Por aqui passaram britânicos

 

JONAS PULIDO VALENTE


“O meu nome é Jonas Pulido Valente. Tenho 31 anos e sou um bilingue funcional. A minha vida já me levou do Oeste selvagem ao Extremo Oriente. I’m a good poet in English too. O meu livro Diet Craic foi publicado nos EUA, no Reino Unido e no Japão e estou pronto para mais”


A Tailândia seria perfeita no sentido corrente de perfeição generalizada. Conseguiram elevar um sorriso, do estado central até às fronteiras de uma maneira que convence que o sorriso estava lá anteriormente. Sião ou não, antes de passar a ponte de Mae Sot para o Myanmar vemos algum comércio e alguns pedintes antes de chegar ao outro lado. Passando para o lado do Myanmar vemos outra estirpe de pedintes, mais comoventes, desoladores da alma, cobertos de pó pedindo algum. Nós não tinhamos nenhum, excepto um maço de bhats, euros e dólares para trocar assim que chegássemos ao Myanmar, e a troca teria que ser integral. Foi feita num pequeno bureau após a fronteira que consiste num simples chalé individual onde se entra e é encarado por um funcionário em uniforme militar numa secretária de madeira sólida num gabinete também de boa madeira.

Myawaddy, o nome da terra do lado do Myanmar parece uma vila do faroeste em crescimento. Poeirenta, com alguns vendedores na rua e aquela sensação de electricidade no ar. Perto da terra parámos num local que parecia usar metade da corrente eléctrica da sua freguesia, uma enorme cantina indiana, recurso standard da Ásia, onde se come muito bem.

A viagem de carro começou para Hpa-An, cinco horas. O que tinha reparado nas minhas várias vezes na Tailândia é que as estradas estão todas acompanhadas por postes de electricidade paralelos, cabos e cabos e cabos e cabos. Parece que cada poste é uma bananeira eléctrica que alimenta, de poste a poste o país todo.

No Myanmar não existem coisas como postes, nem muita intervenção humana. Desde a fronteira até à região mais central onde está Hpa-An, só se vê natureza, belas colinas, ravinas, escarpas desde esta montanhosa zona, o fim dos Himalaias, que se desdobra em campos com palmeiras esporádicas e água que brilha tanto como o Sol, pois o retorce na felicidade de ventos que descem montanhas.

A estrada, por vezes alcatroada, só não levantava poeira à velocidade que íamos porque estava molhada e em papa, no entanto a paisagem não se mexia, desde há mil anos. Estávamos a presenciar a Ásia que o português Filipe de Brito governou como Rei do Pegu, longe da Europa, até ser empalado vivo pelo povo que governava.

Uma das nossas muitas paragens, certamente a melhor, foi quando o motorista encostou para descansar no gigantesco vale de água, campo e palmeiras que nos rodeava. As casas nesse ajuntamento eram feitas de bambu sólido e de árvores mais espessas, não parecia haver sinais de electricidade, mas o Sol e reflexo da água faziam parecer com que nós estivessemos muito mais iluminados que em Shinjuku, Piccadilly, ou Times Square. A iluminação era quase shamânica, de uma forma que a aldeia parecia a única digna paragem milenar, recorrente ao longo das nossas vidas.

Uma senhora ofereceu-nos uma folha de palmeira com um líquido que o motorista nos levou a tomar.

Dentro da folha existia uma bolacha fácil de mastigar, suposta ser cuspida juntamente com o resto da goma depois de um minuto ou dois.

Essa mistura, mais tarde provaria ser potenciadora de uma euforia maior que o álcool, e amiga do mesmo quando misturada. Era a tradição esquecida que procurava desde que entrei nos livros, e lá me dediquei sobre finalidades asiáticas.

Ainda nas colinas tinha visto uma estátua de Siddartha, o primeiro Buda, a ser puxada por uma tuk-tuk sem cobertura. Desceu os Himalaias conosco, na falésia mais sã, a falésia menos visitada, a falésia que nos levaria para Hpa-An, a terra do templo da Árvore, onde se daria a próxima intervenção na nossa anima, enquadrada nesta sequência de eventos.

Depois dos campos planos demos com o início de montanhas tímidas, estradas em curva que nos levaram a largo da cidade, junto a um enorme lago. Punha-se o Sol.

Encontrámos a custo o hostel, tinha alguns camones, uns aventureiros, outros idiots savant e um recepcionista que não conseguia falar com ninguém. Era o início do progresso, da nova era, apenas quatro anos antes o país tinha sido aberto a estrangeiros, aproveitando o Asia Boom que nos levara ciosamente e críticos do mesmo pela península malaia acima até chegar a meio arco da Índia. Digo meio-arco pois ali o mar divide três países em forma de acordeão, chegando ao outro lado do país e dividindo ainda três outros países, portanto um local interessante de estudo e de extenso conhecimento de terreno. E o Myanmar, que está no meio e ainda pouco saturado, encontrando-se sítios como Bagan, uma terra com mais de mil templos. Também há centenas de braços de rio por onde subir na terra do búfalo de água, ou dezenas de refrigerantes malaios para abrir na terra das novas lojas de conveniência de temperatura ambiente e onde se vende o que se pode.

Encontrámos o nosso quarto e eu, esquecendo o repelente para o local com os mosquitos mais perigosos daquele lado do meridiano de Greenwich, deitei-me na cama e tornei-me ocidental.

Ao descansar era ocidental, um puto que queria um sumo, ou uma outra merda, que preferia estar deitado a ouvir uma banda que tinha jams muito longos e ter literacia sobre o mesmo. Senti-me como se devem ter sentido os britânicos de licença, deitados à espera que as monções passassem ali, tão longe dos seus pontos de referência. Um império recente e pujante que se cruzou com um local milenar. Europeus mal-habituados que simplesmente alugam um carro e cruzam o templo deste planeta. Mais tarde, percebi a atração do centro cosmopolita do Myanmar quando fui à capital de Rangoon, enfeitiçado pela mesma mecânica de cidade que atrai os meus semelhantes, mas ali, deitado em Hpa-An a ver os mosquitos, eu era um puto, numa cama, num subúrbio de uma vila milenar, num vale menos antigo que as montanhas que subiam dali até ao Nepal. Nesse momento senti-me um ocidental, um cabrão e também um sortudo.