Procura a Ática

 

MARÍLIA MIRANDA LOPES


Prelúdio 

Uma noite houve, em que um ancião ignoto dentro do meu sono apareceu e me disse, clara e convictamente: – “Procura a Ática”. Na manhã seguinte, estranhando a força com que a frase me tinha tocado, pesquisei os vários significados da palavra que podia ter derivado do termo grego “Acté” (litoral escarpado). Mas Ática não significava somente o nome de uma região geográfica da Grécia, cuja capital era Atenas: “Ática” tinha também o significado de “escrita depurada”, ou “escrita ática”. A palavra que ecoava em mim visava uma busca duplamente pertinente: incitava-me ao desvendamento, quer de quem a pronunciara, quer da mensagem que a figura – misteriosa, antiga, de brancos e volumosos cabelos -, me quisera transmitir. Considerei difícil atender ao pedido de tal voz, tendo em conta dois aspectos: primeiro, o limitado espaço euclideano tridimensional que nos separava e, segundo, a ausência de coordenadas da partícula que era a sua imagem cinematográfica. Mais tarde, percebi, ao ler as “Questões disputadas sobre a alma” de São Tomás de Aquino, que “as coisas que são distantes não se unem senão através de um meio”. Aquino escrevera: “Ora, a alma e o corpo humano parecem ser maximamente distantes, já que ela é incorpórea e simples, e ele é corpóreo e sumamente composto. Logo, a alma não se une ao corpo senão através de um meio”. Depois desta nona questão do livro, onde Aquino compara o espírito a um motor, ao acto e à forma, cheguei à conclusão intuitiva de que, provavelmente, o meu sonho não tinha sido senão um meio – o único de que dispunha – para chegar à minha própria anima, para que a conhecesse melhor – suponho -, através das palavras que, conjugadas em composições – muitas delas formalmente regradas, ao nível da métrica e do número de estrofes –, puderam constituir uma sucessão peculiar, aplicada intencionalmente e em conformidade com a razão áurea.


Segunda – feira: fatum 

 

Roupa que não é cantada, não é lavada.
Dito popular português

Junto ao Corgo, ou a qualquer rio,

podia erguer-se uma infinita

coluna de luz grega e esbelta,

em homenagem às lavadeiras:

essas, que torceram a noite

encharcada de vilanias;

essas, que em rodilhas levaram

alguidares de dores tão pesadas,

que só cantando s’evaporavam.

Nas seiras de machos arrais

roupas mil, firmes, albardaram

para que debruçadas mágoas

esfregassem nas pedras pardas

lençóis brancos com outras fráguas.


Décima Musa

 

Os grandes são como o fogo,
do qual convém não nos aproximarmos muito,
nem afastar-nos demasiado.
Diógenes Laércio

Safo, vem salvar

os teus conterrâneos

do fogo posto

de que fala Tsipras.

 

Acolherás, no teu umbral de amor,

as criaturas que fogem

das três feras que se alastram,

mais velozes do que o vento?

Tu costumavas dizer: “O amor agita meu espírito

como se fosse um vendaval  a desabar sobre os carvalhos.”

 

Décima Musa, orgulha-te

dos teus heróis que sucumbiram

diante das altíssimas

temperaturas.

 

Sê o trovão seco, o relâmpago e a chuva

e que o teu poema de frescura

se eleve olimpicamente no ar pesado.

Que ninguém mais seja queimado

sob o céu generoso,

de abundante lavratura.

 

MARÍLIA MIRANDA LOPES

Procura a Ática

Editora Labirinto, coleção Contramaré, 2020