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MARIA ESTELA GUEDES
Herberto Helder, Poeta Obscuro
Maria Estela Guedes
Herbert
o Helder: Poeta Obscuro.
Moraes Editores, Lisboa, 242 pp.
1ª edição (esgotada), 1979. Edição on-line : Agosto de 2002.

V - PORTAGEM
O CORPO O LUXO A OBRA
1. O espaço do corpo

 

Já no fim da viagem deparamos com outra portagem, afinal a primeira, «num ininterrupto circuito zodiacal» : «O Corpo O Luxo A Obra» (55). Não poderíamos deixar de nos deter no último livro, aliás poema, de Herberto Helder .

Nada altera à nossa exposição anterior esta nova publicação, diríamos até representar a corroboração mais eficaz de muitas afirmações e decifrações feitas, uma vez que o autor se sentiu na necessidade de incluir no fim do poema determinados esclarecimentos relativos à sua obra transmutatória.

Não havendo pertinência em repetir agora muito de quanto foi escrito - particularmente sobre o tema da árvore, e interpretações de linha alquimista feitas a «Cobra» - «O Corpo O Luxo A Obra» está de certa maneira na sequência de «Cobra», livro imediatamente anterior, preferimos tocar outros assuntos e assentar algumas ideias a respeito da visão do corpo. O texto é propício a uma leitura fundada na imagem corporal, por ser talvez o poema do autor onde mais funda e claramente se explicita essa coluna vertebral do seu universo.

Desnecessário será dizer que este último poema de Herberto Helder constitui um momento muito alto de poesia: 252 versos impecáveis, de grande energia e beleza, embora mais discretos que a maioria dos textos publicados por este poeta das luxuosas imagens que vimos em «Cobra», por exemplo. De novo encontramos a larga respiração a necessitar dos grandes espaços para se mover, e a viver dos espaços de grande abundância: «Também as mulheres se alumiam / pela abundância».

Abrimos o livro, e o que primeiro nos chama a atenção é a insistência no verbo ver, e particularmente no sujeito da visão - «eu vi» -, dado que a sua ausência não impediria o entendimento da frase. Quer dizer que desde o início o poeta apresenta as situações do ponto de vista da mais radical subjectividade, e que sobretudo tais afirmações carecem de interpretação filosófica, sendo essencialmente a vivência e recriação de lugares vistos, pelo que permanece a expressão plástica característica do poeta.

Na primeira estrofe, as paisagens vistas e reproduzidas serão corporais, vêem-se rostos, os lugares privilegiados pelo autor para a autobiografia; o poema é o território em que o poeta deixa as marcas do seu rosto e da sua voz:

"........................................ eu vi
sobre
o barulho dos buracos terrestres
as caras
engolfadas fulgurando até ao sangue, sua teia
de ossos fechada
por membranas que respiram com luz
própria."

A capacidade de visão do sujeito poético vai ao ponto de atravessar as membranas epidérmicas, pondo a nu a rede sanguínea e estrutura óssea dos rostos. Detém-se no sangue, por ser o elemento ígneo produtor de calor e luz: a teia sanguínea representa a mais profunda dimensão do corpo, a sua energia vital mais subterrânea. Vemos, então, que o poeta não se preocupa tanto com a morfologia externa imediatamente apreensível pelo olhar, mas sobretudo com o poder do corpo na sua maquinaria interna. De facto, o mais poderoso e energético elemento da poesia herbertiana será sempre o corpo, lugar de confluência e irradiação de forças orgânicas e mentais. Neste ponto, será bom observar que não estamos em presença de um universo poético antropocêntrico, mas corpocêntrico. Daí «Os animais carnívoros» (30), as «Antropofagias» (31), a «Vocação animal» (43). Importa a actividade orgânica e mental, todo o «Exercício corporal» (11), e serão secundárias quaisquer vias traçadas do poema ao código social.

A visão do corpo manifesta no poema é preferencialmente interna, visceral. Paralelamente, algumas visões corporais representam a paisagem propriamente dita:

«.................................Vi
os flancos suados das casas
contorcendo-se
no fundo
da luz,
onde o dia faz uma ressaca onde
gira a noite com seu tronco de planetas.»

As casas corporais suam. O suor evidencia as energias libertas, aliás a situação já de si implica forte actividade física, com aspectos dolorosos - contorcendo-se. Se o ouro crescia dentro da terra, e agora as casas se contorcem de dor, fácil será deduzir que o corpo se romperá em breve na ferida de que outro corpo poderá nascer: os rostos verbais.

As membranas corporais não apenas deixam coar a luz, como deixam coar o som e, no caso do suor, a água. O corpo é poroso, lugar sem fronteiras, espaço de múltiplas travessias: o mundo é alimento que o corpo devora. Após a digestão, a gestação, ou a maturação, algo de novo sairá do corpo. O lugar do sujeito vai anulando quaisquer diferenças entre exterior e interior. Por isso a paisagem assume configuração anatómica, e o corpo é descrito a partir de relações analógicas estabelecidas com o mundo vegetal, mineral, ou sideral.

A metáfora herbertiana estende analogicamente os tentáculos ao somatório de todas as coisas visíveis. Ver instaura o espaço da luz - da lucidez -, dos «dias ópticos» : o poeta abrange com o olhar a totalidade do mundo conhecido, quer no que toca aos campos siderais, quer no que toca aos terrestres e humanos. Dada a amplidão da imagem visual, haverá necessidade de espaço para a movimentação da palavra poética: o longo poema, longo verso, longa frase. Na última citação feita, por exemplo, verifica-se que a frase necessita, para respirar, da extensão de sete versos. O que não é muito representativo do invulgar fôlego do poeta, pois na «Poesia Toda» ou em «Cobra» já vimos a existência de longos poemas-frase.

A confluência de aspectos ou matérias provenientes de objectos diversos num mesmo objecto realiza-se no tempo: «onde o dia faz» / «gira a noite». Estamos em presença da concreção de notações temporais. Mas interessa observar agora que, ao dimensionar os corpos no tempo, o poema cria o ritmo da sua própria existência. Aliás, a visão depende do tempo, é com referência a um tempo obsessivo que o livro se inicia :

«Em certas estações obsessivas,
insondáveis
pela doçura e a desordem, eu vi»

Este tempo é impenetrável a qualquer tentativa de aproximação feita através da doçura ou desordem, sendo apenas sondável pela violência e lucidez do olhar. Isto remete-nos, obviamente, para a ferocidade dessas estações certas e obsessivas, com «as caras / engolfadas fulgurando até ao sangue». A paixão do poeta pelas regiões obscuras do corpo leva-o a criar dentro dele um espaço habitável, fortaleza defensiva relativamente a determinadas investidas provenientes da instituição.

Para alcançar o labirinto interno do corpo, haverá necessidade de o rasgar de alto a baixo: «E o golpe que me abre desde a uretra / à garganta». Exposto o corpo como a luva puxada pelo avesso (13), as caras irrompem / dos nós de sangue: o sangue gera a vida, mas para que ela irrompa será preciso usar a violência da cesariana. Após isso - após o parto poético -, o cirurgião procede à sutura da ferida: «Lanho a lanho / cerrara-se a carne em seu tecido redondo».

No momento do parto, o corpo imaginário do sujeito assume configuração feminina. Em «Cobra» o poema era a estrela vulvar, corpo orgânico sideral gerado no interior da carne. Em «O Corpo O Luxo A Obra», a vulva desloca-se para a garganta - a «corola cesariana» -dando lugar à irrupção dos rostos planetários equivalentes do canto. O «Ofício cantante» será sempre um «Exercício corporal».

Interessa observar também que, sendo o sangue a matéria vital por excelência, toda a actividade corporal (poética) será sangrenta. É com as mãos docemente cobertas de sangue (8) que o poeta transforma a matéria verbal. A alusão à dor física aparece neste poema com particular insistência, evidenciando a separação entre dois corpos interdependentes:

«Vi
dorsos torcerem-se à volta da sua dor.
No meio,
o sorvedouro fazia um laço
de carne. Rodava em torno das válvulas negras
a estrela atómica.»

Quebrar os laços que unem os corpos é trabalho doloroso, pois dilacerador da unidade. Já vimos, em «Cobra», como o poeta revela dificuldade em separar-se definitivamente das obras por si criadas, mantendo-se preso a elas através de modificações nos textos já impressos e distribuídos. A sua tendência vai mais no sentido de criar laços em torno das coisas (notar a frequência de termos como soldar, ligar, entrelaçar), não de os romper «Meu sangue envolve os mortos como um braço profundo. / Solda-os.»). Porém, toda a palavra nasce no espaço da separação, por isso as sucessivas feridas e cicatrizes no corpo materno, aquele corpo que respira, / dói. A própria respiração já de si é dolorosa.

Este último livro manifesta de modo claro a soma dos aspectos fundamentais da obra toda: a hidrografia poética tem constituição somática, assentando predominantemente sobre a visão anatómica do mundo. Daí os laços analógicos estabelecidos entre corpo e universo : «E toda a fruta está soldada à potência / da sua árvore».

Alguns exemplos darão a ideia do modo como o poeta metaforiza a partir do conhecimento e percepção da matéria corporal. A noite será vascular, o ouro um organismo animal, pois homólogo da árvore. A árvore, por sua vez, é animal carnívoro: crua e voraz. Aliás, o ouro é substância carnal de ordem vital, percorre a rede de artérias desde a vulva ao coração -ouro, sangue e mel são diferentes símbolos do elemento ígneo. O próprio mármore assume natureza corporal, quando o poeta lhe evidencia os movimentos musculares. A água vivente surge espasmodicamente torcida entre os braços ferozes. Serão coisas animais vivas as próprias lacunas somáticas: «Respira / o buraco onde o ar se incendeia». Naturalmente, também os espelhos são percorridos pelos canais venosos: «Esta golfada de luz pela ferida de um espelho». O espaço sideral, com seus planetas e cometas, será corpo humano dentro dos limites do humano: «Os sóis turbilhonam entre / as espáduas», forma de sideralizar o corpo humano e de humanizar o cósmico.

Praticamente tudo quanto entra na composição do livro tem estrutura orgânica e animal. Observe-se também a tremenda violência e ferocidade do corpo, expressa pela exaustiva enumeração dos órgãos centrais: os rins, a uretra, o coração, a garganta, as meninges, os nervos, os ossos, as veias e, muito em especial, os filões auríferos do sangue transformador. Sangue arterial e venoso. Em «O Corpo O Luxo A Obra» aparece-nos o mais completo e intenso retrato da máquina lírica na sua função vital, mas feito do/no interior do corpo: aquele corpo cuja animalidade se funde mimeticamente com o exterior, aquele corpo verbal fundindo-se com o humano, e aquele corpo cósmico percorrido pela noite vascular; O humano irradiou aos outros, absorvendo-os alimentarmente na palavra. Assim a célula incorpora no núcleo a matéria viva de que se alimenta.

Vejamos, para terminar, como o aparelho genital feminino se desloca para a garganta do corpo masculino seu portador (o aspecto mais curioso e original da visão herbertiana do corpo), visto que é da garganta que o canto nasce :

«Na límpida teia das mãos,
a colher que se arqueia
desde
a traça alimentar à costura cirúrgica
da garganta
onde a voz rebenta
num buraco de sangue.»

A costura cirúrgica da garganta é sinónima da corola cesariana. É pela boca que se manifesta o poder do corpo, no corpo reside o poder da linguagem poética. Herberto Helder é o poeta que mais longe foi na exploração das potencialidades metafóricas da linguagem do corpo, que o mesmo será dizer, mais longe foi na exploração da fonte do desejo.

 




 




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