NICOLAU SAIÃO
UMA CARTA
(Enviada ao Director da Gazeta de Poesia Inédita)
Caríssimo José Pascoal
Como faço todos os dias, fui ao Casa do Atalaião (1) (após ver o meu correio) e, adicionalmente, vistoriar os sítios recomendados ali.
Foi com surpresa magoada que vi a sua mensagem inserta na sua e nossa Gazeta.
Diga-me, esclareça-me: é mesmo verdade? O José vai mesmo encerrar a Página?
Se assim é – e ponderosas razões haverá para isso – considero UMA PENA tal facto.
Independentemente de a Gazeta não transportar sempre poesia de fina água – constituiu um lugar onde as vozes se faziam ouvir, as diversas vozes dos diversos autores.
Era pois um sítio onde um acto demopédico se fazia existir!
Nem só os lugares de alta excelência têm o direito de se patentear. Assim sendo, digo – e não me desdigo! – que o País, com o desaparecimento da Gazeta, está hoje mais pobre.
Esperando que esteja bem de saúde, endosso-lhe o abraço de firme estima. O seu,
ns
(1) Casa do Atalaião (saiaonicolau.blogspot.com)
(Este foi o último poema que enviei a JP e que já não pôde ser publicado):
CHAPÉU
Serve para quase tudo: para honrar, desonrar
os planetas, as putas, os homens.
Como uma alma disforme, já foi visto
esmagado sob o cu de uma duquesa
sentada num canapé, distante
e distraída. Como a luz, também pode
ser uma figura de retórica.
Levou tiros, rolou
no pó dos pátios, entrou
brutal nas sinagogas; e é sempre um elemento
combinado, composto
de círculos e recordações. Às vezes
tira-se o chapéu se a carteira não presta.
Nunca se concluiu
se verdadeiramente foge às responsabilidades: contudo
é animal capaz para o deserto
de baixo ou de cima
livre na velha terra dos dicionários
ou dos cactos. Raramente é tão-só uma ilusão
ou miragem.
Se nos cai da cabeça
por mera distracção
ou golpe de vento
há sempre alguém que o pise ou o apanhe
– o chapéu é que já não é o mesmo
porque entretanto aprendeu muito
sobre como se comportar em sociedade
ou na rua.
É muito raro ficar
na cabeça dos mortos
ao contrário da camisa
que é de uso obrigatório. Rola sempre
para o lado da aurora
aos arrancos ou com grande doçura
como uma estrela
pendurada
num cabide.
ns
in “Os objectos inquietantes”