1. Cultura é o que fazemos e desfazemos. A arte é uma pindèriquice dos diabos.
2. A pintura parece-se com uma linguagem mas é o menos importante nela.
3. Desde há muito tempo que quer a vida quer a morte são completamente artísticas.
4. A diferença entre paisagem e reprodução esbateu-se de tal modo que confundimos as reproduções com as paisagens e as paisagens com as reproduções... com a diferença do cheiro.
5. O campo é menos a paisagem do que o modo como se respira e caminha.
6. Estas questões são já arte. A arte questionou-se tanto que todas as questões se tornaram artísticas. Aliás, todo o mundo (mesmo a parte do universo mais inacessível), há já muito tempo que é assumidamente arte, embora de um modo pouco deliberado. A dificuldade está em algo não ser involuntariamente arte.
7. Do mesmo modo os especialistas, aqueles nabos que decidem o que pode passar ou não por arte, estão quase todos de acordo: não só consideram que tudo pode ser arte, como estão de acordo quanto ao facto de que tudo já é definitivamente, e há algum tempo arte.
8. Para uns o que conta em arte são as intenções, a pastilha intelectual, com o seu fundo pequeno-burguês. Para outros o que interessa é o não-intencional. Nem a atitude faz a diferença. A pintura dos macacos e das crianças é tão boa ou melhor quanto as instalações pretensiosas de Kosuth.
9. O nosso passado, mesmo o mais soberbamente clássico, tem um ar cada vez mais pop. Sócrates foi um filósofo ou um futebolista?
10. Toda a expressão artística provoca afectos. Não sei se esses afectos afectam significativamente.
11. Quando documentamos sistematicamente as nossas actividades mais desconcertantes elas ganham uma patina museológica.
12. Já não vale a pena questionar a natureza da percepção. O que é certo é que ela até pode ser construída mas os seus mecanismos biológicos continuam-se a agitar e a focar e a redefinir. O que podemos mudar na percepção são os preconceitos, que se poderão tornar, eventualmente, noutros preconceitos. Qualquer processo revolucionário é apenas uma ligeira mudança na forma como se gerem os preconceitos. Deste modo não passam de modas aceleradas, sob a forma de irónicos produtos de consumo.
13. As revoluções acontecem quando a coisa se torna muito normal e repetitiva. As revoluções são violentas, tão violentas quanto mais duradouro o período da «normalidade».
14. Há a possibilidade de trotskisticamente estarmos há já muito tempo em revolução permanente. Haverá sempre acontecimentos que põe em causa as nossas sociedades pretensamente democratas. O capitalismo será abanado. Mas quem sofre as consequências são sempre os mais miseráveis (quem se fode realmente são os gajos do terceiro-mundo).
15. Há, no entanto, uma tendência para o aumento de complexidade que consiste em dois factos muito simples; o aumento do ruído e o aumento de informação, a que correspondem, como todos sabem, aumentos significativos de organização, desorganização, caos, ordem, desordem, etc.
16. George Steiner observou que há na história da música uma progressão crescente no uso do ruído. A versão é simplificadora. Mesmo alguns dos compositores mais ruidosos produziram algumas das peças musicais mais silenciosas. O que aumentou no mundo foi o ruído de fundo. Mas por vezes os ruídos naturais são mais perturbantes que os ruídos ditos artificiais.
17. As obras de arte não se tornaram, historicamente, nem mais interessantes nem mais complexas. O que não serve para julgar o passado ou o presente como melhor ou pior.
18. Há uma tendência crescente para a humorização na prática artística, mesmo das coisas mais trágicas ou políticas.
19. A quantidade de informação torna qualquer selecção canónica um empreendimento desmesurado. A memória individual é demasiado pequena para açambarcar e digerir adequadamente os grandes clássicos de todas as culturas que estão à nossa disposição. Por outro lado o nosso cérebro também tem um apetite frequente pelos não-clássicos, pelas pequenas extravagâncias e até mesmo pelas abomináveis diferenças.
20. A «alta cultura» é preferível à «baixa cultura», mas a baixa cultura consegue atingir momentos de intensidade, êxtase, exaltação, etc., que a alta cultura parece impotente para produzir.
21. Porque é que há hoje tão poucas obras-primas? Perguntou já há algumas décadas um artista. Outro, da mesma época, respondeu-nos que os processos são mais importantes que as obras-primas. Será que alguém se dá ao luxo de «fabricar» obras-primas? Será que os processos não estão subjacentes às obras-primas? Será que a arte não se questiona desde o início?
22. Que questões é que a arte se põe? É mera representação? Desejo domesticado? Ilusão? Alienação? Desmistificação? Incitadora ao êxtase? Acto gratuito? Comichão? Prostituição? Veneração? Dedicação? Tédio? Mentira? Puro jogo? Perpetuação? Medo da morte? Análise dos seus mecanismos? etc..
23. Uma arte contra a sensibilidade, a expressão, ou a individualidade é uma arte contra a inteligência, pelo totalitarismo, e pela morte. A insistência clássica no mínimo de expressividade, biografia, etc., é um sintoma do desejo de mumificação.
24. Na cultura tecnológica há algo de mastabismo, de espelhismo para cadáveres vivos. No mundo da cultura tecnológica também há uma fresca efervescência.
25. As verdades ditas místicas (todas as verdades terão um fundo místico?) apaziguam os artistas da sua impotência comunicacional.
26. Uma boa mentira artística consola mais do que a melhor das verdades místicas.
27. Richter, tal como outros (Stockauhsen), viu nos atentados do 11 de Setembro uma obra-prima artística, o que à luz da arte, tal como nela vivemos, é não só legítimo como recomendável. A partir deste reconhecimento, todos os massacres, inclusive o famoso holocausto, podem ser entendidos como obras-primas artísticas. Aliás, duvido que Hitler não tenha concebido o holocausto como uma meticulosamente encenada obra-prima de arte. Hitler seria mais facilmente um artista conceptual do que um degenerado pintor expressionista. O Mein Kampf dá conta da sua sofisticada intencionalidade, o que o distingue da maioria dos tiranos acéfalos e há nele tanto uma estétização da política quanto uma politização da arte. A frase de Benjamin de que os marxistas fazem uma coisa e os nazis fizeram outra também é uma mistificação. Uma implica a outra - a politização da arte é, de um ponto de vista conceptual, já uma estetização da política, e vice-versa.
28. A valorização da arte como assassinato ou suicídio é desprezível. Do mesmo modo um escritor, artista ou filósofo que matam ou se suicidam (a não ser em casos extremos de uma morte para breve que se adivinha dolorosa) não me parecem, à partida recomendáveis. No suicídio a questão de autoria é relevante.
29. Mesmo apesar destas observações sempre foi óbvio que a arte, tal como tudo, é política. A minha militância é pela delicadeza, a post-paradoxalidade, o entusiasmo. A de Hitler e dos terroristas, assim como tudo o que apela à radicalização, é pela violência, pelas opiniões contundentes (dogmas), pelo fanatismo. Prefiro uma obra delicodoce, como um quadro foleiro de Boucher às obras de Bacon, Richter ou dos seus sucedâneos no domínio do cinema, vídeo, instalação, etc.
30. Ad Reinhardt fez as últimas pinturas que qualquer pessoa poderia (do seu ponto de vista) fazer. Também já foram escritas as questões mais relevantes que poderiam ter sido escritas, assim como as mais perfeitas instalações, site-specifics, fotografias, performances, etc. Há no entanto um sentimento dominante que sobra a tudo isto que é a vontade singular de resposta. Cada ser humano não se deve deixar aniquilar pelo carácter monumental destas encenações ou pela perfeição destes momentos. Todos nós temos o dever, e a necessidade, de continuar a responder, ainda que de um modo mais imperfeito (mas mais rico) às solicitações mundanas e canónicas das artes e das vidas.
31. Já não há a necessidade de fazer o que quer que seja de último ou de definitivo. Todos os materiais podem ser invocados para expressar um desejo de vivência mais rica. Jonh Cage citava alguém assim: «o que necessitamos é de um ecletismo radical» (o que é um paradoxo). Eu penso exactamente assim.
32. Uma experiência inter-pessoal, em rede, de diálogo ou discórdia, é mais rica do que a afirmação estetizante de uma personalidade. A prática de arte só cumpre as suas utopias sociais no momento em que há sociabilização artística e que se diluem as fronteiras entre os diversos agentes especializados da arte. Na comunidade da arte todos devem ser artistas-críticos-museólogos-curators, etc. Esta asserção não é nova, mas põe a claro que o acto de delegação das competências é uma traição na atitude. A partir do momento em que a arte se pode fazer com meras atitudes ou com/pela escrita, toda a crítica que não seja obra de arte é no mínimo suspeita. Desde há muito que vejo com desconfiança os curators e críticos supostamente radicais que não devêm artistas, assim como os artistas radicais que continuam as suas caminhadas com as muletas dos críticos. Não há, à luz da arte actual, argumentos significativos para tais panhonhices. A única justificação para tal persistência de práticas é o prazer do poder (o crítico torna-se, pela sua posição mais menos vulnerável), a incapacidade de ser autenticamente criativo, e a autocomplacência no parasitismo. Ou a preguiça...
33. Compreendo que um artista delegue num agente ou num galerista a repugnante actividade da venda e divulgação do seu trabalho, coisa com a qual ele não deve perder tempo. Mas perturba-me mais a ideia de que alguém mistifique verbalmente a intencionalidade de uma obra. Será que a obra se torna mais clara? Mais importante? Será que o artista não tem os instrumentos adequados para exprimir as implicações que espera do seu trabalho? Será que o artista quer ser surpreendido através de um exercício de retórica? Ou trata-se de mera legitimação, isto é, poder e aldrabice?
34. É importante que se escreva e se problematize as artes alheias, mas isso deve corresponder mais a uma necessidade pessoal de interrelacionamento e meditação (ou mesmo a uma replicação por admiração ou simpatia) do que a mero mercenarismo e gestão de interesses duvidosos.
35. Ad Reinhardt dizia, com um esplendor hegueliano: «fine art can only be defined as exclusive, negative, absolute and timeless». Eu diria precisamente o contrário: a grande arte é inclusiva, positiva, relativa e contemporânea. A grande arte pede que estejamos com ela, em processo, em acto. A grande arte é um meio de construção e em construção. A grande arte faz-se em função do desejo de absolutos, mas não é um absoluto, tal como a filosofia não é a sabedoria. Pode jogar com a designação dos absolutos, mas é sempre uma teia de relativos, de relações, de hipóteses figuradas. A grande arte é a do instante (embora o «instante e a eternidade sejam a mesma coisa» - Agostinho), a que está para os contemporâneos a cada momento e não apenas (mas também) no momento em que ela foi feita. Por isso escrevi algures que nenhuma arte é do passado. Toda a arte que neste momento é acessível, por mais sentidos que tenha perdida (ou intenções simbólicas que se tenham degradado) é contemporânea, fazendo parte de uma imensa teia de possibilidades que nos apelam a fazermos grande arte.
|