FRANCISCO TOPA
Francisco Topa (n. Porto, 1966) é Professor Associado do Departamento de Estudos Românicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, lecionando nas áreas de Literatura e Cultura Brasileiras, Crítica Textual, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Literaturas Orais e Marginais. Doutorou-se em Literatura, em 2000, na mesma Faculdade, com uma tese sobre o poeta barroco Gregório de Matos. Obteve em 2016, também na FLUP, o título de Agregado em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos, especialidade de Literatura e Cultura. É, desde 2019, o responsável pela Cátedra Agostinho Neto na FLUP.
Texto e foto In: https://sigarra.up.pt/flup/pt/func_geral.formview?p_codigo=216198
Poucos discordarão de uma das definições que, em 1981, Italo Calvino deu de clássico: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” Se alargarmos o conceito de modo a incluir a cultura grega da Antiguidade como um todo, reconhecemos de imediato a validade do conceito quando aplicada ao novo livro de Marília Miranda Lopes. Não se trata, porém, de uma leitura acrítica ou parasitária da tradição clássica, mas antes de uma espécie de diálogo que dá nova vida a autores, textos, motivos do passado, ao mesmo tempo que abre espaço para a sempre renovada reflexão essencial: sobre o mundo, sobre a arte e a poesia, sobre o eu.
O ponto de partida – também ele com uma longa tradição que inclui profetas e poetas, santos e guerreiros, heróis e anti-heróis – é uma voz ouvida em sonho. Como explica a autora no “Prelúdio”, a demanda da Ática foi sugerida por “um ancião ignoto”, que assim abriu caminho para a busca interior de uma voz própria, aberta à dupla dimensão da Ática, o legado literário e espiritual clássico, mas também o legado ático da escrita depurada. De um outro modo, o sonho já tinha estado na base de outro livro da autora, Victorianas, de 2015: como escrevia Marília Miranda Lopes na introdução, “Houve em mim um sonho ou um estado alterado que, dias depois, vim a designar «victoriano»: desci umas escadas, vi uma mesa posta para uma série de gente que, de imediato, associei ao século XIX.”
O primeiro sinal do buscado aticismo pode ser detetado na organização do volume, dividido em nove conjuntos, identificados por formas poéticas, mais antigas (epigramas, odes, éclogas, elegias, vilancetes) ou menos (sonetos), mais rígidas (quadras, quintilhas, composições octossílabas) ou menos (orações), mais clássicas ou menos. Precedendo esses conjuntos, há um poema isolado que, a partir do título “Um S_Om” anuncia uma das linhas de força do livro: a ideia de que a poesia é som, ou melhor, é mousiké (uma unidade de palavra, ritmo e dança), mas é também uma via de acesso ao eu e ao mundo. Não esqueçamos que Om é um mantra fundamental do hinduísmo e de outras religiões que indica os três estados de consciência: vigília, sono e sonho. Por outro lado, a poesia é também o Píndaro da I das Olímpicas, “capaz de enobrecer feitos e seres,/ para que chegassem intactos aos vindouros,/ com a mesma força das correntes de Tebas.” (p. 11).
Nos poemas seguintes, vamos assistindo à definição de um sujeito que busca situar-se perante a mensagem e o mensageiro da Ática a procurar: “Abeiram-se de mim pardais que traçam/ rotas no céu, com asco do cimento./ Nelas te desenho, frente ao mistério/ que os teus dedos encontram nos colchetes:/ o corpo exposto, de costas tão frágeis,/ voltadas para Ignota, a tua ilha.” (p. 17). Mas o caminho é longo, feito de paredes e de novelos, num impasse que só a escrita permite ultrapassar: “Pensar num céu a evadir-se,/ faz-me ver para lá desta cal,/ como se um portal novo abrisse.” (p. 27). Apesar disso, “Alguns versos livres cavalgam,/ outros param, diante da cerca.” (p. 33) e as formas podem não ser mais que “esses agasalhos de musa” (p. 27). Por isso, num registo humilde, o sujeito reconhece que “Eu creio que, em tudo, é preciso/ grande paciência: melhorar/ o livro que pede, conciso,/ que o escrevamos sempre a errar.” (p. 40).
Isso não impede, contudo, que o sujeito se mantenha atento ao pulsar do mundo, às vezes cruzando o clássico com o contemporâneo, o divino com o terreno: “Junto ao Corgo, ou a qualquer rio,/ podia erguer-se uma infinita/ coluna de luz grega e esbelta,/ em homenagem às lavadeiras:/ essas, que torceram a noite/ encharcada de vilanias;” (p. 36). Outras vezes, como em “Domingo: DiEM25”, reagindo com um simulado e irónico desinteresse à agressão que chega de fora: “Tinham-me as promessas ordenado:/ tomar o diem, o comprimidio,/ viver na tranquila pertença,/ rezar aos deuses as minhas dúvidas,/ pagar ao estado a minha tença;” (p. 43). Quebra-se assim, por momentos, o “escudo entre mim e o exterior” (p. 50), abrindo espaço para um registo próximo do aforismo, a lembrar Hipócrates: “Procura no teu corpo a fonte,/ o andamento, a melodia,/ a geometria, a tua fronte,/ o algoritmo do teu dia.” (p. 21). Há também alturas em que a espuma dos dias converte a raiva em apelo: “Aproveitemos a pouca democracia/ que nos resta, neste tempo de juízes/ arrogantes e déspotas,/ astutos e hipócritas.”(p. 52).
O fugere urbem não passa de uma solução aparente: “Aqui, no meio da aldeia despovoada,/ podes respirar sem fétidos carbonos,/ a uma vida.” (p. 55). É certo que aí “Os sons são machos que nos levam nas albardas/ ao sabor do pão,/ à crepitação da lenha.” (p. 56). Mas a inquietação impõe-se sob formas diversas, no quotidiano corrido de que dá conta a “Oração da ignorância”: “Desde que o despertador soou loucamente/ no terminal rodoviário do meu colchão,/ a minha alma parece uma ala de urgências.” (p. 93). Noutros casos, os sinais difusos do desacerto são expressos através de um diálogo interartístico com formas de classicismo moderno, como é o caso do quadro The Subway (“Interpretarás o nosso signo sensível, em dispersão,/ como no Metro de George Tooker?”, p. 96) ou da silenciosa 4’33’’ (“Não era um bom dia para reflectir sobre a existência,/ apenas um dia de greve e tu,/ atento ao protesto dos portugueses,/ fizeste como John Cage, na composição 4’33.”, p. 101).
Compreendem-se, pois, os momentos de desalento, como o que se lê na “Oração da infoxidade”: “Mestre, estamos infoxicados./ Cura-nos com o sonho que nos prometeste,/ nessa utopia de sermos a tua Realidade.” (p. 104) Resta, porém, a lição dos clássicos – “diante da fonte, sorvamos a água/ que escorre ainda pura da bica grega.” (p. 59) – que a autora, de forma subtil, na linha do Aristófanes de Lisístrata, sabe aplicar muito bem a um tempo largo que abarca o nosso presente: “Suportam tempo, à cabeça, as mulheres:/ força que Deméter multiplica em espigas,/ sujeitas aos desígnios de Zeus, a quereres/ que as confinem ao gineceu de mendigas,/ a uma civilização de grandes altares./ Mas se elas fossem guardiãs da República,/ seria outra a prosa aristofânica.” (p. 62).
Com uma obra já longa, repartida pela poesia, pelo teatro, pela canção e pelo conto, Marília Miranda Lopes junta-se com este Procura a Ática ao pequeno lote de poetas capazes de criar em diálogo com a tradição clássica, superando o risco de atualizar formas, modelos, temas e imagens e mostrando que eles continuam a ter lugar no mundo de hoje. A busca de que o volume dá conta é pessoal, mas o mapa aponta a todos o extremo do túnel: “Corta-se a ligação: há uma charada/ um lance, um dado, uma rainha, um pião/ no túnel que te leva e que te fende.” (p. 74) Por tudo isto, poderíamos aplicar a Procura a Ática outra das definições de clássico propostas por Calvino: “É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.”
Francisco Topa
MARÍLIA MIRANDA LOPES
Procura a Ática
2020, Fafe, Editora Labirinto.