A poesia de HH assenta na realidade concreta e imediata, sendo por isso concreta a linguagem, a metáfora e o signo. Mas o que melhor define o modo de expressão será a intensidade, entrecortada por momentos de repouso, funcionando como silêncio entre dois gritos, ou pausas entre dois processos de multiplicação de sinais. A imaginação do poeta é invulgarmente fecunda, facto verificável na própria extensão dos poemas, levando-o a trabalhar a matéria verbal de maneira a que ela se reproduza em associações e combinações novas de grande beleza e poder energético.
A energia da frase tem várias origens, sendo uma delas o diálogo estabelecido entre o abrandamento e a aceleração vitais, factor determinante do ritmo irregular, sincopado. Tomando por ponto de referência exemplar a projecção de um eixo vertical sobre um eixo horizontal, significando o vertical o processo de intensificação da linguagem e o horizontal o processo do desenvolvimento, tentar-se-á dar a explicação de dois aspectos retóricos fundamentais na obra do autor.
Os instantes de exaltação e de forte emotividade, mais directamente relacionados com a energia erótica, vão encontrar na linguagem intensificada - o «território bêbedo, sem uma pausa» 1 -a mais clara expressão. A escrita intensificada dá a imagem da tensa verticalidade do sujeito, do estar desperto e vivamente atento aos objectos que o fascinam. A vitalidade corporal e aguda percepção das coisas tem por isso na embriaguez a metáfora mais ilustrativa. Porém, a embriaguez não constitui modo único de exprimir a intensidade, também o sonho, a alucinação e a paixão a evidenciam.
O desenvolvimento exprime o estado de abandono às coisas, o estar deitado sobre a terra até íntima fusão nela e consequente comunhão da matéria cósmica. Se a intensificação dá ideia da procura de satisfação vital, por isso relacionada com o erotismo enquanto irrupção brutal do desejo, sem que o objecto tenha sido alcançado, o desenvolvimento define-se sobretudo como acesso, fruição tranquila das coisas simples. Daí que o eixo vertical manifeste grande intranquilidade, enquanto o horizontal representa a apaziguação dos sentidos. Necessariamente, e não estabelecendo radicais dicotomias, o impulso vital - Eros - tem a marca mais premente na ascensão intensificadora, enquanto o repouso -Thanatos -se exemplifica no desenvolvimento.
As duas tendências não se mostram incomunicáveis. Pelo contrário, será difícil encontrar clivagens irredutíveis entre objectos aparentemente antagónicos em qualquer texto do autor. O fenómeno de analogação sistemática de objectos, mesmo contrários, consente apenas a gradação. A frase terá mais ou menos signos de desenvolvimento ou intensificação, mostrar-se-á mais ou menos tensa, sendo impossível estabelecer compartimentos estanques para a forma de escrita intensificada por um lado, e a expressão da serenidade por outro. O mesmo sucede com os poemas, mostrando-se mais ou menos exaltados consoante o estado orgânico ou mental, ou conformemente à visão das coisas que está a ser exposta. Os dois textos do autor mais esclarecedores do que significa o «território bêbedo, sem uma pausa», lugares de máxima intensidade e de consecutivas alucinações, serão «Os Brancos Arquipélagos» (26) e «Um deus lisérgico» (35). Já aludi ao facto de explicitamente mostrarem ter sido escritos sob a acção de alucinogéneos. O termo lisérgico é claro e, no caso do outro texto, são demasiado óbvias as referências à droga:
«nem o discurso mortal trespassado de láudano,
nem a vertigem de um odor de permanganato,
caligrafia a escaldar, cassiopeia fina,
largura afogada por uma velocidade,
enquanto a acentuar-se em vóltios de magnésio,
e essa crispada lentidão, acetilene que subia,
apurando o pesponto feroz,
a sintaxe como idade,
chegava em frio meandro o álcool à memória,
esponja a fulgurar lá dentro, num buraco,
a congestão da crista sobre o pensamento,
cabeça encharcada,
os regatos da droga rutilando, óleo cândido,
espécie de fotografia perfurada, escorre o veneno,
e então exalta-se o mel algures quieto,
linhas arquejam, costura-se o ar, atormentado.»
O que se passa nos dez blocos de que transcrevi pequena parte é a sequência ininterrupta de alucinações, numa linguagem intensificada ao mais alto grau, a «caligrafia a escaldar». A frase aparece sintacticamente desarticulada e, curiosamente, a sua força não vai ser expressa pelas formas verbais, que neste caso são escassas. A energia intensa da linguagem será dada quase unicamente pela combinação de nomes, através da selecção de termos que já de si implicam a ideia de exasperação e violência: trespassado, vertigem, escaldar, velocidade, crispada, e outros. Tais termos funcionam por conseguinte como signos de intensificação. Noto algumas expressões que aparecem com relativa frequência, exprimindo a extrema acuidade da percepção sensorial, e simultaneamente apontam a natureza carnal da linguagem: pesponto, costurar, perfurar. De facto, o poeta emprega com regularidade palavras relacionadas com a costura, aplicadas a objectos vários e, entre eles, ao poema; a operação de abrir finos buracos no tecido com agulhas ou alfinetes tende a dar a ideia da excitabilidade do sujeito, ao sentir-se trespassado pela acção de estimulantes, e do próprio poema; a actividade poética estimula e alucina mais do que a droga. Por outro lado, refere-se o trabalho perfurador da própria matéria verbal; o poeta é o cirurgião, pespontando com ferocidade o tecido poético, violentando-o por consequência, para dele alcançar novas formas e novas significações.
A cirurgia relaciona-se sobretudo com a transformação corporal, indicando as feridas e a capacidade de cicatrização: ainda aqui se evoca a regeneração contínua, sobreposta à contínua degradação do corpo.
Se compararmos «Os Brancos Arquipélagos» (26) com «Poemacto» (6) verIficaremos ser o segundo muito menos febril, porque os signos de intensificação se encontram mais proporcionalmente distribuídos na frase, acompanhando os de desenvolvimento. Tal facto decorre da própria base de sentido em cada poema; n'«Os Brancos Arquipélagos» o autor liberta-se de alucinações, transportando-as para o poema enquanto coisas vistas; daí que o texto seja nominal, isto é, construído quase inteiramente por substantivos e adjectivos; o poema corresponde à catarse, operando a fixação visual de energias libertas pelo corpo. Ao fim do processo de libertação desses fluxos energéticos descontrolados, a morte surge de repente, com explosão final correspondente ao esgotamento de forças :
«.........................entre planos de noite e planos
de luz parados sobre a agonia,
águas de Deus correm numa paisagem
geral e obsessiva, e no terror de uma brancura explosiva,
a morte ao alto, fixa» (26)
Em «Poemacto» (6) é diferente, porque o sujeito se encontra em estado de lucidez, canalizando tanto a energia física como mental para o poema-acto: o poeta caminha equilibradamente para a acção corporal unificada, por isso se verifica a combinação regular dos impulsos corporais activos e passivos, de ordem racional e irracional. «Poemacto» é o canto da completude do ser, do arrebatamento aliado à serenidade, da fria inteligência aliada à loucura. A catarse não se atinge, neste caso, pela transposição das alucinações para um poema que as recebe estaticamente, sim por coordenação completa dos movimentos do corpo e do poema:
«Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
-Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando o seu próprio impulso,
poema regressando. » ( 6 )
Os movimentos de poema e poeta são uníssonos, acompanhando-se no mútuo esforço libertador de que poderá resultar o equilíbrio perfeito: «Com meu amor completo como um rio» (6).
A intensificação e o desenvolvimento - típicos do efeito dos alucinogéneos na percepção sensorial - aparecem nos textos e na frase com gradações variadas, podendo interpenetrar-se, pois convergem para a mesma finalidade de dissolução do eu na matéria cósmica. Fundir-se na matéria primordial, acedendo à participação na energia das coisas fundamentais, será a fruição máxima a que o poeta aspira.
Vejamos agora com pormenor de que modo a frase evidencia o processo intensificador aliado à tendência para o desenvolvimento. Na frase «Vês a minha árvore, constelação violenta, a pino entre o terror ?» estão presentes os dois eixos fundamentais sobre que se arquitecta a linguagem herbertiana. A interrogação, os termos «violenta» e «a pino» e sobretudo a irrupção do sentimento de terror concorrem para a intensificação. Porém, sinais mais subtis e provavelmente mais curiosos dão a imagem da escrita na vertical. Para já, o corpo identifica-se com a árvore, sendo que a árvore funciona simbolicamente como axis mundi , fio de prumo religador dos espaços alto e baixo. Mas se pensarmos que o corpo erecto assume exactamente a mesma dimensão simbólica, verificamos que a intensificação redobra, por acumulação no mesmo objecto de matéria simbolizada por diferentes símbolos. Isto leva-nos obviamente para a importância central do corpo na obra herbertiana, fulcro de condensação de forças e sentidos. O corpo projecta-se verticalmente por ser corpo e árvore, atingindo o ponto de maior altura na homologação seguinte: corpo é igual a árvore e igual a constelação. A árvore cósmica visa dar a imagem arborescente do universo, donde os ramos se analogam às constelações. Importa ver sobretudo que o corpo atingiu dimensão sideral e justamente por isso ficou siderado: eis a razão do aparecimento do terror .
Porém, a árvore da vida abre-se à mais ampla significação erótica, visto condensar as duas trajectórias perpendiculares do destino humano - a vida erguendo-se verticalmente da raiz ao fruto, e a morte de que se alimenta na horizontal dimensão subterrânea. Os canais por onde passa a seiva vão estabelecer os laços indissolúveis entre Eros e Thanatos, que o mesmo será dizer, entre os vivos e os mortos. Mas porque afinal toda a vida renasce da morte, sendo este o sentido mais fundo do erotismo, a árvore da vida vai ter representação iconográfica especial, que a frase mencionada documenta claramente: o homem deitado, estabelecendo o eixo horizontal de comunhão com o húmus, e a árvore a irromper-lhe do sexo, determinando a verticalidade. No momento em que a erecção atinge o acme, o corpo acede a segunda comunhão na matéria, quando o orgasmo possibilita a homologação do esperma aos corpos vivos espalhados na matéria cósmica constituída pelas constelações. O erotismo vai religar dois espaços de morte, por consequência dois espaços vitais: o húmus telúrico e o húmus sideral. Nestas circunstâncias, a frase evidencia dois estratos horizontais de desenvolvimento, com participação nas suas matérias fundamentais, religados pelo eixo vertical de intensificação, movimento ascendente e descendente do desejo. E daqui se conclui também corresponder a intensificação ao desejo puro e exacerbado, enquanto o desenvolvimento se aproxima de fruição tão lata que corresponde à morte.
Planeta deitado sob as constelações, o sujeito centra-se num espaço pluridimensional, move-se em todos os sentidos, dilata-se ou comprime-se como coração pulsante, conforme as perspectivas: enorme à escala do corpo, ínfimo à escala do universo. Em relação ao corpo, o princípio de conservação e prazer - relacionados com Eros - que maximamente o distende ao excesso da festa dionísiaca e carnavalesca; em relação ao universo surge o princípio de abandono que o polariza para o sono, a tendência para o desenvolvimento, aparecendo frequentemente nos textos sob a forma de mimetismo cósmico:
«Enquanto passo pela minha imagem, irrompem-me os cabelos. Tremem as pétalas redondas do meu corpo. As plumas sangram agarradas ao coração. E o perfume atravessa a minha flor. Sombrio aroma que pulsa, ocluso, liberto, pelos canais da rosa.»
O mimetismo consiste na analogação do corpo ou partes dele a formas de vida existentes na natureza. O corpo confunde-se com as plantas ou minerais porque se funde neles, através do processo metamórfico da poesia. Neste caso o sujeito vai começar por se mimetizar em flor - «as pétalas redondas» -, homologando-se de seguida à ave - «as plumas sangram» - até regressar à forma vegetal. No fim do processo metamórfico a nova forma irrompente será a da rosa. Ora, a rosa representa o acesso ao conhecimento perfeito, pelo que o mimetismo assume carácter gnoseológico. Por outro lado, a flor liga-se ao mundo da morte, porque nascida de matéria em decomposição, e ela própria decomponível em elementos orgânicos específicos da matéria cadavérica, e muito em especial o perfume. Quero significar com isto não ser possível destrinçar entre matéria viva e cadavérica: o ponto mais alto de conhecimento a que o poeta tem acesso ensina serem Eros e Thanatos a mesma coisa. Daí que tanto o processo de intensificação como o de desenvolvimento tenham a mesma finalidade - a fruição, e que esta se exprima pelo sono absoluto, única forma de religação perfeita com a matéria cósmica, a Unidade. O amor e a morte identificam-se, por isso em «Bicicleta» (37) o poeta afirmava ser mais mortal do que os outros animais, depois de ter esclarecido que a direcção da morte era a mesma do amor: ser mais mortal significa então ser mais amante. E se amor e conhecimento se analogam, daqui se conclui que o mais mortal é o que mais sabe. Mas se o maior saber do poeta se exprime pela analogação de amor e morte, sem antes ter sabido o que são a morte, a vida e o amor, daí se conclui também ser o poeta sábio na medida exacta em que tem a noção da sua ignorância. Se assim não fosse, o poema deixaria de ter sentido, deixaria de funcionar como sistema de conhecimento aberto. Em «A imagem expansiva» ele indaga da loucura-mulher a razão de todas as coisas existentes, pedindo-lhe justamente que o ensine a existir:
«Quantos anos tem a chuva, em que mudez nasce o álamo, com que passos chega a noite sobre o odor da salsa viva ? Como se move a paisagem por dentro da confusão ?
Ensina-me a dormir e a respirar. Quero ter a idade da chuva, o maior nascimento da árvore.»
O poeta sabe que todos os fenómenos estão interligados - a chuva e o nascimento do álamo, por exemplo - e por isso se exprime pela metáfora; a comparação e a metáfora são determinadas pela analogia: o tempo do corpo seria análogo do tempo cósmico, o crescimento do corpo seria análogo do crescimento da árvore. Porém, desconhece a origem mais remota dos fenómenos e dos objectos, sendo a origem o objecto único do percurso inquiridor da poesia. Por isso, a fruição suprema não será nunca alcançada, levando o poema a transformar-se em desejo puro - puro desejo, sem resposta.
A metamorfose deriva do dinamismo vital do sujeito; estar vivo significa estar em transformação constante. A tendência para a transformação vai reflectir-se na própria escrita, quer através da (auto)devoração, quer através da destruição dos textos. Transformar exige a destruição do objecto - da matéria-prima - para a partir daí se reconstruir, não o mesmo, mas objectos novos. Assim, alguns poemas do autor são montagens, destruições de textos seus ou alheios em textos novos. Verificamos que tal sucede em «Húmus» (41), montagem de frases e imagens do texto homónimo de Raul Brandão, organizadas segundo a cosmovisão pessoal de HH num texto completamente diferente daquele que em parte o motivou. N' «A Máquina de Emaranhar Paisagens» (23) o poeta parte de citações do Génesis, do Apocalipse, de Dante, de Villon, de Camões e de si próprio que seguidamente emaranha, dando lugar ao aparecimento de outro corpo poético, original. Este poema evidencia da forma mais clara o processo metamórfico destruidor e regenerador: a parte inicial é constituída pelas citações, algo como a série de motes a desenvolver recriativamente; em seguida começa a interpenetração dos textos de autores vários, mantendo o poema um discurso sintacticamente perfeito; finalmente, o poema transforma-se em apocalíptico mundo fragmentário, feito de destroços; a frase é segmentada e destruída, embora mantenha o rigor da imagem poética. Transcrevo três fragmentos a partir da segunda parte - após as citações - bem ilustrativas da sequência transformadora e da genesíaca construção do novo texto sobre as apocalípticas ruínas das paisagens pré-existentes:
«E as estrelas do céu caíram na terra, como quando a figueira lança os seus figos verdes, abalada de um grande vento. E eis que havia um grande terramoto e se tornou o sol negro como um saco de silício e a lua se tornou como sangue. E fez-se a separação entre as águas que estavam debaixo do firmamento e as águas que estavam por cima do firmamento.»
« ...luz selvagem... e terramoto que se enrola de estrelas... e água abalada... [...] espaço... separação... e mulheres vermelhas com cúpulas... a colina antiga do firmamento... e homens violentamente... sons cegamente... e seres arrastados do céu da boca para... luz selvagem...»
«... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro...»
Do mesmo modo que em «Comunicação Académica» (20) , o texto assenta no poder reprodutor da matéria verbal; a partir de determinado número de imagens e palavras - neste caso alheias quase totalmente - o poeta entra no jogo da sua combinação inovadora, obrigando a matéria verbal a produzir novas significações. É o caso, por exemplo, da imagem «seres arrastados do céu da boca para», curiosa porquanto nada tem de comum com o Génesis ou o Apocalipse, antes com a singularidade da visão que o poeta tem do corpo; a boca transfigura-se em cidade onde correm as pessoas, significando que o poeta não apenas presta atenção à aparência exterior do corpo, mas também à sua dimensão anatómica interna; dentro do corpo há paisagens homólogas das exteriores, pois o poeta, para lá da tendência visceral para a analogia, é também um animal carnívoro: a antropofagia representa a captação da realidade, absorvida enquanto alimento, por isso incarnada ; não somente o que está em cima é igual ao que está em baixo, como aquilo que está dentro do corpo humano é igual àquilo que se situa fora dele. As novas significações criadas pelo poema criam por sua vez nova organização dos objectos no corpo e no universo, já que, naturalmente, a paisagem exterior será descrita em função da anatomia humana. Tal é, afinal, a função da máquina lírica (18) : remeter para a Máquina única o funcionamento análogo de todas as máquinas líricas, as máquinas vivas.
Ainda comparando com a «Comunicação Académica», note-se que a escrita apocalíptica -tendo origem no impulso intensificador tendente à destruição - não destrói o poema, apenas destrói o texto de base. O poema nunca deixa de ser poema, ainda que a destruição linguística atinja categorias morfo-sintácticas. «A Máquina de Emaranhar Paisagens» demonstra como a partir do apocalipse textual se pode genesiacamente construir um texto totalmente diferente do destruído. Por isso se insiste na citação do Génesis que aparece em último lugar nos três fragmentos transcritos, e que no poema funciona como espécie de refrão e fecho: alude-se ao primeiro dia da Criação. Também o bloco anterior começa e termina com a referência à irrupção da luz. O poeta parte do discurso perfeito para a desarticulação e/ ou progressiva inflexão para o imaginário com grau máximo de metaforização, para regressar ao ponto de partida: cada poema-corpo é circular, movendo-se ciclicamente. Não estamos longe do rumo da intensificação - o Dia - e do desenvolvimento - a Noite: sonho e sono, Eros e Thanatos, o contraste.
O processo de intensificação é intrínseco à própria linguagem, aquele «território bêbedo, sem uma pausa», onde as palavras são escolhidas e combinadas de tal forma que dá ideia de a escrita se encontrar sempre à beira de um precipício. A intensificação consegue-se de formas diversas, entre elas, por mais óbvia, com a contiguidade de palavras de algum modo contrastando fortemente. O contraste tem estrutura variável, mas o mais simples seria a antítese, com aproximação de termos de valor semântico contraditório, como acontece na frase «Dependuramos na noite lençóis de uma brancura louca». Neste caso o contraste vem da visualização de objectos de cor oposta. Trata-se de um processo retórico de intensificação da linguagem bastante frequente. Exprime o modo especial que o poeta tem de ver o mundo: os objectos são apreendidos no instante da sua vibração máxima, a sua qualidade e estado encontrando-se intensificados por força da acuidade perceptiva com que o sujeito os recebe.
O contraste entre a brancura dos lençóis e a negrura da noite é quase lógico, se esquecermos o pormenor de a noite se ter transmutado em varal de roupa. Há um contraste bem mais forte na frase, e resulta do facto de o poeta apreender as vibrações dos objectos no seu ponto de maior intensidade: a «brancura louca». Aqui já o desvio à norma do raciocínio lógico comum se mostra muito forte, por se atribuir à cor a capacidade de sentir, e sobretudo a capacidade de sentir poeticamente. A loucura está sempre relacionada com os poderes visionários gerados pela escrita poética. O poeta vem a transpor para a brancura as suas próprias faculdades, donde a identificação com a cor. Mas se a brancura é louca, isso significa também, do ponto de vista da concretude da matéria, que o lençol está limpo, por isso capaz de reagir maximamente ao bombardeamento de luz, dela captando as componentes que a sua substância reflecte sob esse tipo de cor. Quero dizer que o poeta tem a intuição dos fundamentos da vida quando aproxima a sua arte das energias puras. Grande parte da metaforização herbertiana assenta na realidade concreta da existência de energias percorrendo todos os objectos, e não só aqueles vulgarmente considerados vivos. A pedra, por exemplo, será das formas de matéria mais sobrecarregadas de energia, por isso vem a representar o corpo humano.
Processo mais subtil e singular de operar a intensificação vai ser o uso de determinado tipo de termos, advérbios ou adjectivos, que funcionam como amplificadores da força semântica dos termos a que estão adjuntos, acelerando-lhes o ritmo vital. Assim sucede com infinidade de palavras, das quais podemos mencionar as mais frequentes: tão, todo, único, só, inteiro, vivo, puro, tremendo, feroz, louco, demente, bêbado, frio, gelado, incandescente, ardente, o advérbio de modo em geral.
Tomemos um exemplo de frase em que se apresentam alguns amplificadores: «sim respira como uma colina tão nua que os pulmões fossem uma renda de prata atormentada». Se nua já implica o total despojamento de vestuário ocultador do território corporal, o antecedente «tão» intensifica e amplifica o estado de nudez até à visão dos pulmões: o corpo desnuda-se até às vísceras, evidenciando o mecanismo trepidante da respiração.
Nesta frase há outros amplificadores : o termo respirar , por ser signo eufórico, implicando não somente o sinal de vida, mas todo um diálogo cósmico: o processo alternado de contracção e dilatação dos limites do espaço corporal (homólogo do pulsar ou cintilar das estrelas, por exemplo; refiro-me à existência de um movimento de fora para dentro, a inspiração; e movimento de dentro para fora a que não chamo expiração, e sim expansão: a imagem expansiva; por outro lado, podemos relacionar a inspiração com o eixo vertical de superação dos limites, e a expansão com o eixo horizontal de redução a parcela ínfima fundida na matéria cósmica), e comunicação entre região superior e inferior; através da respiração, o eixo arquitectónico formado pelo corpo estabelece a comunicação entre terra e ar. Aliás, a respiração põe em jogo mais elementos, se pensarmos na inspiração analogada ao acto alimentar, e na frequência da ingestão do fogo. O oxigénio, por seu turno, termo familiar associado ao ar, pertence na poesia herbertiana à área semântica do álcool, do mel, da água, do sangue e da droga enquanto alimentos vitais. Todo o ciclo de «A Colher na Boca» (17) , como o título geraI indica, tem por fundamento temático a alimentação. Alimentação v ital, corporal e mental, da mesma forma que a inspiração tanto remete para as musas como para a fisiologia da respiração. O autor distingue as substâncias alimentares mas não distingue causas nem efeitos: o mel é substancialmente diferente do pão, porém o poeta alimenta-se de ambos pela mesma razão, e sabe ser idêntica a sua função. Expondo melhor, pois «o mel enlouquece as pessoas» (13), o poeta não divide o ser em corpo e alma; por isso os alimentos espirituais e orgânicos se homologam na causa e função alimentar: tanto alimenta a loucura como o pão, pão e loucura alimentam corpo e loucura. Digo que a loucura é um alimento e simultaneamente um corpo a alimentar.
Vou entretanto escolher algo mais complicado para documentar até que ponto todo o objecto existente pode ser absorvido pela inspiração, e posteriormente devolvido pela expansão poética. Em «A menstruação, quando na cidade passava» ( 42), fala-se de raparigas que no tempo da menstruação devoram a vida, quer dizer, devoram tudo quanto a sua avidez de saber alcança. Amadurecem como o figos, comem figos, cravos, neve, a noite, areia. Há várias homologações e reversibilidade de papéis (as raparigas comem a noite e areia / a noite come areia), mas, curiosamente, os dois únicos objectos análogos não ingeridos pelas raparigas - o fogo e o sangue - são os mais obsessivos, são aqueles que eu diria serem ingeridos pelo poeta, pois constituem o foco inspirador. Cito uma estrofe bastante completa :
«As vacas estão espreitando, em cujos
focinhos o lume em silêncio se consumia.
Pelas janelas os violinos
passavam pelo ar. E a menstruação nas raparigas
escorria pela sombra, e elas
gritavam e comiam areia. Alguém falava:
fogo. E as vacas passavam pelos violinos.
E as janelas em silêncio escorriam
o seu fogo. E as admiráveis
raparigas cantavam a sua canção, como
uma palavra antiga escorrendo
numa página pela neve,
coroada de figos. E no fogo as crianças
eram tocadas pelo tempo da menstruação.»
O poeta não se atreve a tocar no sangue menstrual por ser de natureza sacra. Mas se não viola o tabu directamente, acabará por o violar indirectamente, quando declina nas crianças a sacralidade que lhes permite aproximarem-se do «tempo da menstruação» : as crianças são seres em graça, por isso a sua relação de tangibilidade com o sangue será pura. O que porém está mais em causa no texto não será tanto o tabu da tangibilidade do sangue menstrual ou da mulher menstruada, mas o tempo da menstruação. Não se refere explicitamente tratar-se da primeira menstruação, penso contudo que o seja, dado insistir-se no termo «raparigas», e na premência do desejo alimentar desse tempo privilegiado. Veria neste poema sobretudo o louvor à fecundidade das mulheres e consequente louvor à fertilidade da terra. O que fascina o poeta será o sangue em si enquanto força vital e vitalizadora. Lembro ser a Primavera dos focos inspiradores mais importantes, dada a significação de renovo cíclico. O facto é tanto mais notório quanto o poema exprime o clima de festa tumultuosa, gerado pelos gritos, cantos e correrias das raparigas. Penso naturalmente nas maias, as festas da Primavera, pelo que remeteria o poema para a zona dos ritos agrários.
No bloco transcrito de «A menstruação, quando na cidade passava» ( 42) nota-se a presença de alguns temas centrais da obra: o ciclo alimentar e da idade correlatos do ciclo poético (a «palavra antiga» e as «canções» ) ; a fascinação pelo sangue e fogo, fulcros de energia primordial; a aproximação das crianças à descoberta da vida nos fenómenos básicos do organismo feminino; os grandes animais procriadores; a presença do elemento aéreo, relacionado com o ígneo, e muito frequente nos textos; por contiguidade com o ar enquanto elemento propagador do corpo sonoro aparecem os instrumentos musicais, de cordas, os mais familiares; a alusão ao silêncio, estando sempre perto da palavra obscura e enigmática das musas; a presença de vozes em diálogo, etc.
Em «Antropofagias» (31) o autor estabelece curiosa terminologia retórica que aplica aos seus textos, referindo vários tipos de imagens destinadas a salientar a natureza física da linguagem e por conseguinte a natureza corporal do poema :
queremos sugerir coisas como «imagem de respiração» «imagem de digestão»
«imagem de dilatação»
«imagem de movimentação»
«com as palavras?» perguntavam eles
Ora, a imagem de respiração que tenha o termo respirar expresso condensa imediatamente em si todas as outras, donde tal termo se torna dos mais importantes amplificadores na obra do autor. Note-se a frequência com que aparece, factor já de si significativo. A respiração está indissoluvelmente ligada à alimentação, e toda a obra gira em torno do corpo, organismo vivo em actividades múltiplas, entre elas a poética. A ingestão de alimento concreto, determinando o funcionamento do organismo, associa-se à inspiração, determinadora do funcionamento do espírito. A poesia é alimento vital, simultaneamente corporal e imaginário. Não se mostra fácil separar o espiritual do orgânico, eles são a mesma coisa, assim como funcionalmente são iguais os diversos tipos de alimentos. É importante insistir no facto de o autor não separar o espiritual do corporal, entendendo-os como a mesma coisa. A importância desta unificação vem da circunstância de revelar um dos fundamentos da imagem do mundo que tem o poeta.
Para se verificar até que ponto a problemática alimentar é fundamental na obra, refiro alguns títulos de poemas em que se refere o alimento ou os órgãos da sua ingestão, e se nota bem a unificação do espiritual e corporal: «A Colher na Boca» (17) , «O Bebedor nocturno» (22), «Os animais carnívoros» (30), «Vocação animal» (43), «Antropofagias» (31). Para não dizer que o «Húmus» (41) é o alimento da terra e «Um deus lisérgico» (35) a droga mágica aceleradora da função digestiva do imaginário.
Tomemos um exemplo de alimento dos mais frequentes na obra - o mel. O mel ora aparece com o seu significado habitual, referindo o alimento concreto destinado a organicamente alimentar o corpo, como pode ainda referir utilização idêntica, alterada porém a sua substância, ou representar já o alimento de ordem emocional: «Dizem que o mel novo enlouquece as pessoas», lê-se em «E Outros Exemplos», texto 4 (13). Embora neste caso se aluda à tradição que de facto atribui ao mel novo o poder de enlouquecer, a verdade é que no poema a frase tem sentido metafórico, exprimindo o desejo de aceder à loucura poética ao ingerir tal droga. Portanto, o mel não é tomado para alimentar o corpo, vai ser tomado para alimentar a paixão. Importa de tudo isto que a poesia se entende como «substância de Deus servida / como ceia» : ela é a grande mater alimentadora do filho, em todos os sentidos da palavra alimentar :
«Mês do poema, substância de Deus servida
como ceia e primeira pedra no espaço
da minha angústia,
do meu encanto.
Suave mês do incesto, sujo tempo
de gelada pureza aonde a lua desce
suas raízes ferozes
e onde a morte anuncia seus primeiros sinais
de glória.» (12)
A mulher liga-se sempre ao espaço encantatório, com ela o poeta consegue encantar-se e encantar o mundo. Ou seja: a mulher, a mãe, a rapariga, a prostituta, representam sempre a poesia, o alimento poético. Elas são o encanto, o canto, e o poder de encantamento: a magia, os segredos da vida. Mas porque a poesia representa a mater , o mês do poema será o do incesto, já que se estabelece entre poeta e mater a relação erótica de índole antropofágica; daí a ceia.
Desta paixão que o poeta manifesta pelo ciclo alimentar há a concluir, em primeiro lugar, a impossibilidade orgânica de dissociar o corpo da alma; o entendimento de ser o espírito algo que faz parte do corpo, e podendo por islso ser organicamente alimentado. Ainda citando «O poema» (12) :
«Porque o rumor ressalta na noite parada, e pode-se
enlouquecer eternamente. Ou porque a colher
pode ligar a terra à violência do espírito.»
Por outro lado, o entendimento e vivência do poema enquanto parte integrante do poeta: o poeta alimenta-se do poema, do mesmo modo que o poema se alimenta do poeta: corpo uno, poema-corpo. Nesta medida se entende a profundidade da ligação do poeta com a sua arte, a dimensão trágica da antropofagia, que é sempre mortal.
Regressando à frase «sim respira como uma colina tão nua que os pulmões fossem uma renda de prata atormentada», a humanização do inanimado - prata - através de um signo de sofrimento cria brutal contraste entre as duas palavras. Estas imagens conseguidas com o uso de termos de algum modo indicando sofrimento, atribuído muitas vezes ao que não é humano e nem mesmo animal, aparecem bastante. Seguindo as pisadas retóricas do autor designo-as por imagens de tortura: «Ferro em brasa no flanco de um só dia, um buraco de perfume vivo em todo o lado, uma rosa queimada aos ombros.» Nesta frase há três imagens de tortura e vários amplificadores. As imagens de tortura estão sempre ao serviço da intensificação da linguagem, mas nem todos os amplificadores se relacionam com a tortura. Amplificadores serão as expressões «um só», «vivo» e «todo». Alguns exemplos mais evidenciarão melhor o poder intensificador das imagens de tortura: «água cruel aberta», «dias arquejantes», «água dolorosa», «rosa infrene», «animais em brasa», «uma flor cravada», «queimam-se laranjas», «a cor alta e feroz da fruta», «beleza atroz». Para terminar, outra frase completa: «Para um lugar em brasa há um morticínio de rosas.» Os objectos são apreendidos no instante de máxima vibração e, porque máxima, à beira da ruptura com o modo de ser oposto, ou mesmo penetrando nele.
O fogo, a loucura, o sangue, a embriaguez e a paixão constituem termos amplificados ou amplificadores, que exprimem o modo intenso de estar no mundo, ou de ver a síncope, a precipitação brutal para o outro lado. Todos funcionam como instrumentos de revelação, conferindo ao sujeito capacidade de clarividência. A embriaguez, por exemplo, sendo específica da natureza dionisíaca, relaciona-se com os poderes divinatórios. Tais instrumentos obrigam à manifestação dos mais primários impulsos vitais, e a poesia em parte mais não é do que a arrancada para o alto, a partir do que em baixo é igual ao que está em cima: a vida, o desejo, o complexo filme de Eros e Psique.
O poema situa-se quase sempre no ponto de vitalidade extrema e espasmódica, sendo as pausas para o desenvolvimento o instante de equilíbrio precário antes de novo acesso de embriaguez ou alucinação. Momentos de intensificação correspondem aos momentos de incandescência, de derrapagem no lugar de graça pânica. Momentos de desenvolvimento são aqueles em que a tendência para o abandono no repouso faz aparecer as imagens de estatismo :
«Nos brancos abismos é que se estuda e dormir faz bem às palavras. Flor deve adormecer na palavra que lhe cabe, mãe e peixe juntos dormem nas águas.»
O sono exprime a tranqúilidade desse estado de abandono, mas outros elementos também. O abismo remete para a indiferenciação original, para a morte, integração absoluta na unidade cósmica. O abismo devora para devolver o corpo noutro regime de existência, e por isso na frase aparece o peixe que, como a mãe e a flor, é palavra. O peixe, sabemo-lo, associa-se à simbólica da regeneração cíclica da vida. Devo advertir não estar a fazer referência à mitologia cristã, mas a formas de pensamento primitivo que lhe são anteriores. Neste caso o peixe está junto ainda com a mãe, e ambos dormem. A vida ainda não recomeçou. O estado de tranquilidade, de acesso ao espaço utópico e ucrónico isento de qualquer forma de violência, será expresso também por intermédio das águas calmas e profundas (excepcionalmente, pois a água mostra-se mais frequentemente activa do que passiva). A paisagem descrita nesta frase é totalmente lacustre, não em superfície, mas em profundidade: um lago ctónico, se assim me posso exprimir. A cor branca acrescenta espessura a este cenário lunar, não propriamente nocturno porque faça noite, mas nocturno de leitoso e dormente. A pulsão para a morte como maneira de participação do indivíduo na mater -ia primordial é característica das imagens em que as águas se transformam em elemento de envolvência: regressar à origem para daí renascer, impulso que se vai relacionar com a morte iniciática, com o tema da viagem, e com o processo de destruição / reconstrução.
Fogo, loucura, poesia e alucinação transformam-se em elementos correlatos: instrumentos de revelação, de destruição e recriação do universo. Que a loucura e a revelação aparecem juntas, e são protagonizadas pela mulher (neste caso, mulher vinda das "estampas de ouro": n' A imagern expansiva, a loucura assume forma ferninina, tendo origem numa imagem iconográfica; salta da sua estampa para entabular diálogo com o poeta, fornecendo-lhe certo número de ensinamentos), fioca evidente neste poema donde parti para analisar o processo, retórico de intensificação e desenvolvimento:
" ah, deixa-me passar, digo-te baixo oomo hoje me chamo e como nunca mais me chamarei : loucura,
loucura unida à rítmica matéria das coisas, e se abrires a teu sono, dessa vez única verás o que sou: uma forma
impelida pela vertigem, a inclinação do teu próprio conhecimento sobre a morte iluminada por todos os lados,
e depois terei um só nome: revelação, até que os dias arquejantes me sufoquem. "
Loucura é igual a conhecimento: o poeta foi visitado por algo que o leva a entrar no percurso iniciático da poesia. Aprenderá sobretudo a ver os múltiplos reflexos da Unidade, ou seja, os múltiplos aspectos da realidade. A multiplicidade de reflexos constitui a imagem expansiva , expansão de imagens do "continente submarino". Posteriormente aprenderá a fazer a síntese desses reflexos unificando-se a eles Análise e ,síntese formam o resultado final do aprendizado poético sob o magistério da loucura.
A destruição torna-se imprescindível para chegar à regeneração, sendo esse justamente o sentido da vigília, da "morte iluminada por todos os lados". A morte é observada à luz do conhecimento que o próprio poeta tem de si.
Estas são algumas poucas razões pelas quais a poesia de HH se apresenta em termos de espaço pânico, de movimentação convulsiva da paisagern, de passagem alucinatória de um ext,remo ao outro: da forma à substância, da força centrífuga à centrípeta, da morte à vida e do amor ao crime. As posições relativas dos objectos mudam constantemente, de dois modos que podem tornar-se homólogos, pois em ambos existe o elemento semântico de intensificação : "a tua vagarosa loucura», «sobre a nossa maior velocidade». «Devagarosamente» e «velozmente» constituem binómio dos mais singulares na obra, aparentemente ao serviço, o primeiro, do desenvolvimento, e da intensificação o segundo. Puro engano. São ambos termos intensificadores. Os movimentos dos corpos (e mesmo da emoção : fala-se da «velocidade do amor» em «Exercício corporal», e de «uma devagarosa mulher» em «As maneiras» ) é acelerado e desacelerado até à destruição do movimento, isto é, até à homologação de ambas as formas de se mover. Na verdade, tudo depende da situação do olhar, e um corpo movendo-se a velocidade cósmica parece estar parado. O vagar, a lentidão das coisas, exprime sobretudo a intensidade da atenção, do desejo e da paixão. Isso fica bem explícito na leitura tensa e morosa que poeta e leitor devem fazer para interpretarem, respectivamente, o livro cósmico e o poema, em «Para o leitor ler de / vagar» (34).
Esta atmosfera em transe, de «beleza atroz», pode ser aproximada da fase de loucura do rito de passagem individual, tema afinal de «A imagem expansiva» : o poeta foi iniciado na arte poética, por isso na arte da vida.
Paisagem pânica será não só aquela que se arquitecta em grandes tábuas simples (reflexão sobre o trabalho de marcenaria poética, a contradizer em absoluto qualquer pretenso automatismo do autor, quando aperfeiçoa, aplaina a sua escrita), cenário interior ao poema e exterior ao .poeta, correspondendo à organização de objectos num espaço sacralizado, mas também o espaço do poeta. Também ele é paisagem pânica, em movimentação errática (13), homóIoga da paisagem exterior: funcionando uma como duplo da outra, ambas se fundem especularmente no horizonte do imaginário.
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1. As citações que neste capítulo carecem de referência bibliográfica pertencem ao poema «A imagem expansiva» (21). |