RUY VENTURA
Profanação, apenas profanação
(ou talvez o “mistério da iniquidade”)
Para entendermos com ponderação o que se tem passado no Panteão Nacional de Santa Engrácia, bem como noutros lugares altos do nosso país, onde a memória de Portugal deveria ser salvaguardada, temos de recordar um conceito que vai desaparecendo das nossas mentes, ainda que vá permanecendo nos dicionários: profanação. Para que seja possível tal exercício mental, temos de conceber que no nosso mundo há (ou deveria haver) espaços sagrados, objectos consagrados, ritos sacros que fazem com que o tempo não seja todo igual, com que haja locais distintos, com que os utensílios não tenham todos o mesmo fim quotidiano e descartável e haja alguns destinados a fins mais altos. Quem estabelece a distinção? A comunidade, seja ela de crentes, de militantes ou de compatriotas. O que vem sucedendo neste nosso tempo perigosamente instável e iníquo é sintoma da erosão desta separação entre o sagrado e o profano, para usar o velho título de uma grande antropóloga, em grande parte promovida pelos nossos semelhantes que têm no lucro o seu único objecto de veneração.
Mesmo entre aqueles que deveriam exercer a salvaguarda dessa distinção (políticos, clérigos, artistas, líderes comunitários…), tornou-se corrente aceitar a profanação como algo normal, concebível e até aceitável. No fundo, quem assim age já não consegue sentir a diferença. Para quem assim pensa (se pensa), já não há sagrado nem profano. Tudo tem o mesmo valor – e esse valor reduz-se frequentemente à valia que lhe confere a utilidade e/ou ao rendimento que pode gerar. Para quem assim pensa (se pensa), qualquer espaço, qualquer objecto ou qualquer rito só vale a pena se gerar dinheiro (se “fomentar a economia”, dizem) ou se produzir espectáculo com adesão massiva de gente que possa pagar (“fomentando a economia”, não se cansam de repetir) ou possa reproduzir comportamentos desejáveis, sobretudo ao nível do consumo ou do conformismo político, social e cultural. A isso se chama, todavia, alheamento ou apoucamento da dignidade da pessoa. Mas quem se lembra de tal afirmar?
Neste quadro, não devemos estranhar que a direcção de um lugar onde se guarda a memória dos maiores de um país ache normal que naquele monumento se dêem jantares bem pagos, onde os comensais se banquetearão alarvemente, sem qualquer espécie de respeito por tudo quanto os rodeia. Não devemos estranhar outros comportamentos semelhantes que, de maneira idêntica ou falsamente distinta, se vão e irão reproduzindo por aqui e por ali, perante o sorriso aparvalhado ou mefistofélico de alguns políticos, clérigos, empresários, académicos, artistas, curadores, programadores, animadores ou simples espectadores. “Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem”, escreveu Pessoa. Num mundo assim, coisa boa não deveremos esperar. E, mesmo que nos indignemos, devemos evitar o espanto, porque fenómenos como os jantares no Panteão são apenas pequenos sintomas de um mundo às avessas, onde vamos assistindo, tantas vezes perdidos, ao “mistério da iniquidade”.
Tenhamos todavia a coragem de ser novos beneditinos, resguardando e salvaguardando o que for possível salvar deste mundo sem norte. Valerá decerto a pena, ainda que tal nos traga o veneno alheio, nas diversas espécies que abundam por aí.
PS – Será bom alguém lembrar às distraídas sumidades da gerência do país que Portugal tem vários panteões: Santa Cruz de Coimbra, Batalha, Jerónimos (claustro e igreja) e S. Vicente de Fora. Não vá o demo lembrar-se de lá servir jantaradas um dia destes… e termos de assistir, envergonhados, à triste cena de umas centenas de tipos manducando, quem sabe, enguias fritas ou sarrabulho ao lado dos túmulos de Fernando Pessoa, de Alexandre Herculano ou de outra figura grada da nossa História. Quando os gerentes da pátria têm como única bitola de valor o lucro e a utilidade, nunca se sabe…