MUSEU BOCAGE / UM MUSEU COLONIAL / Maria Estela Guedes Fotos de Francisco Reiner 26-11-2004 www.triplov.org |
Foto: O que sobrou do incêndio de 1978 |
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UM MUSEU COLONIAL |
O Museu de Lisboa, como se chamou na origem, foi fundado por José Vicente Barboza du Bocage, em 1858, na Escola Politécnica. Uma vez independentes as colónias europeias na América, e com elas o Brasil, no que nos diz respeito, as atenções centraram-se em África, onde a Europa buscava matérias-primas e mercado para os seus produtos. A partilha não seria pacífica e encheu o continente negro de exploradores, informadores, missionários, quantas vezes em regime de acumulação das três funções, e por fim alguns colonos. A população total de África sempre foi mínima, em comparação com outras regiões do Globo, e penosa e lenta a colonização. A malária e a tzé-tzé eram os principais obstáculos a que os europeus se fixassem. A exploração científica era argumento para manter as colónias, já que o direito histórico perdera para a exigência de civilização e progresso, na Conferência de Berlim. Para Portugal a decisão era grave, pois a nossa penetração no interior limitava-se às faixas junto ao litoral. Caconda, em Angola, era o ponto mais avançado de Portugal em África. Sendo imperfeito o conhecimento das colónias, e fraca a exploração comercial, fraco era também o contributo civilizador. Ter o conhecimento científico das colónias significava possuí-las, daí que se chamassem, não colónias, sim possessões, como é nítido nas várias listas de "Aves das possessões portuguesas d' Africa occidental que existem no Museu de Lisboa", de Bocage (1). Os seus trabalhos científicos contêm muita informação política, visto que a ciência era declaradamente um instrumento de poder e de propaganda. Como político e como cientista (2), Barboza du Bocage terá sempre em mira o desejo de provar à comunidade internacional que Portugal era exemplo de potência civilizadora, argumento invocado mais fortemente quando tomámos o Daomé sob protectorado, em meados da década de 80. Acabar com a escravatura, civilizar e promover o desenvolvimento económico das colónias era o programa da Europa a justificar a colonização. Tudo isto depende do conhecimento prévio dos territórios, e esse conhecimento é assegurado pela ciência, que nesta época pode abrigar-se debaixo do título geral de Geografia, pois a ciência da Terra abrange as terras, as rochas, os animais e as plantas. Bocage foi um dos co-fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, da Comissão de Cartografia, e um dos impulsionadores das travessias africanas levadas a termo por Hermenegildo Capello, Roberto Ivens e Alexandre Serpa Pinto. Atravessar África, de costa a costa e do centro ao sul, era a melhor prova de que o interior do continente não oferecia segredos. Os três militares coligiram exemplares da fauna, da flora e da geologia, que vieram enriquecer o Museu de Lisboa, ao longo dos percursos africanos destinados a mostrar ao mundo que Portugal conhecia profundamente a África, tendo por isso direito a colonizá-la. Os mais importantes exploradores-naturalistas portugueses nas colónias, designados por Bocage, e portanto seus homens de confiança, são José de Anchieta, no ponto mais avançado de Portugal em África, a Caconda, em Angola (3), e Francisco Newton em quase todas, de São Tomé a Timor e de Cabo Verde ao Rio Cunene, no sul de Angola. Durante dez anos Newton teve como base oficial a ilha de São Tomé, a única colónia que dava lucro, no período em que acabavam de se formar as grandes colónias do Congo e nós tomávamos o Daomé sob protectorado (4). Os exemplares enviados por Anchieta, durante mais de trinta anos, e por Newton, durante uns vinte, deviam constituir o corpo mais substancial das colecções, e até à República constituiram, segundo creio. Hoje, nada resta do que enviaram para os museus portugueses de zoologia, mas algo subsiste ainda nos estrangeiros. Também restam colecções de plantas no Herbário do Jardim Botânico de Lisboa, em especial as coligidas na ilha de Ano Bom, por Francisco Newton, na viragem do século. A política pressionava os governadores, médicos, farmacêuticos, e outros militares e funcionários, a enviarem exemplares para os museus. Para tanto, desde o século XVIII se publicavam instruções sobre o modo de coligir, conservar, embalar e remeter os exemplares. Estas técnicas faziam parte do curso que Domingos Vandelli ministrou aos exploradores-naturalistas que em 1783 partiram para as colónias, e ainda existe, sob a forma de manuscrito, na Academia das Ciências de Lisboa (5). Bocage também publicará as suas instruções (6), cem anos mais tarde, aproveitando para contar a história do Museu e para publicar uma lista das aves de Portugal, que durante anos seria uma referência indeclinável, por exemplo para o naturalista Rosa de Carvalho, como é nítido nas cartas que escreve a Bocage (7). De outra parte, havia permutas regulares com os museus da Europa, em especial o British Museum, dirigido por John Edward Gray e depois por Alfred Günther, o de Paris, onde estavam Paul Gervais e os Duméril, e o de Berlim, sob a chefia de Peters, que fizera a exploração de Moçambique. São estes os mais importantes contactos científicos de Bocage no estrangeiro, e também os seus modelos: a Gray, Bocage admirava tanto que tinha o seu retrato na mesa de trabalho. O Museu de Lisboa abriu com um núcleo de colecções oferecidas, umas pela Coroa, que sempre manifestou interesse pela História Natural - caso de D. Carlos de Bragança, cuja carreira como ornitólogo e oceanógrafo viria a ser interrompida pelos carbonários, com o regicídio -, outras vindas do Real Gabinete da Ajuda, através da Academia Real das Ciências. Os exemplares da Ajuda eram do tempo de Domingos Vandelli, século XVIII. Vandelli trouxera de Itália dois museus, que vieram a constituir o núcleo inicial do Museu de Zoologia da Universidade de Coimbra. É possível que houvesse peças suas no Gabinete da Ajuda. No entanto, as mais significativas resultavam das viagens filosóficas de João da Silva Feijó a Cabo Verde e Guiné, de Manuel Galvão da Silva à Bahia, a Goa e a Moçambique, de Ângelo Donati e José António da Silva a Angola, e de Alexandre Rodrigues Ferreira ao Amazonas. Estas colecções, em especial as do Brasil, tinham sido objecto de cobiça por parte de Napoleão, e alguns objectos foram levados para o Museu de Paris durante as invasões francesas, por mediação do naturalista Geoffroy de Saint-Hilaire, que deixou colecções de minerais a título de permuta (8). Este episódio da história da ciência está mais mitificado do que esclarecido, porque remata um período brilhante para a História Natural portuguesa, cercado, no passado próximo e no futuro, até 1858, por um grande perímetro de sombra e vazio. A exploração de Portugal continental, e refiro-me aos correspondentes, amigos e colegas de Bocage, está a cargo de uma plêiade de naturalistas, entre os quais salientaria Paulino de Oliveira, Rosa de Carvalho e Júlio Henriques, em Coimbra; os Tait, Isaac Newton, Sequeira e Augusto Nobre, no Porto; Bettencourt Ferreira, Baltasar Osório e Albert Girard, em Lisboa. Anthero de Seabra está ligado à Escola Politécnica e também à Universidade de Coimbra. Um interlocutor agressivo, cujo nome não se pode esquecer, que publicou trabalhos sobre a nossa fauna, como de resto muitos outros estrangeiros, foi J. von Bedriaga, da escola de Haëckel. Implantada a República, a Escola Politécnica desaparece. No mesmo edifício, surge a Faculdade de Ciências de Lisboa. A partir daí, sendo embora os mesmos alguns nomes, o paradigma científico desloca-se, e ao império classificatório sucede-se o estudo da Biologia. No tempo de Bocage, longo, o espaço privilegiado, em Portugal, para a publicação científica, foi o Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturais, da Academia Real das Ciências de Lisboa. O Museu Bocage teve a sua primeira publicação própria sob a direcção de Baltasar Osório, em 1909, as Memórias do Museu Bocage, um volume só com trabalhos do director (9). Em 1930, Arthur Ricardo Jorge criou os Arquivos do Museu Bocage, título que ainda se publica. A partir de 1860, os exemplares chegam um pouco de todo o mundo, a enriquecer as várias colecções - de estudo, de exposição ao público e de duplicados, necessários para permuta - mas sobretudo das colónias portuguesas da África ocidental, pois era aí que se travavam as mais violentas batalhas políticas pela posse de territórios. Por isso um dos livros de Bocage invoca o norte de Angola, a que não é hábito chamar Congo, como se Angola e Congo fossem duas distintas possessões portuguesas na África ocidental. Nós desejávamos mais Congo do que já tínhamos, mas quem ganhou foram outros exploradores, que não Anchieta nem Newton, sim Brazza, que deu à França o Congo-Brazzaville, e Stanley, que deu a Leopoldo o Congo Belga: "Herpétologie d'Angola et du Congo", eis o desejante título, algo diverso de outro de Bocage, apenas "Ornithologie d'Angola" (1877-1881), apesar de também incluir espécies da região de Santo António do Zaire e de S. Salvador do Congo. Vem de resto na sequência do título a informação que garante o interesse político da obra: "Herpétologie d'Angola et du Congo, ouvrage publié sous les auspices du ministère de la marine et des colonies" (1895). Este foi o período áureo do Museu Bocage, assim chamado ainda em vida do fundador, como devida homenagem. Barboza du Bocage morreu em 1907. Sucederam-lhe Balthasar Osorio e Mattoso dos Santos, na direcção do Museu Bocage. Em 1915, o museu, como espelho da política ultramarina, estava extinto. Em 1927, Arthur Ricardo Jorge principiava o seu mandato, conduzido sob o signo da água, pois foi para a fauna marinha de Portugal continental que deslocou os interesses, com a criação do Laboratório Marítimo da Guia e campanhas de colheita a bordo da Physalia, a traineira que então o Museu possuía. As salas de exposição ao público encerraram durante trinta e um anos, quase todo o seu mandato, só reabrindo antes de passar a direcção ao geneticista J.A. Serra. Por aquela altura, 1927-1929, a coberto das revoluções que precederam a tomada de poder por Salazar, explodiu uma bomba na Sala Africana, reduzindo a escombros o que já era forma extinta. José Antunes Serra toma a direcção, fazendo a surpreendente descoberta de que nada lhe chegara às mãos do que fora outrora o Museu Bocage (10). Erra o alvo ao acusar A. Ricardo Jorge, pois a extinção era anterior a 1915 e as suas motivações tinham raízes no Systema Naturae, de Lineu, no século XVIII. Depois viria G.F. Sacarrão, mais tarde o 25 de Abril. Em 1978, o que já era cinzas de remotíssimas extinção e explosão, conseguiu alento para se erguer em labaredas. Foi um incêndio grandioso que atingiu também outras secções do edifício central da antiga Escola Politécnica. As fotografias de Francisco Reiner dão-nos uma imagem de museu colonial, o clássico museu do século XIX, concebido segundo um ponto de vista classificatório, como os de Paris, Berlim ou Londres. Como naturalista da fauna marinha, director que foi do Museu do Mar, Francisco Reiner privilegiou os animais aquáticos. Entre eles, algumas celebridades: a Alca impennis, cujos ovos, de tão raros, e por isso tão caros, mereceram dos naturalistas a designação de "ovos de ouro" (11). E o Uacari-guassú, exemplar único, enviado do Brasil por Alexandre Rodrigues Ferreira, no século XVIII (12). Espécime tão cobiçado por Napoleão como a pedra de cobre nativa (13) e a tartaruga lira (Dermochelys coriacea). O Macroscincus coctei também era uma preciosidade, para recordar um epíteto caro à naturalista Maria Nogueira, que a seu cargo teve as preciosidades todas do Arquivo histórico, e com facilidade todo o exemplar museológico considerava precioso. E como eram lagartos preciosos, Bocage declara que o existente no Museu de Paris tinha sido levado por Geoffroy. A pedra de cobre não saiu de Portugal porque Vandelli convenceu Saint-Hilaire de que era uma pena desaparecer do Gabinete da Ajuda o seu principal ornato; a tartaruga-lira, que deve ser uma que deu à costa em Peniche também no tempo de Vandelli, ficou porque os ingleses entraram em Lisboa mesmo na altura em que ia ser encaixotada; do Macroscincus coctei, de Cabo Verde, de que ainda existe no Museu de Paris uma pele montada, sem crânio, e um crânio na galeria osteológica, não tínhamos necessidade, havia pelo menos doze exemplares no Museu Bocage: três do século XVIII, enviados por João da Silva Feijó, e os outros, recebidos vivos na maior parte, fruto das explorações de Frederico Hoppffer, Serpa Pinto e Francisco Newton (14). Porém o único exemplar do peixe amazónico, Uacari-guassú, seguira viagem para o Museu de Paris durante as Invasões Francesas. Bocage, importante político e hábil diplomata, conseguiu que os franceses devolvessem esse único exemplar, que fizera parte das colecções do Gabinete da Ajuda. Não sei se esse peixe, renomeado hoje como Pseudoacanthicus histrix, é conhecido no Amazonas e já foram capturados exemplares pelos zoólogos, ou se passou a espécie extinta sem nenhum indivíduo que a represente. Se assim for, as imagens que apresentamos ganham o valor das peças que faziam jus aos gabinetes de curiosidades. Aliás, é o próprio Bocage quem, na introdução às suas Instrucções praticas sobre o modo de colligir, preparar e remetter productos zoologicos para o Museu de Lisbôa, classifica o Museu de Lisboa, na fase inicial, como não passando de um gabinete de curiosidades. |
(1) Bibliografia de J.V. Barboza du Bocage em linha: http://triplov.com/bocage (2) Biografia de Barboza du Bocage em linha, em http://triplov.com/bocage_biografia.htm (3) José de Anchieta. Directório em http://triplov.com/hist_fil_ciencia\anchieta (4) "Francisco Newton, cartas da Nova Atlântida": http://triplov.com/newton (5) Domingos Vandelli - «Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o flósofo naturalista nas suas peregrinações deve principalmente observar, por D.V.». Cópia de Frei Vicente Salgado. Ms. vermelho, 405, 109 pp., 1779, Academia das Ciências de Lisboa. (6) J.V.Barboza du Bocage - Instrucções praticas sobre o modo de colligir, preparar e remetter productos zoologicos para o Museu de Lisbôa. Imprensa Nacional, Lisboa, 1864. (7) Cartas de Rosa de Carvalho. Em linha: http://triplov.com/rosa (8) Maria Estela Guedes - Domingos Vandelli & Agostinho de Macedo. Sol XXI, 12, Lisboa, 1995. Em linha. Veja o directório de Domingos Vandelli, em http:// triplov.com/ hist_fil_ciencia\vandelli\index.html (9) Bibliografia de Balthasar Ozorio em http://triplov.com/biblos\osorio.html. (10) Ver o directório de J.A. Serra, em: http://triplov.com/serra/ (11) Ver o meu trabalho "O ovo de ouro", em http://triplov.com/zoo_ilogico\alca_impennis\index.htm (12) Ver o artigo de F. Brito Capello sobre o Uacari-guassú, no Zoo, em http://triplov.com/zoo_ilogico/ (13) Dossier sobre a pedra de cobre nativo em "Discursos e Práticas Alquímicas". Volume II (2002) - Org. de José Manuel Anes, Maria Estela Guedes & Nuno Marques Peiriço. Hugin Editores, Lisboa, 330 pp. Em linha: http://triplov.com/coloquio_02\index.html (14) Maria Estela Guedes, "Memórias do lagarto cabo-verdiano". O Escritor, Revista da Associação Portuguesa de Escritores Nova Série, 1, 1990. |