Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
- A 25 de Abril de 1974, a chamada revolução dos cravos pôs fim ao regime de Salazar/Marcello Caetano. Este acontecimento continua a provocar abundantes estudos de diversa orientação e com vários significados para o Estado, para a Igreja e para a sociedade.
A Agência Ecclesia e o Centro de Estudos e História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa publicaram uma obra no contexto das celebrações dos 50 anos do 25 de Abril[1]. Como se diz na Introdução, «no seguimento de projectos editoriais anteriores, esta parceria tem o propósito de aproximar a investigação científica de formatos de apresentação e difusão de conteúdos essenciais da História de Portugal».
É uma bela realização que não fica apenas nas relações entre o Estado e a Igreja Católica. Estuda algumas permanências, rupturas e recomposições acerca da guerra, da descolonização, da democracia e do desenvolvimento.
«A comemoração dos 50 anos do 25 de Abril confirma, de forma incontestável, que o presente reflecte sempre o passado, no caso um passado recente, mesmo que não se descubram os ângulos que o projectam».
Como escreveu o poeta David Mourão-Ferreira (1927-1996), Chega-se a este ponto Arrepiar caminho / Soletrar no passado a imagem do futuro / Abrir uma janela Acender o cachimbo / para deixar no mundo uma herança de fumo[2].
No passado Domingo, o Papa Francisco regressou ao Vaticano, mas ainda em convalescença. Já mostrou que não vive alheado do que acontece na Igreja e no mundo. A Igreja não parece que vá desaparecer nem sequer no original estilo de Bergoglio. Segundo o Anuário Pontifício 2024, do ponto de vista global, aumentaram os católicos batizados, os bispos nos continentes asiático e africano e os diáconos permanentes na África, Ásia e Oceania. Diminuíram as chamadas vocações sacerdotais – os padres –, e os religiosos e as religiosas[3].
- De há uns anos a esta parte, temos uma pluralidade de diferentes manifestações religiosas e, por isso, se fala do diálogo inter-religioso. Por outro lado, esta pluralidade religiosa é também uma pluralidade cultural e política.
Um grupo de jornalistas católicos criaram o 7MARGENS. Apresentam esta iniciativa da seguinte maneira: «é um jornal digital orientado por critérios jornalísticos profissionais e independente de qualquer instituição, religiosa ou outra. Divulga informação sobre o fenómeno religioso, no sentido mais amplo do termo, não se confinando à actualidade das diversas confissões e crenças estabelecidas. Procura dar conta das diferentes formas de busca espiritual que marcam o nosso tempo, desvendando as questões, interrogações e percursos que alimentam essa indagação. Tem consciência de que a informação sobre o fenómeno religioso assim entendido constitui um importante instrumento a favor da paz, da justiça social, do conhecimento mútuo, da tolerância e da cooperação entre os mais diversos actores das nossas sociedades»[4].
Eduardo Lourenço, um grande pensador da filosofia, da religião, da literatura e da música, afirmou numa entrevista que o religioso é constitutivo da natureza humana, da nossa essência como seres livres. Impede-nos de ser limitados por qualquer obstáculo. Mas a cultura ocidental fez da conquista da liberdade a possibilidade de intervir, de dominar o nosso próprio projecto, uma finalidade, laica, da História humana. Na verdade, a forma mais radical de liberdade é da ordem do poético, do religioso. Permite que a Humanidade inscreva a sua pulsão mais radical numa esfera que não é a do demonstrável. Submetemo-nos a uma espécie de loucura divina, para nos salvarmos da loucura autêntica que é a noção de que a nossa essência é a morte. Penso que é um pouco assim[5].
Por sua vez, Wittgenstein perguntava: Que sei eu sobre Deus e o sentido da vida? Sei que este mundo existe. Que estou nele como o meu olho no seu campo visual. Que algo nele é problemático, a que chamamos o seu sentido. Que este sentido não reside nele, mas fora dele. (…) Ao sentido da vida, i.é, ao sentido do mundo, podemos chamar Deus. E associar-lhe a metáfora de Deus como um pai. A oração é o pensamento do sentido da vida. (…) Crer em Deus significa compreender a pergunta pelo sentido da vida. (…) Crer em Deus significa ver que a vida tem um sentido[6].
- Um dos povos que se considerava religiosamente privilegiado era Israel, o povo de Deus. Um célebre judeu – Jesus de Nazaré – mostrou que conhecia muito bem a Bíblia, mas não estava sempre de acordo com as práticas que se diziam inspiradas nessa Biblioteca sagrada. Uma das suas tarefas mais constantes era a destruição da interpretação que deixava, quase sempre, a mulher mal vista. Neste Domingo, lê-se uma das passagens mais espantosas a este respeito. Vale a pena ler o texto.
«Jesus foi para o Monte das Oliveiras. Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo e todo o povo se aproximou dele. Então, sentou-se e começou a ensinar. Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus uma mulher surpreendida em adultério, colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres. Tu que dizes? Falavam assim para lhe armarem uma cilada e terem pretexto para o acusar. Mas Jesus inclinou-se e começou a escrever com o dedo no chão. Como persistiam em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra. Inclinou-se novamente e continuou a escrever no chão. Eles, porém, quando ouviram tais palavras, foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos. Ficou só Jesus e a mulher que estava no meio. Jesus ergueu-se e disse-lhe: Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou? Ela respondeu: Ninguém, Senhor. Disse então Jesus: Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar»[7].
Este texto é uma construção prodigiosa. São os adúlteros que vão denunciar uma mulher apanhada em flagrante adultério, como se ela tivesse sido apanhada a cometer adultério sozinha. Quando a acusam, Jesus tem uma reacção espantosa. Devolve a acusação a todos os homens ali presentes: Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra. Jesus continua a fazer-se distraído até que todos foram abandonando a acusação, a começar pelos mais velhos. Ao ficar sozinho com a mulher, perguntou-lhe se algum a tinha condenado. Nenhum. Jesus limita-se a dizer: também eu não te condeno, mas não voltes a estragar a tua vida.
Nesta passagem, não seguiu a Bíblia! Se a tivesse seguido, participava na opressão das mulheres que ele veio libertar.
[1] Cf. 25 de Abril. Permanências, ruturas e recomposições. Edição CEP, 2024
[2] Do Poema Equinócio
[3] Cf. www.vatican.va
[4] Cf. https://setemargens.com
[5] Cf. Revista LER, nº 138. Verão de 2015. Terceira Série, p. 38
[6] Tagebücher 1914-1916, Werkausgabe, Vol. I, Suhrkampf, Francoforte, 1984, pp. 167-8
[7] Jo 8, 1-11
Público, 06 Abril 2025