Porquê estudar História?

 

JOÃO GARÇÃO


Para os alunos do 3.o Ciclo da Escola Portuguesa de Luanda


Algumas pessoas consideram que a História (como Ciência, mas também como disciplina escolar) acaba por não ser mais que o amontoar de datas de batalhas, de revoluções e de vidas e feitos de personalidades mais ou menos distintas, mas que o inevitável passar dos séculos há muito consumiu e tende a lançar no esquecimento das novas gerações.

E, por isso, perguntam: “qual é o objetivo de estudar vidas passadas, conflitos há muito enterrados, países e impérios há tanto tempo desaparecidos, crises há tanto ultrapassadas? Qual é a utilidade de analisar tempos e lugares que já não são os nossos e nos quais não voltaremos a viver? Por que razão tem importância saber datas, nomes ou acontecimentos que na nossa vida profissional não terão qualquer aplicação prática?”…

Contudo, a disciplina de História é uma das mais importantes disciplinas curriculares que um aluno pode ter no seu trajeto de vida escolar. Vejamos, de seguida, alguns dos motivos que me levam a efetuar esta afirmação.

 

1 – A História ajuda-nos a compreendermo-nos.

O desenvolvimento individual, nas suas diversas facetas, está intimamente ligado à progressiva construção, por parte de cada pessoa, de um sentimento de identidade. Ninguém consegue posicionar-se corretamente no mundo (nas suas relações com os outros, na sua pertença a grupos, na exibição das suas preferências, na afirmação das suas rejeições…) sem desenvolver esta perceção de si próprio. “Conhece-te a ti mesmo”, aconselha um antigo ditado grego, reforçando uma máxima semelhante que já no Antigo Egito era difundida e que posteriormente não deixou de ser divulgada. Na verdade, perguntemo-nos: acaso conseguiremos pretender viver à altura das nossas esperanças e dos nossos sonhos se fingirmos que não nos conhecemos, procurando – ingenuamente – enganarmo-nos? Como conseguiremos (como propunha o filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson) ‘prender o nosso destino a uma estrela’ se, querendo olhar o céu, perdermos o solo sob os nossos pés porque não sabemos sequer onde estamos e que terrenos são aqueles que pisamos? Como poderemos, enfim, querermos mostrar-nos ao mundo e nele nos afirmarmos se não soubermos onde e como nos deveremos posicionar, em função daquilo que somos (com as nossas virtudes e com os nossos defeitos, pois somos humanos) e tendo em vista aquilo que queremos ser?…

Ora, uma boa parte de nos conhecermos e de nos compreendermos passa também por conhecermos e compreendermos o espaço onde nos posicionamos, ou seja, conhecermos e compreendermos o que é e o que foi o território onde vivemos – a nossa comunidade, a nossa cidade, a nossa região, o nosso país. O território que os nossos antepassados ajudaram a construir e onde viveram – esse território que já foi deles, que agora é nosso e que um dia será dos nossos filhos e dos nossos netos.

 

2 – A História ajuda-nos a compreender melhor o mundo.

 Não poderemos efetuar eficazmente o nosso trajeto pelo mundo sem procurarmos compreender como é que este funciona. Enquanto espécie e enquanto indivíduos, não temos outro mundo, apenas este. Impõe-se, assim, que compreendamos o seu funcionamento, para construirmos um enquadramento que nos ajude a viver tão gratamente quanto possível. Tal passa por compreender os avanços tecnológicos, a evolução das formas de governo, as conceções ideológicas, a maneira como se processou a ocupação dos diversos territórios e as relações que o ser humano com eles tem estabelecido, a forma como a sociedade tem encarado os inovadores e os criadores de beleza … Mas também passa, é claro, por contactar com manifestações de ódio e de violência, de egoísmo e de cobardia, de maldade e de perfídia, já que nem só de virtudes são feitas as sociedades e os seres humanos (pois, como bem indicou o filósofo francês Blaise Pascal, ‘o homem oscila constantemente entre o Anjo e a Besta’). Compreender o mundo como ele é passa, inevitavelmente, por procurar compreender o mundo como ele foi. E, ao aprendermos com os erros passados, poderemos ter uma melhor abordagem em relação à construção do mundo futuro.

 

3 – A História ajuda-nos a compreender melhor ‘o outro’.

Estudar História também implica, necessariamente, contactar com maneiras de pensar e de agir diferentes das nossas, protagonizadas por pessoas que, mesmo que tenham as mesmas nacionalidade, religião ou inclinações políticas que nós, ainda assim se encontram de nós muito distantes (não apenas distantes no tempo, mas também – e sobretudo – distantes nas suas conceções de vida e práticas quotidianas). Assim, por exemplo, será talvez mais fácil identificarmo-nos e construirmos afinidades com um islandês ou com um búlgaro atuais, que tenham aproximadamente a nossa idade, do que fazê-lo com um português do século XIII, com um africano do século XV ou com um sul-americano do século XVII. No entanto, contactar com a diferença, como sucede quando se estuda História, também nos familiariza com a existência de perspetivas alternativas, tantas vezes bem diferentes das nossas, em diversos domínios da vida dos indivíduos e das sociedades – perspetivas essas que, para esses grupos e para essas pessoas, faziam sentido, tinham razão de ser e moldavam a sua personalidade, condicionando profundamente muitas das suas ações. Este contacto com o diferente, se o fizermos visando a sua compreensão (mais do que fazê-lo para julgarmos criticamente essa diferença à luz dos nossos princípios e das conceções atuais), pode habituar-nos àquilo que não nos é familiar, àquilo que é diferente, àquilo que não integra a nossa maneira de ser. No entanto, o que não nos é familiar não tem necessariamente de ser detestável, só por nos ser desconhecido ou estranho. Ao estudarmos a História, se o fizermos sem uma atitude preconceituosa, mas antes procurando entender os contextos, as culturas e as práticas diferentes e frequentemente distantes no tempo, acabamos por adotar uma atitude que visa a compreensão do ‘outro’ – mas sem que (atenção!) isso tenha de significar a nossa passiva e indulgente aceitação de tudo o que esse ‘outro’ tenha feito.

 

4 – A História ajuda-nos a podermos ser melhores cidadãos.

Para podermos agir convenientemente na sociedade (numa sociedade democrática, é claro) impõe-se que sejamos cidadãos informados e com espírito crítico. Não é por acaso que as ditaduras sempre têm procurado esconder informação aos cidadãos sobre os quais lançaram as suas garras, impondo formas de censura (e de autocensura), a par da repressão daqueles que se atrevem a defender perspetivas diferentes das propagandeadas ‘verdades’ oficiais, da dura punição dos que não se conformam com o quotidiano que os rodeia, enfim, daqueles que, criativos e corajosos, ousam sonhar com outras realidades mais estimulantes e mais ricas de possibilidades – não é por acaso que, quando uma ditadura se procura instalar, os indivíduos mais esclarecidos são sempre os primeiros a ser presos, desterrados ou mortos (sejam eles poetas ou escritores, pintores ou músicos, professores ou líderes cívicos, jornalistas ou médicos, por exemplo), caso não se verguem aos ditames ditatoriais.

Ora, dificilmente pode alguém considerar-se um cidadão informado se não tiver efetivamente algum interesse em relação aos enquadramentos históricos da sua comunidade. E um cidadão informado, se é sempre um ‘perigo’ para as ditaduras, também é sempre uma ‘bênção’ para as democracias.

 

5 – A História ajuda-nos a tomar melhores decisões.

O desconhecimento da História impede-nos de aprender com os erros do passado, pelo que, como bem afirmou um dia o filósofo norte-americano George Santayana, ‘aqueles que não aprendem História estão condenados a repeti-la’. Através do estudo da História, aprendemos os contextos e as motivações, as razões pelas quais os nossos antepassados fizeram o que fizeram, os motivos que os impulsionaram a agir de uma determinada forma, as situações que suscitaram as suas reflexões, os seus comportamentos e as suas decisões. Essa aprendizagem – assim o esperamos – pode ajudar-nos a tomar melhores decisões e a evitar voltar a cair, na atualidade, em erros já cometidos noutros tempos.

A História, pois, é muito mais do que apenas memorizar datas, batalhas ou nomes e tem uma importância muito maior do que aquela que, por vezes, se lhe procura atribuir. Como todo o conhecimento humano estruturado, a sua plena apreciação e utilização também apela à memória em relação às realidades que se constituem como seu objeto de estudo. Da mesma forma que se espera de quem estuda Medicina que não confunda os órgãos do corpo humano ou de quem estuda Engenharia Civil que não se baralhe com as caraterísticas estruturais dos diversos materiais utilizados em construção, também se espera de quem estuda História que conheça (e, para tal, memorize) certos contextos relevantes, determinadas circunstâncias importantes e diversos eventos significativos. E isto não tem necessariamente de ser mau, pois, na verdade, uma das caraterísticas do ser humano é precisamente ser um ‘animal que recorda’ (não é por acaso que a perda de memória que surge na sequência de certos traumas ou acidentes é uma das maiores angústias que uma pessoa pode enfrentar, pela perda de referências essenciais que daí advém).

O estudo da História é, em suma e para concluir, um nosso privilegiado meio de acesso à rica, multifacetada e extraordinária experiência humana.

João Garção