Prefácios

 

 

 

 

 

 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO


Acordar com letras a sairem
Por NUNO & RUI GALOPIM DE CARVALHO


Mesmo que acorde bem cedo (e devo ter herdado genericamente uma má relação com a almofada, o edredão e os lençóis), sei sempre que, na família, não fui o primeiro. Ainda o sol anda a dar voltas pelo outro lado do mundo, sem olhar para o relógio a ver quando chegará a este canto atlântico da Europa, sei que, ainda de pijama e roupão, já lá está, no escritório ao fundo do corredor, sentado, ecrã à frente dos olhos, teclas sob os dedos. A escrever.  E a lançar “likes”.

Dizia-se que a Internet era coisa para textos curtos, que o tempo de leitura hoje é coisa rápida, fulminante, que a atenção se esvai num instante ou mais não sei quê… Pois o que faz, nessas horas da madrugada, é exatamente o contrário. Textos longos. Por vezes bem longos. Para remar contra marés…

Apesar dos quase 93 anos que o velho bilhete de identidade denuncia (ainda daqueles amarelos, grandes, que nunca cabiam nas carteiras e iam ficando com as pontas desconjuntadas), mas com a gaiatice que felizmente ainda lhe vai na alma, o velho professor virou… “influencer”. Não para nos gastar o tempo com inutilidades sobre as mais garridas distrações do quotidiano. Mas para partilhar, como cidadão que não lida bem com os silêncios, anos de histórias, de leituras, de vivências, de conhecimento cimentado, de memórias, de sabores (sim, uma das minhas “secções” preferidas é mesmo a dos sabores e garanto, com provas literalmente “provadas”, que o arroz de bacalhau de coentrada ou a “canjinha”, que na verdade é quase um belo arroz de frango, são imperdíveis, isto para não falar nas rabanadas, que dão um trabalhão a fazer, mas que voam sem se pensar nas calorias).

Aqui há uns anos, no fim de um dos almoços de domingo, na mesa com perto de 20 pés (menos do que a dos meus avós) onde nos costumamos juntar, lembro-me que partilhava, com alguma angústia, que estava a esgotar os temas para novos livros. Como se essa visão de um eventual nada significasse um vazio que questionasse o próprio sentido dos dias que tinha pela frente. Não que o exercício diário de comunicação via Internet seja a única solução para essa questão (e nos últimos anos não foram faltando novos livros). Mas, como este livro agora deixa claro, se há coisa que não entrou em dieta foi o volume de temas do presente, memórias, lições (ou de geologia ou de cidadania) ou a mera vontade em partilhar ideias ou factos que, nestas escritas que ganham forma antes do romper da aurora, chegam diariamente a milhares de leitores.

Vá lá que nunca contou (nestes textos) que devo ter sido dos alunos mais insuportáveis que teve (e de facto passava as aulas na conversa, se calhar porque já conhecia de cor a “letra e música” do programa de Sedimentologia). Nem que lhe estraguei um LP com uma “Carmina Burana”, de Carl Orff, numa gravação célebre de Eugen Jochum para a Deutsche Grammophon (ao parece, rezam as crónicas caseiras, andava aos saltos por cima do disco… dance music, portanto). E que, sem surpresa, lhe “nacionalizei” os discos mal tive o meu primeiro gira-discos (curiosamente foi em abril de 74), entre os quais um Stravinsky, um Ravel, um Handel, uma missa de Bruckner. Mas também um Brel, um Bécaud, uns Beatles e uns Abba… Para um próximo texto matinal, e para manter estes três últimos factos em segredo, fica um pedido: as sopa da panela. E sempre que o meu pai ou a minha mãe me perguntam sobre o que quero para o almoço de domingo, a resposta é quase sempre essa…

Nuno Galopim de Carvalho


É do meu pai que vou falar.

Sermos convocados a prefaciar um livro de textos escolhidos de alguém tão próximo e presente como o é este meu querido pai pode levar a que o manto diáfano da emoção tolde a racionalidade que, porventura, se poderia esperar do prefaciador. Acontece que, com toda a liberdade, eu aceitei deixar-me levar por essa emotividade que, como autor que vou sendo na minha vida profissional, nunca deixo que belisque, mesmo que ao de leve, o absoluto rigor e imparcialidade dos temas que desenvolvo. Aqui é diferente. Aqui é do meu pai que vou falar e, assim, arrogo-me, com fundada convicção, o direito de poder ser parcial, exagerado e emotivo até.

Desde que me lembro, o meu pai vive na constante preocupação, porventura com sentimento de obrigação moral e cívica apimentada com a sua paixão pelo saber, de partilhar o conhecimento que o seu percurso de vida, conquistado com muito trabalho e compromisso, lhe permitiu acumular ao longo de décadas. Outra qualidade que o caracteriza é o ter sempre presente a preocupação com o bem-estar de quem o ouve ou lê, com a autoestima do seu interlocutor, em particular os de mais frágil têmpera. Apesar de estar entre os mais “sábios”, palavra e conceito que compreensivelmente detesta, sempre comunicou com uma genuína e inspiradora humildade. O meu pai é a personificação da expressão, que desconheço se já existe, mas aqui a pranto: a humildade é um privilégio.

Aos 93 anos, ainda acorda, pelo romper da aurora, todos os dias, para saciar aquela inquietude de comunicar, de ensinar, de inspirar, de contribuir para que o outro seja melhor. Aos 93 anos ainda tem a mesma idade de quando se jubilou, de quando foi meu professor na faculdade, de quando, nos anos 1980, juntava vizinhos de férias na Quinta da Balaia e dava aulas, imagine-se, de geologia para pessoas normais (tornando o difícil em simples e o simples em importante), de quando escreveu nas nossas férias de crianças os famosos AP de Geologia (os três volumes de matéria em geologia do chamado Ano Propedêutico em 1977, os melhores livros de educação geológica durante décadas); ainda tem a mesma idade de quando ainda no seu longo serviço militar, dava aulas aos seus instruendos não de saber militar, mas de educação para a cidadania e para a saúde. Aos 93 anos o mau pai ainda é, de facto, aquele jovem adulto com uma inesgotável energia e vontade de ensinar e de puxar para cima o outro que, ao contrário dele próprio, não teve as mesmas oportunidades na vida.

É este jovem adulto que é o meu pai que está agora naquele corpo de velhinho adorável de olhos azuis, tantas vezes marotos e brincalhões e sempre doces à procura de mimos, que apenas se lembra que tem a idade que tem quando se quer levantar, porque quando está ao computador naquelas longas e silenciosas horas precedentes de cada aurora, a idade não existe, o corpo não existe, só existe ele igual a si próprio na sua essência de homem bom e generoso com os outros.

Somente há pouco tempo é que olhei para mim e me apercebi que estava a seguir os passos do meu pai, ainda que ao meu jeito e no nicho que é o meu mundo profissional. Somente há pouco tempo é que vi o quão afortunado tenho sido por, por um lado, ter sempre tido o seu apoio incondicional como pai, em conjunto com a minha mãe, e, por outro, por ter absorvido parte da sua inquietude pela comunicação do saber com o outro, seja em aulas, seja em texto. Se sou o profissional que sou, em muito isso lhe devo pois, entre outras graças, foi um extraordinário modelo a seguir e um conselheiro ímpar e sempre oportuno. Se sou a pessoa e pai que sou, em muito a ele, e à minha mãe, sou grato, pois é de uma infinita bondade, inesgotável tolerância e sábio bom senso. Ainda por cima parece que gosta do Sporting desde criança!! Não podia ter melhor herói e, para mim, é o melhor professor, a melhor pessoa e o melhor pai do mundo.

Rui Galopim de Carvalho