Uma surpresa. O leitor olha para a capa e para o título, cheira a contracapa e as badanas, e pensa: mais um código que a Igreja escondeu para não perder fiéis? Mais um segredo guardado e que ameaça os alicerces da fé? Mais um exercício com a receita religião+policial+sexo+violência? Não, nada disso. "Vaticano 2035" é uma obra de prospectiva que coloca diante dos nossos olhos um cenário verosímil do que pode ser a evolução da Igreja Católica, do papado e da situação no Médio Oriente nas próximas três décadas.
A desconfiança inicial ainda se agrava quando se vê que o autor - Monsenhor Pietro de Paoli (Pedro de Paulo, uma alusão aos dois apóstolos maiores do início do cristianismo) - é o nome fictício de alguém que "devido à posição que ocupa na Igreja, não quer revelar o seu nome". Mas o autor, percebe-se depois, sabe do que fala, escreve bem e concebe criativamente o futuro próximo do catolicismo. Publicado já depois da morte de João Paulo II, percebe-se igualmente a admiração do autor pela personalidade do Papa polaco. Embora, pelo caminho, fiquem também algumas notas críticas a esse pontificado.
"Vaticano 2035" fala de um Papa que, quando é eleito, já tinha sido casado (enviuvando depois) e que tem duas filhas. Política internacional, religião e relações humanas são o triângulo com que se tece a geografia ficcional. O Papa nomeia cardealas (assim, no feminino), toma decisões em jantares e serões familiares com os seus amigos (os conselheiros mais próximos), agiganta-se perante o mundo na exacta medida em que diminui perante a sua filha mais nova.
É ele o homem que, ainda como enviado papal, ajuda a resolver o problema da guerra e da paz na Terra Santa, nomeadamente uma crise gravíssima nos lugares santos de Jerusalém - o que vale mesmo um Nobel da Paz ao futuro Papa. Os ingredientes para uma trama recheada estão aqui todos: não falta mesmo um assassínio - consumado - de Silvestre III, antecessor de Tomé I, o nome escolhido pelo autor para o Papa de 2035.
Para construir a narrativa, o autor coloca o secretário de Tomé I a recolher depoimentos, memórias e testemunhos dos amigos e familiares de Giuseppe Lombardi, o nome de baptismo do Papa reformador. A escolha do nome Lombardi pode não ser outro acaso: era esse o apelido do jesuíta que, na década de 50, lançou o Movimento por um Mundo Melhor, uma proposta de renovação da Igreja assente em dinâmicas de participação alargada. Mais: a narrativa socorre-se mesmo de notas, remissões para obras publicadas, como se de uma verdadeira biografia se tratasse.
O cenário temporal é construído na época que sucede ao actual Papa Bento XVI. Virá João XXIV, que iniciará algumas reformas internas da Igreja, começando pela possibilidade de ordenar homens casados. Mas as reformas não provocam os efeitos desejados e a correlação de forças vai aumentando a favor dos conservadores, que estão à espreita. Por isso, quando João XXIV morre sem que a reforma esteja consolidada, facilmente é eleito Pio XIII - vindo do México, eleito sob forte pressão dos conservadores latino-americanos.
Até aqui, tudo possível num cenário de evolução próxima da Igreja Católica, mesmo se a adivinhação é um exercício temerato. Os desejos do autor vêm depois: Silvestre inicia um movimento de grandes assembleias na Igreja que abrem o caminho às reformas: mudanças no casamento católico, na abertura a quem abandonou a Igreja, ou nos ministérios ordenados.
O mais importante é o espírito que preside a todas estas reformas e à sua definição: "Este mundo não deve ser julgado, está salvo. E o que salva o mundo é o amor. Por isso, digo-vos: amemos, não tenhamos medo. (...) Amai loucamente, com um coração decidido, sem economizar nada", diz o novo Papa no momento da sua eleição. Uma ideia que já antes o Papa Silvestre apontara: "A missão da Igreja junto dos homens e das mulheres deste tempo não consiste em julgá-los nem em condená-los, mas em lhes anunciar um Deus misericordioso..."
No final, há ainda um cardeal que assume a sua homossexualidade: "Sabes como eu que a sexualidade é todo o nosso ser...", Há um documento que pacifica o olhar sobre a sexualidade humana, há a memória de um homem de confrontos, decepções, cegueiras, cóleras, refeições, bebidas partilhadas. E há um sonho para levar a paz a Jerusalém. "E, se é razoável sonhar com o santo do futuro, atrever-me-ei a propor que seja um santo da unidade", escreve o autor no epílogo.
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