor as mil artimanhas do diabo à infinita bondade de Deus.

Nossos profetas não são, em geral, bem apessoados. Pelo contrário, costumam ser tipos de traços grosseiros, muitas vezes estropiados – quando não verdadeiramente aleijados. A poeira na roupa e nos cabelos desgrenhados faz parte da expectativa que se criou em torno da figura desses “emissários” de Deus. Um verdadeiro profeta não deve viver debaixo de teto como os outros homens; sua morada são as trilhas e os caminhos. Deve cruzar campos e desertos com o propósito de fazer sua voz alcançar os ouvidos de todos, não importando a distância que tenha que percorrer.

Eu mesmo tenho vagado pelos recantos mais sombrios, encruzilhadas cheias de perigos e os mais desolados fins de mundo. A maior parte do tempo, caminho sozinho. Às vezes surge uma turba de fanáticos, daqueles que correm de um lado para o outro se autoflagelando e clamando por milagres imediatos. Caminho algum tempo entre eles para distrair meu coração de um abatimento que me deixa prostrado e me faz sentir cada vez mais insignificante diante do majestoso enigma da existência. Disfarçado entre os fanáticos, ouço e vejo outros profetas e comparo o estilo deles ao meu. Na maior parte dos casos, acho-os ridículos e temo o meu próprio papel.

Hoje, perambulando como sempre, vim dar numa aldeia da qual nunca ouvi falar. Fui trazido por um ferreiro à casa de um rico vendedor de camelos. Aqui se realiza, em seus bem cuidados jardins, a festa da celebração do casamento de uma de suas filhas com um jovem, filho do chefe de uma tribo muito importante da região. Músicos, bailarinas, engolidores de fogo, encantadores de serpentes, artistas diversos se apresentam em meio a muita comida e bebida. Sinto estranhos presságios, mas o homem que aqui me trouxe, o ferreiro de um olho só, me puxa pelo braço para todos os lados.

A festa é rica, a comida não para de ser servida, bem como o vinho. Os artistas capricham nos seus números. Surgem, de dentro da casa, alguns escravos trazendo uma senhora numa liteira. Fico logo sabendo que é a avó da noiva. A mulher é toda encarquilhada e sofre de paralisia nas pernas. Disseram-me que há muitos anos não consegue andar. Quase sufocada por tantos colares e joias, a velha tem os olhos duros e maus como os de uma serpente. A música para. A liteira com a velha é colocada bem na minha frente. O dono da casa, o gordo vendedor de camelos, aproxima-se e fala sem me olhar nos olhos: “Este homem” — aponta para o ferreiro que me tem seguro pelo braço — “disse que você é um mago, um santo do deserto. Ele te trouxe à minha casa no dia das bodas de minha filha, com a promessa de um milagre: fazer minha mãe voltar a andar. Pois então” — continuou a falar enquanto cada vez mais gente se agrupava ao nosso redor — “faça minha mãe andar novamente que a minha recompensa não conhecerá limites!”

Eu fiquei atônito, completamente embasbacado. Jamais me apresentara como santo, como alguém capaz de fazer milagres. Conheço meus limites, não passo de um arremedo de profeta, um cuspidor de palavras que foge dos locais mais habitados e vagueia por lugares distantes e perdidos. Meus dons limitam-se a arregalar os olhos e vomitar uma meia dúzia de ameaças, revirar os dedos e mãos como garras e, por fim, gritar como se sofresse um ataque qualquer. Para arrematar a cena, eu puxo os meus próprios cabelos e simulo entrar numa letargia quase absoluta. Na primeira oportunidade que surge, sumo, levando sempre que possível um pouco do leite das cabras, um tanto de damascos e tâmaras ou, pelo menos, algum óleo de oliva de suas cozinhas, para massagear os meus pés cansados.

Fazer milagres?! Como eu posso dizer a eles que isso não é comigo? Talvez o nazareno, o carpinteiro… Mas eu?!

Meu silêncio é gritante. Os olhos maus da velha paralítica, deitada na liteira, me espetam. As veias do pescoço do gordo pai da noiva engrossam e latejam a olhos vistos, enquanto a mão calosa do homem de um olho só aperta cada vez mais o meu braço. Tenho que arrumar uma saída, corro o sério risco do meu sangue servir para tornar mais vermelhas as rosas do jardim. Mas o que fazer? Ergo minha fronte aos céus. Respiro profundamente. Desprego meus braços do flanco como se fossem asas; o ferreiro arregala os olhos e, momentaneamente, me solta. Junto as palmas de minhas mãos sobre a cabeça, solto um urro e aponto as mãos unidas na direção da velha, falo três ou quatro palavras que escutei um sujeito falar ao fazer uma falsa mágica no mercado. A velha começa a arfar, revira os olhos. A multidão, em volta, me lança um olhar de admiração. O dono da festa aproxima-se da liteira e oferece um braço para que a mulher possa se erguer.  (Essa velha não tem forças nem para pentear seus próprios cabelos!) — penso enquanto roço os pés descalços sobre a poeira do chão.                                                                                                                     

Auxiliado pelos escravos, o vendedor de camelos tenta manter a velha em pé, mas as pernas dela estão mortas há muito tempo. A mão do ferreiro torna a se fechar contra o meu braço, agora com a raiva de três tigres. As vaias dirigidas a mim surgem de vários pontos, acompanhadas de frutas e tigelas atiradas com toda a força. O pai da noiva aproxima-se e lança uma sonora cusparada bem no meio da minha cara. Sou um cordeiro acossado por leões.

A cuspida do dono da casa foi a senha para o início da solenidade do meu sacrifício. Fui puxado pelo ferreiro para fora do jardim. Todos abandonaram a festa, seguindo em cortejo para o lugar onde, certamente, são realizados os apedrejamentos na aldeia. A primeira pedra passa raspando minha têmpora; sinto o vento produzido por ela eriçar meus cabelos. Instintivamente levanto os braços e as mãos para proteger a cabeça, mas a segunda pedrada me atinge no meio do peito, quase me derrubando. Percebo que quem atirou esta pedra foi um sujeito monstruoso. Ouvi alguém chamá-lo de Isaac, um brutamontes capaz de levantar sozinho um boi do chão. Com seu sorriso de cacos de dentes pretos e podres, Isaac comemora sua pontaria e força com um colega, o anão, que tem orelhas de abano e o nariz vermelho como uma beterraba.

A pedrada de Isaac me provocou uma crise de tosse; senti falta de ar e uma violenta ardência nos pulmões. Acho que ele conseguiu me quebrar uma costela, o desgraçado! As mulheres e crianças, ainda que atirem pedras menores, são mais impiedosas que os homens. Suas ofensas são mais cruéis, mais humilhantes, suas expressões são da mais profunda selvageria. Têm a volúpia de aves de rapina quando agarram suas presas. Estou no meio de um círculo, e pedras é que não faltam nesse maldito lugar!

Em meio às pedradas, me veio à lembrança uma cena macabra que assisti, quase passei mal com aquilo… Foi na praça de uma aldeia perto de Nazaré, onde vi a gente do lugar matar um urso. O animal foi amarrado em um poste e picado com golpes de lança. O corpo ficou logo banhado de sangue. Trouxeram então, dentro de umas gaiolas de madeira, quatro cachorros famintos. As gaiolas foram abertas e, enlouquecidos, os cães se atiraram contra o pobre bicho. Ainda que estivesse preso por uma corrente e enfraquecido pela perda de sangue, o urso se protegeu como pôde. Matou dois daqueles cachorros com suas poderosas patadas, arrancou a orelha de um outro, mas não conseguiu resistir a tantos ataques. Foi desabando lentamente, cerrou os olhos e parou de lutar. Os cães então abriram com os dentes sua barriga e comeram suas entranhas. A multidão assistia aquilo com indisfarçável prazer. Afastei-me rapidamente do lugar com o mau presságio de que um dia, talvez, no lugar do urso, um homem poderia estar acorrentado ao poste.

As pedras são grandes, cada vez maiores, e a mira deles está melhorando. Todo o meu corpo dói. O sangue brota de várias partes; percebo que isto excita os cachorros que também fazem parte do círculo dos que me atacam. Penso de novo no urso. Tento me concentrar nos poucos raios de sol que conseguem furar o bloqueio das nuvens carregadas no céu. Penso que logo vai chover forte. Ao cair no chão, meus olhos se encontram com os de uma lagartixa; ela me olha por alguns instantes e depois se esconde, assustada, atrás de uma pedra. Juro que ela sorriu para mim…