A.M. GALOPIM DE CARVALHO
Com boa vontade, podemos admitir que a filosofia interessa a todos. Tanto podem falar dela os académicos, numa linguagem elitista, só a eles acessível, mas hermética para o cidadão comum, como nós, numa exigência mais modesta, ao nível da chamada divulgação.
Todos somos filósofos sempre que procuramos saber ou investigar algo, seja o que for. Tudo é sabedoria, pelo que tudo é filosofia. Mas o conceito académico de filosofia é algo mais profundo, a tratar por quem ganhou estatuto para tal. É uma sabedoria vasta e complexa, com uma longa história, que abarca a universalidade do conhecimento, que o questiona, explora e, tantas vezes, vai à frente dele.
Como filósofo que sou, no estrito sentido de gostar de saber coisas, não resisto a “meter o nariz e espreitar” este maravilhoso domínio do génio humano. Que perdoem os muitos que tratam por tu o discurso filosófico. Não é para eles que escrevo. A eles peço, sim, que me corrijam onde eventualmente possa errar ou ser menos claro ou incompleto. Escrevo para os que não tiveram oportunidade de contactar com os temas que habitualmente divulgo e que, todos os dias esperam estes meus despretensiosos escritos.
O pensamento, não surgiu no cérebro humano da noite para o dia. É um produto imaterial da matéria. Não tem dimensão física. Não tem volume, nem massa, nem peso, nem cor e não ocupa espaço. Para ele não há gravidade nem distâncias, nem fronteiras materiais. É ubiquista, podendo estar, ao mesmo tempo e a qualquer momento, aqui, no interior de um núcleo atómico. e nos quasares mais longínquos, nos confins ilimitados do Universo, a milhares de milhões de anos-luz. É imaterial mas produz trabalho. “Esforço intelectual” e “trabalho mental” são expressões correntes. Como tal, o pensamento é força e energia com capacidade de interagir com a matéria. E isso tanto acontece no acto de talhar o sílex entre as mãos de um neandertalense, de lapidar um diamante ou de fabricar um smartphone por um computador, por um conjunto de operários especializados.
É o culminar de uma evolução da matéria surgida há cerca de 13 800 milhões de anos, com o começo de Universo.
Mas isso é uma outra história, bem do âmbito das preocupações da filosofia, que iria desviar-nos do propósito que, de momento, nos move.
O cérebro, cuja estrutura vai sendo a pouco e pouco desvendada, adquiriu, na espécie humana, complexidade que lhe permite pensar, criar conhecimento. Feito dos mesmos átomos do mundo físico que conhecemos, o cérebro humano, aceite como fruto da dita evolução, além de coordenar toda a actividade vegetativa do corpo em que está inserido, é matéria que atingiu o superior patamar do pensamento e de, através dele, intervir no seu próprio curso e no da Natureza que o criou. Na sua possibilidade de obter conhecimento, de deduzir, inferir e de o transmitir, o cérebro humano, surgido à superfície da Terra, é a expressão mais complexa desta dinâmica, na qual foi consumida a totalidade do tempo do Universo, os ditos cerca de 13 800 Ma.
Se tivermos em atenção a evolução do ser humano, desde o mais antigo primata, até ao “Homo sapiens” actual, passando pelos australopitecos e pelos outros hominídeos que os estudiosos têm descoberto e descrito, a pergunta que me ocorre fazer é: – a partir de que estádio evolutivo da hominização, os nossos antepassados começaram a pensar racionalmente? Foi no do “Neanderthal”, aparecido há umas centenas de milhares de anos, foi antes dele, ou foi só no do “Cro-Magnon”, que se pensa ter exterminado aqueles, há uns trinta ou quarenta mil anos?
Sabemos que muitos animais superiores revelam capacidades cerebrais amplamente investigadas em institutos de psicologia animal. Quem põe em causa a inteligência de um chimpanzé, de um cão, de um golfinho ou, mesmo, do Troodon formosus, o dinossáurio carnívoro, desaparecido há mais de sessenta milhões de anos? Sabemos, pois, sem sombra de dúvida, que os nossos antepassados exerceram actividade psíquica mais elaborada do que a dos animais vulgarmente ditos “irracionais”.
Cingindo-nos ao “Homo sapiens”, a pré-história ensina que, ao longo da sua evolução física e psíquica, este nosso antepassado observou, experimentou e estabeleceu relações de causa-efeito, transmitindo aos descendentes o saber que foi acumulando, servindo-se para tal da linguagem de que dispunha, de início o gesto e, mais tarde e progressivamente, a fala. Fez tudo isto e muito mais antes dos sumérios terem iniciado a arte de escrever há cerca de 5000 anos. E foi só, a partir do momento em que passou a viver em grupos progressivamente mais alargados, que se deparou com questões associadas à linguagem e aos valores morais, estéticos, políticos e religiosos. Foi nesta caminhada que surgiram os primitivos filósofos, designação genérica pela qual são habitualmente referidos os mais antigos matemáticos, geógrafos, historiadores, astrónomos e outros pensadores.
Foi o confronto entre a realidade e as ideias que, a partir dela, foram formulando, que conduziu os pensadores no caminho de uma ciência embrionária que, nessa fase, se confunde com a filosofia, entendida no sentido de interesse ou preocupação pelo saber. É nesta fase que a filosofia ganha o estatuto de “mãe de todas as ciências”. Foi a admiração e, por vezes, a perplexidade decorrentes de tudo o que os sentidos traziam ao seu conhecimento, que desencadearam neles esta atitude mental que está na base do maravilhoso edifício do conhecimento científico e tecnológico que temos ao nosso alcance.
Alguns historiadores, classificados como “orientalistas”, defendem que a filosofia grega teria sido herança e posterior desenvolvimento de uma sabedoria vinda de povos de Leste. No século XIX ainda havia controvérsias sobre a origem desta forma de organização do pensamento, se na Grécia, se na Pérsia, por exemplo. Actualmente parece haver unanimidade em considerar a Grécia como o berço da filosofia, o que parece ser confirmado por estudos recentes, com ênfase nos arqueológicos.
Pensamos poder hoje dizer que foi entre os gregos que começou a audácia e a grande aventura do pensamento.
Há quem afirme que terá sido no decurso do século VII a. C., com o desenvolvimento e progresso nos trabalhos diários, que alguns gregos começaram a esboçar explicações racionais que foram conduzindo à progressiva rejeição das explicações míticas da realidade.
É hoje consensual que a filosofia, como superior elaboração do pensamento, nasceu da recusa ao carácter sobrenatural dos mitos, que então dominavam as crenças, não só da sociedade grega, mas de toda a Ásia Menor. A passagem de uma mentalidade fundamentada em crenças de carácter religioso, a uma outra, assente no raciocínio, marca, pois, o início da filosofia.
A filosofia surge, assim, como uma espécie de rompimento com a visão mítica do mundo grego. Enquanto que os mitos não dispunham de qualquer suporte racional, a filosofia inaugurava o discurso abstrato e universal, amparado na reflexão e argumentação, formulando concepções do mundo isentas de contradições e imperfeições no que respeita o raciocínio lógico.
Ao contrário da religião, baseada na fé, que não contesta, respeita e, praticamente, não se afasta da tradição e dos textos sagrados, a filosofia serve-se exclusivamente da razão para aceitar ou rejeitar as teses que se lhe deparam.
A dinâmica social em crescimento nas cidades-Estados (“polys”, em grego) jónicas, nas colônias gregas da Ásia Menor apaga progressivamente as instituições e os valores arcaicos, dando nascimento a uma nova maneira de ver e pensar o mundo.
Um parêntesis para lembrar que, na Grécia antiga, cidadão era aquele – nunca aquela – que gozava do direito de participar na vida política da “polys”, um direito igualmente vedado a estrangeiros e a escravos. Foi por isso, por essa secundarização da mulher (praticamente até finais do século XIX), que a filosofia, as ciências e muitas outras atribuições lhe foram vedadas.
Durante o século VII a. C, as novas condições de vida nestas cidades acentuaram-se com o fortalecimento do artesanato, do comércio e da navegação, marcando definitivamente a decadência da organização social baseada numa estrutura de base agrária, patriarcal e gentílica. Este tipo de organização social deu lugar a uma nova forma de pensamento racional, que não partia da tradição mítica, mas de realidades apreendidas na experiência humana quotidiana. Dito de outra maneira, os resultados da experiência sensível, no dia-a-dia, conduziu à laicização da cultura e à sua integração numa visão racional e unificadora. Neste quadro, admite-se que tivessem surgido, nas colónias gregas da Ásia Menor, as primeiras manifestações de um pensamento racional, embrião da filosofia, abrangendo os primórdios de uma ciência teórica (sem qualquer apoio experimental). Admite-se ainda que foram também certas particularidades da mitologia grega que conduziram ao pensamento filosófico e que a contribuição dos primeiros filósofos foi dessacralizar e despersonalizar as narrativas tradicionais sobre a origem e organização do cosmos. Por outras palavras, admite-se que sendo os mitos narrativas fictícias afastadas do discurso racional (“logos”), foram eles que levaram à reflexão por parte dos filósofos, tornando-se, assim, num domínio de fronteira entre as crenças religiosas e a filosofia.