Por JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
Passos antigos que ainda se ouvem…
Por vezes, quando circulamos de forma descontraída pelos becos esconsos onde a vida nos vai levando, ouvimos, de forma meio toldada por fenómenos que nem sequer compreendemos, os passos dados por ninguém.
Nem todos o conseguem fazer. É preciso uma sensibilidade afinada e a capacidade inexplicável de ser e sentir mais do que o normal neste Mundo no qual vivemos. É essencial ser surdo às agruras, aos conflitos, e aos pequenos-nadas que nos atormentam a todos, e ter a Alma aberta para deixar que o insólito a possa encontrar e reacender, transcendendo-se a partir das suas contradições para que o caminho se ilumine e ganhe um sentido novo e mais coerente.
Esta descrição, simples e complexa ao mesmo tempo, é o retrato mais fiel da Conceição Valdez que tenho a sorte de conhecer. A simplicidade enorme com que se entrega a tudo e a todos, abraçando como suas as causas de todos os que a envolvem, atormenta-lhe a existência, mas enche-a daquela magia única que só ela consegue ter. Porque vê sem abrir os olhos. Porque ouve enquanto dorme. Porque empreende cada escolha como se fosse o desafio único pelo qual terá de responder.
E a Conceição tem, num qualquer recanto que não vemos porque está coberto pelo peso das eras e das gerações, dos nascimentos e dos renascimentos, a sublime capacidade de escutar aquilo que está para lá do próprio tempo.
Se, para alguns, é de memórias que tratamos, sejam elas do foro íntimo de cada um, ou recordações familiares que as várias gerações vão guardando e partilhando, para a Conceição Valdez são peças efectivas que fazem parte e integram o grande quebra-cabeças da vida.
Santo Agostinho, nas suas “Confissões”, questiona a existência do tempo. E, de facto, tinha razão nos pressupostos básicos que utilizou para o enquadrar… o passado não existe, porque já passou e se esgotou; o futuro não existe ainda e resguarda em si todas as potencialidades que o levam aos desígnios de Deus e, por isso, não existe também; e o presente, sendo algo tão rápido e efémero como acontece com cada momento, é em si próprio futuro quando nele pensamos e, por isso, não existe, sendo da mesma forma passado, não existindo igualmente, quando nele falamos… Por isso, conclui o santo, que não existe tempo…
Foi algures no passado, num tempo que já não é tempo, que tive a boa sorte de me cruzar na vida com a Conceição Valdez. E a empatia, assente de imediato na partilha profunda desses arquétipos ancestrais, consolidou-se com uma exposição de recordações. Há tantas décadas atrás, era já a memória avoenga de Timor que crescia dentro dela, num apelo filial que transcendia o tempo e o tratava como efemeridade vã.
O sentido de partilha profunda, num desenho volátil de clã que se perpetua a partir do grande projecto da vida que se enforma nos pequenos ciclos das vidas de cada um dos seus elos, é a base principal deste trabalho da Conceição Valdez. Num apelo à figura do avô, entendido aqui como pilar ancestral de um conjunto de memórias que faz suas, a autora recupera toda a pujança existencial do seu antepassado para se assumir ela própria como elo primordial na partilha desta memória essencial. E fá-lo, contrariando as leis do tempo e do espaço, nos antípodas do que foi a vida do seu avô, redescobrindo nas lições marcantes que ele lhe deixou, as pistas mais importantes de um plano de formação para as novas gerações.
A Conceição Valdez é pedagoga e, nessa condição, especializou-se em aprender e em ensinar. É precisamente isso que faz nesta obra. Ensina-nos a olhar de forma diferente para o que ficou dos tempos áureos da vida do seu avô, conferindo-lhes um sentido que tem a ver com o presente e com os dias de hoje, anulando as barreiras que as eras lhe vão emprestando e recuperando aquilo que é, afinal, o húmus que a fez crescer, para dali retirar as vitaminas que hão-de florescer nos seus netos e nos netos deles.
Artur dos Santos Ferreira, o avô da Conceição Valdez, faleceu há quase 60 anos, em Setembro de 1961. Mas, ao contrário do que acontece com o comum mortal, alcançou a eternidade pela mão da sua neta Conceição.
Por isso, é de magia que trata este livro. Se assumirmos que a expressão abarca tudo aquilo que não compreendemos bem, ou que o senso comum não sabe explicar de forma conveniente, então é mágico o acto que a Conceição Valdez consubstancia ao recuperar nestas páginas uma vida que a natureza já fez desaparecer há tanto tempo. Os laços perenes entre estes dois seres, num abraço entre avô e neta que a casualidade do destino juntou nesta partilha sentida num recanto qualquer do Mundo que temos, transformam-se aqui num amplexo profundo entre várias parcelas de diferentes tempos.
No palco da vida de sempre, num cenário desenhado pelas memórias de locais onde nem sequer nunca esteve, a Conceição Valdez recria os enredos mais envolventes que o amor de uma neta pode tecer. O avô, lá onde estiver, há-de vê-la agora, mulher adulta e ciente, e sentir no mais profundo recanto do seu ser, a Alma a reluzir com o brilho da entrega que neste livro se concretiza.
A banda sonora que acompanha o expoente máximo desta história, virando e revirando em permanência os biombos do tempo, deixa ouvir o eco longínquo mas sentido, dos passos que o seu avô deu.
Nem todos os que vão ler este livro vão perceber. Nem todos os que ouvirem esta história vão conseguir encontrar nela estes sinais fugazes de uma eternidade que só uns quantos podem aspirar conhecer.
Para ser entendida de forma plena, esta obra exige seres especiais, com dotes de sábio e sensibilidade elevada ao mais alto expoente.
Como a Conceição Valdez consegue ser.
João Aníbal Henriques
Cascais, Março de 2018