MILTON REZENDE
ANDARILHO DESCALÇO
estou sem almoço
e sem janta
e com duas costelas
quebradas
meu caminhar é pele
sobre o bronze
do asfalto, atrito
suave de quem sonha
estou sofrendo
com as calças e tudo
e isso é nada para
quem vive na rua.
Um Andarilho Dentro de Casa
ANOS 70
há muito que não a vejo
calibro a saudade no peito
alfa centauro, sorteio:
não sei se te beijo
ou se bebo.
Uma Escada que Deságua no Silêncio
ANTÔNIMO DE ALEGRIA
“quem vive como eu não morre:
acaba, murcha, desvegeta-se.”
Fernando Pessoa
No subterrâneo não adianta sorrir
Porque as nossas presas de marfim
Jamais verão a luz do dia ou o sol.
Eu estive nas cavernas por muitos anos
E durante todo esse período nunca recebi
Uma visita que não fosse trazendo a comida.
No isolamento não adianta existir
Porque os nossos sonhos dourados
Jamais saberão o que é reciprocidade.
Eu estive nas prisões por muito tempo
E durante todos esses anos nunca recebi
Uma notícia que não fosse de morte na família.
Na escuridão não adianta insistir
Porque os nossos olhos arregalados
Jamais avançarão além da cortina sem cor.
Eu estive nos cemitérios desde a adolescência
E durante toda a minha vida nunca recebi
Uma nota que não fosse de pesar e esquecimento.
O Jardim Simultâneo
APRENDIZADO
Tuas lágrimas brotaram na noite
encharcando a tua suposta alegria,
ácidas como as palavras que foram ditas.
E os fatos retornam agora em tua mente.
Quando já sabes que te golpearam no vazio,
no vazio insondável do teu isolamento.
O que se entende por vida e saúde
são conceitos arcaicos e burgueses.
No entanto te impressionam a ponto
de fazer com que sintas medo da morte.
Mas os grilos da estrada sabem de teus passos
e durante a insônia te dão lições de existência.
Inventário de Sombras
APRENDIZAGEM
Nas trilhas me desfaço
destas partes apodrecidas
pelo ódio sem vazão de mim,
onde ensinaram-me o silêncio
resignado e o medo de gritar.
Aprendi também
a culpabilidade de ser eu
na expressão de uma vontade
que se voltou contra quem
era a própria fonte de ela ser.
E fizeram de mim meu inimigo,
dando origem a uma luta estéril
cujo único propósito era manter-me
ocupado com uma mágoa que eu
não tinha por mim na noite isenta.
Na solidão do percurso que me foi imposto
eu aprendi a utilizar a mágoa e o ódio
que me deram, para desvendar as causas que
restringiram-me a um silêncio absoluto de
quem interioriza uma culpa e se torna mudo.
Mas no abismo em que me jogaram
eu adquiri uma aprendizagem oposta e lúcida,
para o desespero de quem não supunha
que com os cacos eu pudesse construir uma arma.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
ÁRVORES
Há na rua uma árvore
cuja beleza consiste
apenas em existir e
estar ali, ao vento.
Ela simplesmente existe
e nos transmite a mensagem
que eventualmente quisermos
lhe atribuir à distância.
Seu discurso, para si mesma,
é a propagação de sua sombra
na coreografia de suas folhas
e sua linguagem é a do silêncio.
Esta árvore não diz nada
de coisa nenhuma. A metafísica
está no bêbado que lhe atribui
significados além do estar-ali.
Aquela árvore será sempre
(para aquém e além dela mesma)
exclusivamente árvore e isso
é tudo. O mais é estar a vê-la.
Subitamente um carro passa na rua
e arranca as folhas da nossa árvore.
Como não temos galhos para protestar
escancaramos os dentes e voltamos
putos pra casa.
Inventário de Sombras
AS FLORES DO LADO DE LÁ
Algumas pessoas, depois de terem me virado as costas durante um bom período, retornam para saber das flores do meu jardim. Desconheço os seus motivos: culpa, curiosidade ou vontade de espicaçar-me ainda um pouco mais. Como se já não tivesse sido o suficiente das outras vezes. Encontram-me sempre do mesmo modo: ansiedade absoluta, ternura extrema com as sementes do porvir e uma vontade de plantá-las ontem. Mas nunca deu. Chegam à porta e sondam o ambiente. Encontram-me deitado e cheio de planos. Qualquer aceno de cumplicidade e eu já estou de pé com a disposição de um menino que eles nunca viram, mas que nunca deixou de comandar as minhas ações. E digo com veemência: vamos semear os campos, vamos instaurar o amor para além de todas as fronteiras, vamos ser pó e esperança e construir um jardim belíssimo, ainda que isso seja somente durante os nossos sonhos. Então eles recuam, meio assustados, alegando outros compromissos. Manifestam tanta desvontade e empecilhos que eu fico sozinho, semeando as minhas flores imaginárias de compartilhamento debaixo de uma cama estéril e num terreno baldio fora do tempo.
O Jardim Simultâneo
AS MAIS BELAS HISTÓRIAS
Adoro pássaros.
Adoro pássaros e plantas
e peixes. coisas e seres.
Adoro tudo que não esteja
ao meu alcance,
só para eu poder buscá-las
(é quando o patinho vira cisne).
Uma Escada que Deságua no Silêncio
AS PORTAS
As portas estavam fechadas
e levei algum tempo
para interpretá-las assim.
Na verdade essa tarefa
consumiu minha energia
e os meus olhos de ver e sentir
a cidade que se espraiava
(como um convite) até o horizonte.
Curioso era o mistério
de toda a cidade manter
as suas portas fechadas.
Passei toda a minha vida
ao pé destas portas indagando
por obra de quem, acaso e quando
elas se fecharam.
Não posso dizer que acreditava
na possibilidade de que um dia
elas viessem a se abrir, mas
queria saber o porquê de estarem fechadas.
Foi quando então percebi
(no fim já de minha capacidade
de espera analítica) que as portas
sempre estiveram fechadas.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
ATÔMICO
Nossos filhos nascem cegos
pela poeira do nosso tempo.
Nós ainda enxergamos
porque já entendemos o mundo
a partir da poeira que há nele,
e que não nos incomoda muito.
Areia (À Fragmentação da Pedra)