Na sua terceira edição (1970), este livro compõe-se de 23 textos. Não se tratando rigorosamente de contos - pelo menos alguns - eles apresentam-se como narrações. A maior parte é narrada na primeira pessoa verbal. Porém, textos na terceira ou dialogados remetem igualmente para a pessoa única do poeta-viajante, aquele que vagabundeia pelos muitos sentidos dos meses, regressando do estrangeiro coberto de pó (4). A grande ambição de quem parte e regressa seria encontrar ou ter encontrado o lugar da pureza absoluta, o paraíso livre, lá, onde estão a inocência e a ingenuidade primordiais: «Como se vai para Singapura». Para tal Oriente, imaginado por companheiro embriagado e louco (ruivo, «espinheiro de fogo», «inspirado como um relâmpago»), partirá o poeta. Naturalmente não chega a Singapura, porque Singapura não existe. Isso não tem qualquer importância, o lugar poético carece de situação geográfica :
«Às vezes chego a pensar que não existe nenhuma cidade com tal nome. Contudo, isso não é, nunca foi essencial. A pureza, essa existe, não há dúvida. E existe também uma revelação, uma conquista, que é deslumbradora.»
Em OPEV ("Os passos em volta"), o poeta figura como personagem central explícita da maior parte das narrativas, e implícita noutras. Em "Descobrimento», a pessoa narrada - ele - corresponde ao desdobramento da primeira em reflexão especular. Falar de si na segunda ou terceira pessoas, como se o sujeito não tivesse a consciência de ser uno, é processo destinado a bloquear a emoção. Neste sentido, a dissociação pode ter função anáIoga à da ironia. Em «Lugar lugares», texto quase inteiramente constituído por fragmentos de conversas sem explicitação de emissores, encontramos de novo as vozes, reflexos da única voz possível, instalada no centro do labirinto (52) .«Estilo» apresenta duas personagens em diálogo, mas uma delas está presente por referência da voz activa, não tem presença física nem sonora : o poeta fala com alguém invisível para o leitor, as falas de tal interlocutor foram eliminadas do texto. Sabemos que por vezes o interlocutor interroga o paciente (a situação evoca a consulta psicanalítica) através das explicações dadas pelo último.
Inversamente a estes modos de narrativa autobiográfica na primeira pessoa, ou na terceira como expansão da primeira, há o texto narrado na primeira pessoa, quando, dada a sua índole histórica, se esperaria que fosse na terceira. Caso de «Teorema», curiosa versão do episódio relacionado com o assassínio de Inês de Castro. A narração vai ser feita por eu, o poeta assassino assassinado: «Nele tudo ousa. / Vai morrer imensamente (ass)assinado» (33). No poema de que citamos esta frase final também aparece a narração na terceira pessoa. Trata-se contudo de poema explicitamente autobiográfico: «Retratíssimo ou narração de um homem depois de maio» (33) .
Em qualquer das situações apontadas a pessoa que narra ou é narrada corresponde sempre à imagem expansiva do poeta: «O minotauro identifica-se: o poeta, escrevente. Mas está no centro do labirinto, e aquilo que perpassa na conversação dos comentadores não cifra o modo dele, nem o sentido», escreve-se em «Profissão: Revólver» (52) . Ora, o comentador vem fazendo grande esforço divinatório para decifrar modos e sentidos ao Minotauro.
O sujeito, o poeta escrevente (ironia ?) , constitui o centro do seu próprio labirinto de sinais, que o devoram, que ele devora: palavra é corpo e este corpo vive em palavra, em si ambos confusos; todas as demais vozes são imagens do mesmo, produzidas pela mesma garganta, apontando o abismo da carta, onde tudo se cala, onde a fal(t)a se faz silêncio. A autodevoração através da poesia será visível em «Teorema», aliás um pouco por toda a obra, particularmente em «Retratissimo ou narração de um homem depois de maio» (33). Tal facto já tem sido apontado, não será de mais insistir, por se tratar de entendimento e vivência básicos da/na poesia do autor. Em «Estúdio», observe-se o processo antropofágico por parte do poema:
«Deus ergeu-se do meu trabalho de poeta embriagado pelas mãos. E já então era Deus a minha própria morte. Porque o poema devora a mão que o escreve, com monstruoso amor. Que o vento me arraste sobre as constelações azuis, as mais jovens estrelas - a mim, rosa de mim mesmo cravada nos altos labirintos e nos enigmas mortais.»
A poesia institui-se espaço de indagação, labirinto de enigmas. Ao tocar os lugares de revelação, o poeta despedaça-se nos próprios enigmas - mortais - da palavra. O que se exprime, e com veemência, será a destruição do poeta pela comunhão íntima estabelecida com a poesia.
Os sinais narrados em OPEV correspondem a aspectos vários de um percurso cujo ponto de partida é a demanda do «Estilo» (1º texto) , e cujo ponto de chegada - a «Trezentos e Sessenta Graus» (23º texto, portanto último) de distância do lugar da partida - com «Estilo» coincide. O título «Os Passos em volta» exprime precisamente este circuito. Alguns sentidos do itinerário cíclico em universo curvo (retome-se a Ouroboros) serão o objecto deste capítulo.
A demanda do estilo é o ponto de partida e o ponto de retorno para a viagem de empreendida pelo poeta. Estilo remete evidentemente para questões de escrita. Contudo, no livro, o estilo será essencialmente o modo inquiridor de estar no mundo, possibilitado pela deambulação em lugares desconhecidos. A movimentação representa das linhas de significação mais importantes na obra herbertiana, constituindo um tema central, e de acordo com o estilo dinâmico analisado no capítulo anterior. O estilo só se prende à escrita na medida em que a escrita exprime o ritmo interior vital do poeta. Para viver é necessário ter um estilo, a visão coesa e orgânica do mundo, e a capacidade de remeter indivíduo e acidentes individuais para o núcleo de significação que os determina e coordena. Ter um estilo significa ser capaz de equacionar a própria vida nos seus múltiplos aspectos : relacionar-se consigo e com o mundo:
«a nossa vida apresenta-se então ali como algo... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar tudo muito depressa. Há, felizmente, o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos : o estilo é aquela maneira subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação.» («Estilo»).
O poeta percorre as múltiplas cartas na situação de estrangeiro, em busca da casa que será a sua. Encontra-a no termo da viagem : «Trezentos e sessenta graus» relata o regresso a casa do filho pródigo. O ponto a onde se chega é sempre o lugar de onde se partiu, partidas e regressos interminavelmente repetidos ao longo da vida e dos poemas.
O nomadismo constitui o primeiro estilo de vida para o sujeito que, não sendo um herói, vai contudo avançando por etapas ao longo do destino que em parte ele próprio traça para si, e progressivamente vai superando os obstáculos representados por/em cada narração, até cumprir por inteiro a tarefa que lhe cabe.
Cada texto funciona como degrau, sinal no percurso. Degrau será não somente a estadia solitária numa «Holanda» que ignora o fogo, mas também um incidente relacionado com o poder (a prepotência) do sistema social, em «O grito» (este texto tem curiosa montagem, por funcionar em dois planos, com duas narrativas justapostas, correlacionadas pela presença da mesma personagem narrada: uma espécie de sobreimpressão de imagens) , ou o mudo e solitário encontro com segunda pessoa «Duas pessoas»), ou ainda o relato dos últimos instantes de vida da Velha Avó jovem, em «Equação». Degrau, o novo texto que se escreve, a criatura viva capaz de se erguer do lugar do dejecto, do que é abjecto - as retretes de Paris. Também aqui a criação poética, no lugar que a sociedade reserva a quem escreve - contra isso, contra a abjecção: « Vida e obra de um poeta». Não espanta, por consequência, a afirmação: a poesia é feita contra todos (45). De facto, a poesia é assunto de carácter estritamente pessoal e intransmissíveI. Do confronto entre poeta e poesia só o poema se transmite, e este pode acabar por ser apenas o resíduo de operação oculta.
Em suma, os obstáculos da viagem fragmentária são os inúmeros curto-circuitos mais ou menos explosivos, mais do que menos, na vida e obra deste poeta. Tudo quanto se escreve vai instaurar a topografia do próprio corpo, aquele mapa arroteado por um vergão de ouro (13). A descarga eléctrica vinda do confronto com os outros e com a poesia é proporcional ao quantitativo, da voltagem interior, neste caso, maior .
Assinale-se, entretanto, ser a solidão o maior obstáculo no caminho do poeta. Ainda aquela a que o pavor obriga, ou essa em especial. Fora da comunidade dos poetas e dos loucos, o poeta está sempre só (45), porque se move em sistema de vida diverso do social. Por esse motivo o interlocutor de «Estilo» está ausente, nada entendendo da loucura poética.
A solidão, relativamente aos indivíduos integrados no corpo social, sem raízes noutro corpo que não seja esse, será o pano de fundo na viagem através da Europa. Mesmo nas narrativas em que aparecem personagens em diálogo com ele, o viajante está só, pensando talvez em Singapura, lugar possível de Utopia. Apenas em «Polícia» a solidão se dilui um tanto na solidariedade com Annemarie, dadas as circunstâncias de serem dois contra todos. É a solidão que o leva ao desespero e desesperança, à exasperação mais radical. Facto desencadeador da negação de metafísicas, que move à reificação do transcendente num comboio ou num lugar, como sucede em «Escadas e metafísica», «Os comboios que vão para Antuérpia» e «Como se vai para Singapura». Toda a transcendência e sobrenatural se tornarão concretos, incarnados por objectos simples, reais, quotidianos, objectos instauradores do espaço sagrado - o espaço do imaginário instalado no corpo.
Em Herberto Helder não há universos mitológicos, nem religiosos no sentido habitual; o que existe, e em profundidade, é um universo mágico, sacral. O sagrado, tal como a poesia, será de novo a cosmovisão e cosmovivência estritamente pessoais, subjectivas; poeta e criança erguem tal universo contra tudo e contra todos.
A deambulação representa o estilo de conhecer, e quaisquer "Lugar lugares" (neste conto, lugares-comuns e sua cínica subversão; com efeito, as revoluções colectivas são baratas e saldam-se a preço de fim de estação), para lá de eventualmente poderem assumir categoria geográfica concreta (embora no livro se afirme a inexistência da geografia, por serem do rosto as topografias), exprimem sobretudo o instante de clarividência, tendo por isso valor atópico : na Utopia, a remota raiz da redenção - talvez um dia de Primavera.
Conhecer equivale a viajar, mas viajar (no sentido mais raso do termo) pode não trazer qualquer acréscimo de saber. Não será por o poeta viajar através dos mapas políticos europeus que daí lhe virá o saber mais do que já sabia. Pode até acontecer que a viagem o situe dentro dos limites da realidade pensada, e por isso reconhecível, como se lê parabolicamente em «Descobrimento». Esta narrativa é quase central, quer por razões topográficas (em 23 textos é o 11º), quer por encerrar uma das chaves do enigma.
«Descobrimento» é um título que evoca o tema da viagem e sentidos afluentes. Também o poeta, à semelhança de outros viajantes, inicia a aventura do descobrimento de novos mundos, de pontos de referência na estrada que conduz ao reino de Utopia: de Singapura. Por consequência, Utopia será o destino, mas não europeu ou asiático ; o mundo que o poeta descobre - Antuérpia - é um velho mundo (como a Velha Avó), fechado sobre si mesmo, onde se fala estrangeiro. A realidade oferecida aos olhos, sendo novidade (como a Avó jovem), nem é nova nem outra. O grau de desconhecido apresentado pela cidade não basta para que ela possa ser encarada como lugar do radicalmente diferente. Ou então, o real detido pela cidade não se manifesta ao viajante como o instante de ruptura - o encontro com a verdade absoluta. Antuérpia não é Singapura, nem dela partem navios com destino a Singapura; mas Singapura será o comboio onde o poeta viaja.
Em «Descobrimento» o estrangeiro caminha por uma rua que desagua numa praça (a praça, tal como o quarto, será topos comum a grande número das narrativas de OPEV) e continuando o percurso vem ter sempre à mesma praça. A rua tem forma circular e durante muito tempo o estrangeiro mais não faz que dar passos em volta, sem conseguir atingir o centro da cidade - o coração do labirinto. A segunda volta nada traz de novo - à excepção do espanto desencantado - e para vincar bem o reconhecimento aparecem dois pontos de referência apenas local - inoperantes - sob a forma de motivos repetitivos: o anúncio luminoso da Packard (falso anúncio, pois outra luz se demanda que nunca é eléctrica) e a cervejaria onde o poeta entra de cada vez que lhe passa defronte. A cerveja, sendo bebida privilegiada - uma estrela num copo (13) - não age como noutras circunstâncias agiria o mel, ou seja, enquanto droga susceptível de provocar a loucura sagrada.
O conhecimento é negativo, segundo a ordem literal das coisas. Porque, se todos os lugares se equivalem topograficamente, sendo quase nula a viagem histórica no espaço da realidade social, há sempre, no plano mental, um descobrimento: o da nulidade de quanto se apresenta como aparência das coisas.
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