Poetas traduzidos

 

 

 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO


Traduções de ns dadas a lume in Poesia Hoje, semanário O Distrito de Portalegre, Novembro de 2024


MAGLOIRE SAINT-AUDE

Reflexos

Atado, franzino, o mofo do nada

na minha gravata de cavalo

flácido como o desconhecido e sobre os caminhos.

 

Lamentações nos escarros dos mortos.

 

A negligente franquia paga para falar

fora das minhas ancas

como um alazão árabe.

O êxtase  o luto  a luxúria

na gordura dos repiques  dos estertores.

 

No calafrio das rendas, ó minha bela emoção

– frio de lâmpadas frias.

 

Doce e gelada a rua da Madalena

hortelã-pimenta de extintos lumes.

 

Eu saio dos liames do meu sol invulgar.

Serei eu o intérprete dos séculos

a escultura dos ventos dos centauros?

 

Desço, desenraizado repetido

num cabelo antecedido p’los meus dedos.

 

E como a suavidade da carícia

para onde vai, ó paz, o meu coração?

 

No galope dos mudos zeladores

dobro-os   congelo-os

– castos de vida

nos faróis recortados.

 

Amargo é quem nasce para os elogios

e a vós deseja, espíritos

enclausurados e marmóreos

 

Pois este é o poema do prisioneiro

o tilintar dos sóis rememorados

 

E as matracas enterradas

no coração do peregrino.

 

Eis o meu sudário sem coroa

na vaidade deste baile

nos saltos de Antinéa

enluvada por este ideal.

 

A estrela do mendigo ouve

ouve o respirar vazio

da minha  morte

da minha angustiada estupefacta

escrita

este meu lenço rendilhado de cambraia.

 

Retorcidos nos meus olhos apagados

a caneta e o poema que não atende a causas.

 

Limitado à desgraça sem repouso

Edith é a minha própria face lívida.

 

Mas meus olhos sempre os retiro

do enterro dos olhos ressuscitados…

in “Poèmes”

 

(Esta tradução, a primeira em língua portuguesa, foi feita a partir dos fragmentos poéticos encontrados na OPUS INTERNATIONAL nº 19/20. O volume inteiro deste autor haitiano teve recentemente a sua republicação em França, com chancela da Gallimard.)


CÉLINE ARNAULD

Os meus três pecados Dada

 

Sobe, sobe a colina

oh roda esmagada roda

quebrada pupila amarga

amargo abrunho dos bosques

oh tu que sobes assobiando

e que és um cobertor velho

o hino das crianças amadas.

Os olhos dos papagaios são bolinhas enganadoras.

Vós não sois deuses, mantilhas

ou escuros guarda-chuvas, nem mecanismos de toque

de alvorada.

Vós sois o anfitrião dum Amphion sem lira

uma vela sem poesia

uma majestade sem reflexos de música

o nascimento semanal dum girassol

– o girassol da minha prece –

e os meus olhos de roda quebrada

que envio ao grande mágico Merlin.

Para me castigar irei imolar-me numa adega.

 

Este é o pecado do fogacho quase extinto.

Ah sorte malina!

Beber uísque numa flor-de-lis

discussão espiritual da minha traição a sós

com a sua imagem

e depois dormir, dormir até que uma esmola

dos olhos tombada deslizasse nas minhas veias

Mas o que dei ao papagaio

não, para vós não é –

Amizade não se escreve em estenografia.

 

E é sempre essa roda, esse suplício

quebrado que me atormenta.

Para consertá-lo tomo

Merlin como testemunha

a escada como ícone

o vidro como microscópio

o copo como microscópio

e as minhas belas pupilas

como a linguagem mais formosa.

 

E depois, já que tudo acabou

iremos deitar abaixo

o edifício construído

sobre uma prisão e um suplício

na adega das discussões espirituais

 

do seu calvário de uísque.

 

(Este poema da co-fundadora e directora da revista “Projecteur” e mulher do poeta Paul Dermée foi extraído de “L’Aventure Dada”.)


BENJAMIN PÉRET

Tempo diferente

 

O sol da minha cabeça é de todas as cores

É ele que ilumina as casas

de palha

onde vivem os senhores saídos das crateras

e as belas mulheres que em cada dia nascem

e em cada tarde morrem

como os mosquitos.

Mosquito de todas as cores

que vens tu fazer aqui?

O sol   este sol    é para cães

e o calor sacode as montanhas

enquanto as montanhas nadam

sobre um mar pleno de luzes

onde o calor e o peso da vida

não existem

– onde eu não meteria nem a ponta do meu pé.

 

A doença imaginária

Eu sou o cabelo de chumbo

que viaja de astro em astro

que se tornará em cometa

e num ano e num dia te destruirá.

 

Mas por enquanto não há dias nem anos

existe apenas uma planta viçosa

de que desejas ser semelhante

 

Para ser irmão das plantas

é preciso crescer na vida

ser sólido quando na morte

Ora eu sou somente imóvel

e mudo como um planeta

Vou banhando os pés nas nuvens

que como bocas em volta

me condenam a ficar

entre os que parados estão

e que as plantas desesperam

 

No entanto um dia

os líquidos revoltados

lançarão para as nuvens

armas assassinas

manejadas pelas mulheres azuis

como os olhos das filhas do norte

 

E esse dia será dentro de um ano e um dia.


TRISTAN TZARA

A primeira aventura celeste do Senhor Antypirine
(fragmento)

 

Nós declaramos que o automóvel é um sentimento

que já nos animou em demasia na lentidão das suas abstracções

e os transatlânticos e os ruídos e as ideias. Entretanto

exteriorizamos a felicidade, buscamos a essência central

e ficamos muito contentes por a esconder. Nós não queremos

contar as janelas das maravilhosas elites, pois que Dada

não existe para ninguém e queremos que todos percebam isso mesmo

uma vez que é da varanda de Dada, garanto-vos, que se podem ouvir

as marchas militares

e descer cortando o ar como um serafim nos balneários públicos

para urinar e compreender a parábola.

Dada não é loucura, nem sabedoria, nem ironia – olha para cá

a ver se me vês

gentil burguês.

A Arte era um jogo, uma noz, as criancinhas

juntavam as palavras com um guiso na ponta e depois choravam

gritavam a estrofe e calçavam-lhe botinhas de boneca e a estrofe

transformava-se em rainha para morrer um bocadinho

e a rainha transformava-se numa baleia e as crianças corriam

corriam até perder o fôlego.

 

Então chegaram os grandes embaixadores do sentimento

gritando historicamente em coro

psicologia psicologia ia ia

Ciência Ciência Ciência

viva a França!

Nós não somos ingénuos

nós somos sucessivos

nós não somos o contrário de exclusivos

de certeza que não somos simples

e sabemos perfeitamente discutir a inteligência.

 

Mas nós, Dada, nós não somos da sua opinião

visto a Arte ser uma coisa pouco séria

asseguro-vos

e se vos apontamos o Sul e o crime

para dizer empanturradamente ventilador

arte negra e sem humanidade

é para que o prazer vos sufoque

queridos ouvintes

amo-vos tanto  tanto

asseguro-vos

e adoro-vos.

 

(Nota – O critério usado nesta tradução foi absolutamente pessoal e obviamente específico. Assim, teve-se em conta não só o texto saído em “Poètes d’aujourd’hui” mas também a versão que dele nos dá René Lacôte no ensaio dedicado ao autor de “Maison Flake”.)


VICENTE HUIDOBRO

A tempestade

                    a Max Jacob

 

Noite de temporal

a escuridão morde-me o crâneo.

Os diabos

postilhões do trovão

foram de férias.

 

Ninguém passou pela rua

Ela não veio

tombou na esquina

e o pêndulo

quedou-se imóvel

já não oscila.

 

Por vezes o eléctrico

afasta-se voando

como os passarocos de fogo.

 

Na montanha

os rebanhos

tremem sob o temporal

E o cão maneta que tudo vigia

procura a sua sombra.

 

Vem mais para o pé de mim

faremos uma viagem maravilhosa.

 

No deserto africano

as girafas buscam engolir a Lua.

Não é preciso olhar

obrigatório espreitar

por detrás dos muros.

 

E a curiosidade alonga o pescoço.

 

Alguém se procura

se procura

e ninguém topa o caminho.

 

Eu escondo uma recordação

mas eis que é inútil olhar os meus olhos.

 

Ao derredor do meu lar

o vento rosna

E talvez que lá ao fundo a minha mãe

soluce.

 

O berro dum trovão fatigado

seriíssimo pousou no mais altivo cume.

 

in “L’aventure Dada”

(Nascido em Santiago do Chile (1889), faleceu em 1948. Autor, entre outros,  de “Altaçor ou a viagem em  paraquedas”.)